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O Padre de Preto


O Padre de Preto - Gente de Opinião

Simon O. dos Santos*

 

Ocorre-me que um dia estava sentado na estação ferroviária de Vila Murtinho, isso um pouco antes da última e inesquecível viagem que a Maria Fumaça faria alguns meses depois, era entre três e quatro horas da tarde, quando senti os já conhecidos estremecimentos nas paredes e nos trilhos da estação, sinalizando que o trem já se aproximava, tais sinais deixavam em ebulição os transeuntes, viajantes, vendedores, malandros e as poucas prostitutas do lugar, inevitavelmente desceria na estação algum barão disposto a negociar as poucas peças de borracha que ainda chegavam dos seringais ou as muitas sacas de Castanha do Pará que desciam  dos castanhais ao longo do Rio Beni, mas nesse dia a expectativa do grupo não se cumpriu, pois nenhum barão chegara à estação, desceram dos vagões alguns moradores do lugar, outros passageiros que seguiriam viagem para Guajará Mirim, e,  destacando-se em meio à turba, avistei um indivíduo que certamente não era morador da vila, nem comprador de seringa ou castanha, primeiramente,  destacava-se pelo seu chapéu preto tipo panamá, e uma roupa também preta que se parecia muito com uma batina de padre, ao vê-lo meio que perdido na estação, aproximei-me no intuito de querer ajudá-lo, perguntei-lhe em que poderia ser-lhe útil, este, com uma voz atrovoada e um sotaque misturando palavras em português e em espanhol me disse que era um padre italiano e que havia sido designado para catequizar os remanescentes indígenas que habitavam essa região, perguntou-me se era do meu conhecimento a localização do “Seringal dos Clímacos” e se na manhã seguinte eu teria como guiá-lo à  colocação conhecida como “Cumissura”, pois pretendia fixar moradia nas proximidades do Igarapé Ribeirão e dar sequência, embora um pouco atrasado, ao processo de evangelização dos “pagãos” que iniciara-se com os jesuítas há muitos séculos no litoral do Brasil.

De imediato observei que o padre de preto possuía algumas referências do lugar, suficientes para entabularmos uma conversa, carregava uma única mala, talvez fosse a maior mala que tenha aportado nesta estação, e mais do que o tipo, a mala era objeto de curiosidade de todos, pois parecia uma grande canoa feita de uma única peça de madeira. Algumas semanas depois eu ficara sabendo o conteúdo daquela mala, e fiquei estarrecido com a descoberta. Encaminhei o padre de preto  à única igreja do lugar, Igreja de Santa Terezinha, construída por uma missão francesa na década em 1940, para que o pobre diabo buscasse o merecido descanso, neste ínterim, fui à casa de seu Moacir, morador antigo e profundo conhecedor dos seringais do lugar,  verificar se o mesmo poderia acompanhar o padre de preto na sua religiosa empreitada.  O infeliz estava com sorte, talvez ele tivesse viajado entoando o que o Apóstolo Marcos havia vaticinado “Seja o que for que peçais na prece, crede que o obtereis e concedido vos será o que pedirdes”, seu Moacir estava de partida na manhã seguinte para a “colocação Santa Rosa”, localizada na ponta do “varadouro”, muito além do local que o padre se destinara, e nesta viagem o padre de preto seria seu mais novo companheiro, pelo menos na ida. Na hora combinada seu Moacir e sua tropa de mulas e mais alguns companheiros chegaram à Porta da Matriz onde o padre os esperava com sua amazônica mala preta, após acomodar-se no lombo de uma das mulas e a mala noutra, o comboio seguiu viagem, uns para cortar seringa e colher castanha o outro para salvar almas do purgatório. Foi a última vez que vi o padre de preto, o desgraciado, acenou-me com o chapéu e marchou ao encontro dos canibais.

Após retornar uma semana depois da colocação Santa Rosa, seu Moacir me relatou que havia deixado o Padre de Preto no local combinado antes da partida, durante a viagem o Padre trocou algumas palavras  com o grupo, se informando um pouco sobre quais plantas usaria para enfermidades comuns nesta parte da Amazônia,  seu Moacir lhe mostrou algumas plantas, destacando principalmente as propriedades medicinais da “pualha” (psychotria ipecacuanha standl), muito usada pelos ribeirinhos, índios e seringueiros do lugar, no tratamento de vermes e lombrigas além de funcionar como um  excelente   expectorante. Às margens do Ribeirão, seu Moacir se despediu do Padre, não sem antes pedir-lhe que lhe rezasse uma ladainha em sua cabeça, após a bênção, o padre baixou a mala do lombo da mula, colocou-a em suas costas e empreendeu a pé a segunda parte de sua jornada, antes seu Moacir lhe mostrou alguns vestígios da passagem de índios no local, e lhe disse que o grupo deveria estar muito próximo, pois as pegadas na areia do rio e os restos de cacau comidos eram recentes, deste modo, o padre atravessou pacientemente as poucas poças d’água que o rio se reduzira nesta época do ano e sumiu mata a dentro em busca  das almas do lugar. Seu Moacir seguiu para a ponta do varadouro, matutando que muito em breve o padre de preto seria alvejado por uma flecha envenenada bem no meio de sua cara pálida e certamente deste destino o pobre homem não conseguiria fugir.

