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Gente de Opinião

Hugo Evangelista

DO MELHOR QUE JÁ TIVEMOS



Hugo Evangelista da Silva*
 

A incansável luta de um grupo de abnegados que teimam em ver restaurados e/ou preservados o que ainda resta do nosso patrimônio material, sobretudo, o desprezado acervo dos bens de nossa extinta EFMM, além dos poucos prédios públicos que insistem em manter-se de pé a despeito do descaso de nossas autoridades – com resultado positivo em relação ao imóvel que já abrigou a Prefeitura Municipal, a Câmara Municipal e o Corpo de Bombeiros, ora em processo de restauração – levou-me a pensar o quanto esses poucos anos de progressos recém-experimentados nos privaram de “valores imateriais” outrora presentes nas mais simples ações de nossos moradores.

Trago-lhes, pois, a esse respeito, exemplos do melhor que já tivemos:

Ao início dos anos sessenta, quando ainda não havia sequer completado a minha primeira década de vida, fui, certo dia, convidado por um amigo de mais idade – o Antonio Rosas – para acompanhá-lo ao centro comercial que, então, não passava de algumas poucas lojas dispersas pelas quadras centrais da cidade, onde ele pretendia comprar um par de sapatos. E lá fomos nós. Paramos logo à primeira loja em que avistamos alguns calçados à mostra – a Loja Atallah – estabelecida ali na confluência das ruas Barão do Rio Branco e José de Alencar, onde fomos recebidos, à entrada do estabelecimento, por seu proprietário que era, também, o vendedor. Ao saber por que procurava o meu amigo, passou a mostrar-lhe alguns dos exemplares que dispunha à venda enumerando suas muitas qualidades, o que fazia num português sofrível, pleno de sotaques e bem característico dos comerciantes árabes então estabelecidos por aqui.   

Reconhecidas as qualidades do produto, meu amigo resolveu comprar os sapatos e foi a essa hora que constatou que os “caraminguás” dados por seu pai – o “Seu” Valentim – não seriam suficientes à efetivação da compra. Diante disso, pediu desculpas ao comerciante e prometeu que voltaria para “pegar” os sapatos a outra ocasião. “Nada disso” – disse-lhe “Seu” ABDON. “Você leva os sapatos e amanhã ou depois você traz o restante do dinheiro”. As reiteradas recusas do meu amigo foram de todo infrutíferas. O lojista manteve-se firme na sua decisão: “Leve os sapatos. Você é merecedor da minha confiança!” Realizado o negócio, seguimos – eu e ele – até a “feira do produtor” que funcionava onde está, hoje, o mercado central a encontrar seu irmão – o Raimundo – que, sabedor do assunto, perguntou: “Comprou os sapatos?” O meu amigo contou-lhe do acontecido e ele, prontamente, desembolsou a valor necessário à complementação do pagamento e determinou: “Na volta passa na loja e paga ao velho!”. Voltamos à loja e “Seu” ABDON demonstrando-se surpreso pela rapidez de nosso retorno, recebeu a importância, agradeceu a compra e disse ao meu amigo: “Meu bom rapaz, preserve sempre a confiança que lhe seja depositada, ela haverá de ser o seu melhor patrimônio”. Nunca me esqueci de suas palavras!

A outra história a demonstrar a singularidade dos rondonianos remonta a meados dos anos oitenta, distando de agora aproximados trinta anos. Eu era, àquela ocasião, funcionário público federal e, por isso, recebia meus proventos via Banco do Brasil que possuía apenas uma agência bancária em nossa cidade, situada ali na Rua Dom Pedro II, a qual ora elevada à condição de agência central. À falta dos atuais caixas eletrônicos, que minimizam – hoje – a permanência dos clientes nas filas de atendimentos bancários, precisávamos, em dias de pagamentos, de mais tempo e muita paciência para receber nossos parcos rendimentos. Assim disposto, dirigi-me a agência bancária em companhia de minha esposa que àquela ocasião estava em estado bastante “interessante”, conquanto, esperávamos pela chegada de nosso segundo filho: o Emanuel. A fim de poupá-la da demorada permanência na fila, deixei-a a esperar no carro que estacionei às proximidades da agência e fui sozinho à busca de alguns “trocados” suficientes a saldar os nossos compromissos mais imediatos.

Ao voltar encontrei minha esposa a esbanjar um sorriso assaz incomum para uma espera tão demorada. Contou-me de suas razões: cansada da espera, resolveu-se por sair do carro e por esperar à sombra de algumas árvores, encostando-se ao muro de uma das residências. Surpreendeu-se, tão logo, pela abordagem de uma senhora que, com inusitada gentileza, ofereceu-lhe uma cadeira e pôs-se a com ela conversar. Falou-lhe do calor, de sua prole, de seu marido, até que se descobriram manauaras. Adentrou a casa e trouxe-lhe uma porção de doce caseiro, desses feitos por mãos delicadas das esposas carinhosas e de mães dedicadas, que minha mulher comeu com muito gosto enquanto mantinham as suas prosas, que se demorou até quando apontei à saída do Banco. Minha mulher ao avistar-me entregou-lhe a cadeira e a taça em que lhe fora servido o doce e despediram-se! Concluiu seu relato dizendo-me: “Essa d. Maria é uma velhinha maravilhosa!

É possível que ainda possamos encontrar por aqui pessoas tão gentis como foram “Seu” ABDON ATALLAH e d. MARIA OCEANO, mas essas, certamente, estão cada vez mais raras. O progresso trouxe-nos, por consequência, o medo e a desconfiança no trato para com as pessoas. Nossos comerciantes, por razões óbvias, preferem realizar suas vendas mediante o pagamento em “cash” ou a débito no “credit card” a acreditar na honradez de seus clientes. E quem, em tempos de tanta violência, atreve-se a desmanchar-se em gentilezas e generosidades com pessoas as quais não as conhece?

Devo adverti aos nossos preservacionistas, entretanto, que a eventual inclusão desses “valores imateriais” na pauta de suas lutas não me parece ser um bom propósito, porquanto correremos o sério risco de sermos considerados um bando de loucos! Ou não?

* Advogado, escritor e memorialista, conta histórias que viu ou ouviu sobre nosso estado, nossa cidade e do bairro em que nasceu e reside: o Santa Bárbara. e-mail: [email protected]     

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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