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Gente de Opinião

Hugo Evangelista

KAFKA revisitado


 

Hugo Evangelista da Silva*
 

Foi o pedido de meu filho, desejoso de ler a “A Metamorfose”, que me levou a uma revisita ao escritor tcheco Franz Kafka. No afã da leitura pareceu-lhe que o meio mais fácil de ter o livro seria buscá-lo n’alguma de minhas prateleiras! Assim, recebi um telefonema seu – habitamos casas distintas – em que me perguntou: ”Vc tem livros do Kafka?” À minha resposta positiva, disse-me: “Passo com vc ao final da semana para pegá-los!”. Presumindo que com ele viriam indagações a respeito do escritor e de seus livros, separei as duas únicas obras de Kafka que li e que, por sorte, ainda permaneciam na minha estante – “A Metamorfose” e “O Processo” – e dispus-me a iniciar uma re-leitura, começando por “O Processo”, o que só conclui às vésperas da visita do Victor Hugo.

Essa re-leitura lembrou-me os primeiros contatos que tive com a obra de Franz Kafka:

O meu primeiro encontro com o escritor aconteceu há muitos anos. Fui a ele apresentado, à primeira vez, ao início dos anos setenta, quando ainda estudava no Rio de Janeiro. Ali tinha um amigo de “república” – o Zé Roberto – que estava a ler “A Metamorfose” e era, ao todo, só empolgação com a leitura. Quando ao terminá-la, flagrante a minha curiosidade, emprestou-me a obra que li de um só fôlego. Daquela leitura restou-me, desde logo, a certeza da genialidade de Franz Kafka. 

No segundo encontro com Kafka eu já tinha regressado a Porto Velho e foi-me proporcionado por uma amiga – a Eunice – que a encontrei, num dia de domingo, “perambulando” pelas ruas centrais de nossa cidade. Sentamo-nos num banco de praça qualquer e nos detivemos, numa prosa agradável, sem cerimônias, em que nos ocupamos de assuntos variados - bem demorada! Como a conversa estava a estender-se para além do meio-dia convidei-a a almoçar e buscamos o restaurante mais próximo: o ALMANARA. No almoço comemos “espeto de filé c/arroz e feijão” e “filé c/charutos”, que fizemos acompanhar de uma porção de “batatas fritas” e dois refrigerantes, o que me custou cento e vinte e cinco cruzeiros, a moeda da época. O dia desse encontro foi: 22 de Outubro de 1978.

Terminado o almoço pedi a conta das despesas que ao ser-me entregue pareceu causar certo desconforto a minha amiga, embora a minha pronta disposição de “arcar com o prejuízo”. Enquanto esperávamos pelo troco, ela abriu sua bolsa, tomou de um livro e mostrou-me, dizendo: “Olha o que eu acabo de ler!” O livro era “O Processo” que ela, em seguida, decidiu presentear-me. Fiquei a suspeitar que o presente fora – quem sabe? - em paga às tantas horas de conversa ou ao almoço que, convenhamos, estava uma delícia. A nota fiscal, que discriminava o consumo e seus respectivos valores, acompanhou o troco que me cabia e eu, que já iniciara a leitura do livro, fiz dela um “marcador de páginas”, para o fim de sinalizar onde eu interrompera a leitura e de onde deveria recomeçá-la. Por ocasião da re-leitura encontrei a velha nota que ainda estava ali entre páginas, numa demorada permanência prestes a completar trinta e sete anos. Daí os pormenores!

O escritor Carlos Heitor Cony declarou em entrevista, certa vez, que costuma praticar a releitura dos livros que gosta e, nessa prática, percebe que a experiência adquirida – aos anos que permeiam uma e outra leitura – dá-lhe uma visão mais contemplativa da obra. Assim, o conteúdo do livro já não lhe parece ser o mesmo. O prazer de sua leitura é outro. E suas conclusões vão mais além das chegadas na leitura anterior.

Essa foi, também, a sensação que tive em relação à obra de Kafka:          

Quando li “O Processo” à primeira vez – 1978 – o fiz com os olhos de leitor aprendiz, embora já conhecesse o prazer da leitura e contasse, a meu favor, a experiência adquirida nos anos – 1972 a 1975 – vividos na “cidade grande”. Lá, os veículos de comunicação, por serem múltiplos, deram-me uma visão panorâmica da situação política vigente. E foi assim, cônscio do estado de exceção em vigor, que acompanhei o recrudescimento do regime adotado a partir da “revolução redentora” e a supressão “gradativa” das garantias constitucionais que, pouco a pouco, eram suprimidas de nossa Carta Magna. Nesse ínterim, foram muitos os relatos que ouvi de prisões arbitrárias e de “opositores” que, ao serem “convidados” a prestar “esclarecimentos” aos órgãos da repressão, desapareciam. Assim, a história de Joseph K. – à maneira como se dá – primeiro, tendo seu domicílio invadido; depois, a surpresa da informação de que estava preso – e, quando ao indagar a seu algoz sobre as razões de sua prisão, ser informado: “Não me cabe explicar isso ... ”; a sua condenação; e, o cumprimento da pena, me pareceram demasiado familiar. A obra de Kafka causou-me, já à primeira leitura, muita indignação!

A leitura de “O Processo”, em segunda vista, o fiz sob outro ângulo! Presente, ainda, a indignação dos tempos da primeira leitura, saltou-me aos olhos – lendo o infortúnio de Joseph K. – o quanto avançamos em relação aos direitos e garantias individuais, a par dos princípios insertos em nossa Carta Cidadã. A violação do domicílio e a falta da ordem de prisão passada por autoridade competente; a ausência de uma nota de culpa e a recusa injustificável de dizer-lhe da acusação que lhe pesava; além de um trâmite processual sem a observância do “due processo of law” – conduzido por um Poder Judiciário leniente –  nos termos denunciados na obra de Kafka, não prosperariam à luz das regras contidas no arcabouço jurídico vigente no direito pátrio. O romance de escritor tcheco está a nos mostrar, de modo insofismável, a face negra do arbítrio cometido por agentes de governos totalitários, como a condenação do personagem a exemplificar a prática de um casuísmo praticado com vistas a se alcançar um resultado pré-estabelecido. Foram-se os tempos em que prisões como a de Joseph K. eram freqüentes em nosso país!

Quando vejo, nas chamadas redes sociais, alguns ignóbeis pedindo a volta do estado de exceção, sob a esdrúxula alegação de que somente com o retorno ao um “regime ditatorial” poderá ser estancada a desmedida corrupção “nunca antes vista na história deste país”, faço uma indagação: “Será que esses ‘aloprados’ têm consciência do que estão pedindo?

* Advogado, escritor e memorialista, conta histórias que viu ou ouviu sobre nosso estado, nossa cidade e do bairro em que nasceu e reside: o Santa Bárbara. e-mail: [email protected]

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