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Simon

O Trem das Almas


Vila Murtinho foi o mais próspero entreposto comercial da época dos seringais nesta parte da Amazônia. Sua estratégica localização na confluência dos Rios Mamoré e Beni (Bolívia) embala o nascedouro do Rio Madeira com suas águas barrentas, por onde navegam grossas árvores arrancadas pela força das águas do Beni que descem do altiplano sempre de mal humor.

Era quase noite, e Vila Murtinho dava sinais de que a vida noturna começaria em breve, os botecos e o único prostíbulo do lugar abriram lentamente suas portas, à espera da horda de seringueiros, castanheiros, empregados da ferrovia e toda sorte de desocupados e malandros do lugar.

No puteiro, as mulheres da vida, sabendo do alvoroço dos homens, preparavam-se para o combate. Após um demorado banho nas águas barrentas do Madeira, enfeitavam-se com as únicas peças de chita que ainda restavam nos baús e depois banhavam-se mais uma vez, agora com água de colônia ou mistral, sabendo que o embate se estenderia até o fim da noite.

Nessas noites, o delegado do lugar,  João Clímaco, ficava de plantão no batente da sua porta, de onde avistava toda a movimentação festiva, sabendo que a qualquer momento ele mesmo teria que ir fechar as portas do prostíbulo e abrir a única porta da cadeia para que algum infeliz, respingando a cachaça “cocal”, fosse esperar o trem das almas passar.

O mais bêbado dos bêbados tinham plena consciência que a cadeia, minúscula, sem janelas, com um cheiro de mofo e vômito insuportáveis, localizada às margens da ferrovia, não era o lugar mais adequado para passar o resto da noite ouvindo uma interminável Maria Fumaça passar, carregada de almas gritando,clamando à caminho de um purgatório que nunca chegava.

Naquela noite, o escolhido para contar as almas foi Antônio Pretinho, um homem forte, alto, negro e amigo de infância do delegado. Era bem jovem ainda e não levava desaforo pra casa.

Ao chegar ao prostíbulo, todo engomado, e com uma peixeira enferrujada na cintura, foi logo tirando uma das camélias para dançar.

Ao primeiro toque da zabumba, Antônio foi abordado por um boliviano, que estava cortejando a coquete desde cedo, e já havia gasto todo seu minguado dinheiro e agora não seria justo que outro a convidasse pra dançar.  Antônio não gostou daquela mão suja no ombro e muito mais da ousadia do boliviano em querer tomar- lhe a dama, meteu-lhe a mão no queixo, fazendo-o engolir os poucos dentes que ainda lhe restavam.

O Delegado com seu olhar clínico percebeu que a celeuma havia começado, e partiu em direção ao puteiro. Ao chegar no recinto, encontrou quase meia dúzia de bolivianos estropiados e  Antônio Pretinho com a faca na mão esperando o próximo que se atrevesse a encostar-lhe as patas. O Delegado era uma figura muito respeitada, ninguém ousava desobedecer-lhe, nem mesmo o valentão que bufava feito um animal bravo.

Ao ser algemado, imediatamente, lembrou-se do trem das almas, e chorando feito uma criança, implorava ao amigo delegado que não o levasse para a cadeia, pois as estórias que tinha ouvido desde criança era de uma cadeia mal assombrada e ainda mais, morria de medo das almas férreas. Suas lamentações foram em vão, em cinco minutos já estava sentado no frio chão da cadeia à espera dos primeiros alaridos que não tardariam a começar.

O silêncio da noite foi quebrado pelo trinado agourento de uma coruja, despertando-o da quase sonolência que o acometia, em alerta, foi ouvindo muito longe o barulho de uma máquina na ferrovia, sentiu o corpo gelar, o coração disparou e petrificado ia percebendo o barulho se aproximar.

Ao ouvir um apito ensurdecedor, Antônio Pretinho entrou em desespero e começou a gritar. Nesse momento sua mãe Dolores Antônia entrou em seu quarto e disse-lhe “foi um pesadelo meu filho”, volte a dormir que amanhã você vai pescar jaú.

Autor: Simon O. dos Santos – Mestre em Ciências da Linguagem e membro da Academia Guajaramirense de Letras - AGL

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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