Ao chegar ao local que havia deixado o padre uma semana antes, imaginou que o encontraria espetado na ponta de uma vara, ou semi-vivo empoleirado numa árvore, chamou várias vezes o infeliz e nenhuma resposta obteve, caminhou alguns metros na mesma direção que o padre havia sumido, e só o barulho de alguns guaribas era o que se escutava, não podendo mais prosseguir, empreendeu sua viagem rumo ao vilarejo, pois precisava vender as muitas barricas de castanha e a escassa seringa que conseguira colher. Quando avistei seu Moacir e sua trupe entrando no povoado, corri ao seu encontro, tal era minha curiosidade sobre o Padre de Preto, o pouco que sabia me deixou desapontado, imaginei que o miserável  havia montado com sucesso sua “missão jesuítica” às margens do ribeirão e os pobres diabos já tivessem entoando cânticos e ladainhas em latim. Fiquei matutando mais alguns dias sobre o destino do Padre de Preto, foi então que me ocorreu uma idéia, montar uma comitiva com alguns “mateiros” que conhecem bem o Seringal dos Clímacos e empreender uma “bandeira”, agora ao revés, em vez de aprisionar índios, era do pároco destrambelhado que iríamos nos ocupar.

A notícia que um padre estava sumido no seringal já causava alvoroço no local, até mesmo pessoas de Guajará Mirim e Porto Velho queriam saber do tal padre que desembarcara algumas semanas antes na estação, as mais beatas não se conformavam com o sumiço do tal padre e indignadas atiravam injúrias e impropérios contra ele: “onde já se viu,  nós tanto tempo sem padre na vila, e o único infeliz que aparece se embrenha nas matas atrás de índio”, ao verem uma prostituta se aproximando da igreja, lançam sobre a meretriz as injúrias e impropérios que eram destinadas ao padre: “é por isso que a devassidão e a libertinagem imperam nesse lugar, se não tem padre pra cuidar das nossas almas, tem puta pra  o marido  desencaminhar”.

O grupo  era composto  por seis pessoas, a matula viajaria no lombo das mulas, era composta por basicamente  açúcar, café, sal, farinha, arroz e feijão, a carne seria encontrada na mata, os rifles estavam  repletos de munição, não se podia vacilar, o encontro com os índios era inevitável. Acompanhava-nos na empreitada o seu Zé Ferreira, profundo conhecedor das técnicas de matar índio, era um cão farejador, na região entre Porto Velho e Guajará Mirim, ninguém tinha matado mais índio que ele.

No dia da viagem toda a população da vila veio nos saudar, nossa comitiva estava na frente da matriz, como que pedindo a proteção da Padroeira  das Missões, nesse dia até dona Maria de Cunde fechou o bordel e veio com suas tietas da várzea nos desejar boa viagem, para desgosto das beatas que tinham preparado as rezas para abrir caminho e a comitiva poder  abençoar.  O seu Sebastião João Clímaco, dono do seringal que levava seu sobrenome veio pessoalmente nos desejar sucesso na busca do padre endoidecido e de quebra nos presenteou com uma caixa de madeira repleta de munição, e como sempre repetia em outras ocasiões, falou que nestas redondezas depois da castanha e da borracha, a munição era o bem mais valioso, melhor que proteção divina. No momento da partida seu Antônio Ângelo, um descendente de negros que migraram no início do século de Vila Bela de Santíssima Trindade, nascido e criado em Vila Murtinho, chegou montado em sua mula e com seu sorriso largo a missão também iria acompanhar.

Nosso propósito era pernoitar no mesmo local que seu Moacir havia deixado o padre, algumas semanas antes, montaríamos nesse local a base do acampamento e na manhã seguinte descansados seguiríamos à caça do italiano louco. A tarefa era arriscadíssima, a qualquer momento poderíamos ser surpreendidos por um ataque repentino dos Mura, guerreiros valentes que pouco se afastavam das margens dos rios e igarapés e tinham fama pelos seringueiros de comer carne humana. Paulatinamente fomos  nos afastando do varadouro e adentrando-nos na floresta densa, nenhum vestígio do padre era possível, mesmo assim caminhamos até o meio dia, quando às margens de um igarapé paramos para preparar o bagerê. Nessa peleja caminhamos três dias sem encontrar nem padre nem índio, abatemos alguns mutuns, jacus e um  caititu para abastecer nosso embornal. Os companheiros já davam sinais de cansaço e incredulidade, quando ao entardecer do terceiro dia, encontramos um pente e um espelho de bolso jogados às margens de um pequeno córrego, ficamos em alerta, eram sinais que o padre de preto  ou os Mura  estava muito próximos, empunhamos as armas e silenciosamente avançamos na direção dos objetos e ao me abaixar para pegá-los na areia, vislumbrei na penumbra da floresta alguns metros  adiante,  pedaços da batina do padre espetados em vara e cipós, fiquei estupefato, meus companheiros não menos, calmamente com a chumbeira engatilhada fui me aproximando dos retalhos e então a suspeita de várias semana se confirmou, o padre de preto fora devorado pelos canibais, e finalmente  o conteúdo da mala fora desvendado, além dos   pentes e espelhos, havia espalhados pelo local miçangas, restos de catecismos e tecidos, tesoura, facão,  machadinha e um crucifixo, havia manchas de sangue e tudo me levava a crer que o padre de preto fora estraçalhado pelos canibais feito um cão vadio, além de arbustos, galhos e cipós retorcidos, havia cinzas no lugar, indicando que o infeliz fora moqueado.

Os indícios de sua morte por tantos anunciada,  eram evidentes demais, não encontramos a mala e nem o chapéu, os Mura certamente os guardariam como troféus, além das muitas bugigangas que encontraram dentro dela, certamente eram muitos pentes, espelhos e miçangas que o pobre padre de preto trouxera para trocar por almas pagãs. Guardei os poucos objetos encontrados na minha sarrapilha e marchei ao encontro das prostitutas de dona Maria de Cunde. Pelo menos esse milagre o padre de preto iria realizar.

Autor: Simon O. dos Santos – Jornalista profissional, Mestre em Ciências da Linguagem e Membro da Academia Guajaramirense de Letras - AGL

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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