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Gente de Opinião

Hugo Evangelista

O batuque de SANTA BÁRBARA


 

Hugo Evangelista da Silva*

Atransferência do Batuque de SANTA BÁRBARA para o nosso bairro – SANTA BÁRBARA - foi, sem dúvidas, um fator determinante para sua ocupação conquanto fez-se acompanhar de parte significativa dos membros da Irmandade de Santa Bárbara, que congregava o Terreiro e a Capela aqui instalados, o primeiro a partir do ano de 1944 e a segunda a partir de 1947, na Avenida Joaquim Nabuco, onde permaneceram até o ano de 1972, o que contribui sobremaneira para a ocupação da área. Converge, nesse sentido, a informação da Professora MARTA VALÉRIA DE LIMA, contida em sua Dissertação de Mestrado, intitulada “Barracão de Santa Bárbara em Porto Velho – RO: Mudanças e Transformações das Práticas Rituais”, dando conta, de que:

 “os membros da Irmandade de Santa Bárbara, filiados ao Recreio de Yemanjá, adquiriram lotes nas proximidades do terreiro ou, a exemplo do que ocorreu no Bairro Mocambo, ergueram novos tapiris na propriedade de Dona Esperança”, enquanto, ela mesma, ”mandou construir alguns (tapiris) para receber os seus filhos-de-terreiro e pessoas que vinham das barrancas dos rios e dos seringais em busca dos seus conhecimentos de curandeira e mágico-religiosos”.

Os motivos que levaram à mudança do Barracão de SANTA BÁRBARA foram, também, contemplados na pesquisa da Professora Marta Valéria, que ao analisar as várias razões apresentadas pelos médiuns mais idosos da Irmandade de Santa Bárbara, considerou que:

o motivo da transferência parece ter sido o fato de que, com o crescimento urbano de Porto Velho, o Recreio de Yemanjá ficou localizado muito próximo ao centro da cidade e assim o som dos tambores passou a incomodar os moradores do “centro”, que residiam nas imediações do mesmo; por outro lado, os serviços de pavimentação e urbanização desta cidade parecem ter alcançado o bairro neste período e provocado o deslocamento do Barracãopara o sítio no qual residia Dona Esperança”.  

Os primeiros instantes que se seguiram à transferência do Batuque de Santa Bárbara para a Avenida Joaquim Nabuco (ano de 1944), ainda, sob a administração de seus fundadores IRINEU DOS SANTOS e ESPERANÇA RITA, foram marcados pela estruturação e adequação do espaço, ocasião em que foram construídos, além do barracão, os cômodos necessários à acomodação dos “irmãos” que acompanhavam o TERREIRO, além do alojamento destinado aos filhos-de-terreiro, para, depois, a Entidade afirmar-se aos olhos dos demais moradores, como “um espaço de cura e diversões”, contando, nesse período, segundo depoimentos colhidos, com o apoio irrestrito da maior autoridade do Território Federal, o Governador Aluízio Ferreira, segundo alguns, grande admirador e praticante dos trabalhos que ali se realizavam.

Os anos seguintes – 1945-1947 – foram, entretanto,particularmente penosos para os membros da Irmandade de SANTA BÁRBARA conquanto tenham amargado momentos de indiscutíveis sofrimentos, sendo eles envolvidos, já ao início do primeiro ano – 1945 - em um lamentável incidente: Conta-se que, por ocasião de uma das sessões de festejos que acontecia no Batuque de Santa Bárbara, apareceu no TERREIRO um jovem oficial do Exército, chamado Fernando Gomes de Oliveira, o Tenente Fernando, que acompanhado de outros militares de patente inferior, resolveu, numa atitude intolerante e assaz grosseira, pôr fim às atividades que tomavam lugar no barracão. Proferiu, ao início de suas brutalidades, uma enorme quantidade de palavrões e indizíveis ofensas, inclusive raciais, às pessoas presentes aos trabalhos em andamento, até quando, manifestada pequena resistência de alguns membros da Irmandade, insuficientes a uma reação mais enérgica considerada a superioridade física dos militares, foram violentamente agredidos enquanto os instrumentos do TERREIRO – atabaques/tambores – foram todos perfurados, quebrando-se, em seguida, as imagens e outros adornos que guarneciam o salão. Tentou o Tenente, ainda, atear fogo ao barracão, o que só não aconteceu porque era coberto de palhas – muito comum àqueles tempos – e como havia chovido torrencialmente, estava com sua cobertura bastante molhada, o que impediu que o Tenente, apesar das várias tentativas, atingisse o seu objetivo. Dizem mais: no afã de impedir a ação do militar, “mãe” Esperança Rita, dona do Terreiro, dirigiu-se a ele suplicando-lhe que cessasse sua fúria ao que teria, por isso, recebido alguns “sopapos” que a levaram ao chão. Ao levantar-se e verificar os estragos patrocinados pelo Tenente – sem forças para enfrentá-lo – teria dito, em lágrimas e com voz branda: “Meu filho, você é muito forte para mim, mas logo haverá quem se encarregue de ti!”

Aprofecia feita por “mãe” Esperança Rita, àquele instante de desespero e dor – verdadeira sentença de morte, no dizer das pessoas que presenciaram a truculência do Tenente Fernando – viria a se confirmar no dia 29 de julho de 1945, um domingo, na localidade de São Pedro, a aproximados sessenta kilometros de Porto Velho, onde estava acantonada a 2ª. Companhia Rodoviária Independente, quando, ao amanhecer, o Tenente Engenheiro decidiu empreender uma caçada e, ao caminho, buscando matar um inhambu que gorjeava a pouca distância do alojamento, adentrou a mata e nunca mais voltou. Encontrei antigos moradores que tendo presenciado a violência praticada pelo militar naquela terrível noite e a firmeza das palavras da mãe-de-santo, proferidas ao momento de horror, afirmem convictos que os dois lamentáveis incidentes guardam estreita correlação. Conversei com outros, entretanto, que preferem desacreditar a vinculação entre os dois episódios, por achar que essa hipótese tenha sido apenas um factoide criado para tumultuar as investigações e impedir a descoberta dos verdadeiros culpados pelo sumiço do militar. Para os mais céticos, trago aqui, por oportuna, a certeza de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, diante da estranheza de Horácio - personagens de Shakespeare – que nos assegura: “Existem mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.

Esse infeliz episódio mereceu de parte das autoridades locais e de alguns moradores, quiçá pela comoção criada, diferentes versões: a) o oficial teria sido sequestrado pelos índios Boca-Negra para servir de reprodutor e apurar a raça da tribo; b) o oficial teria se perdido na mata e, por isso, ficado louco; c) o oficial teria sumido num buraco da selva; d) o oficial teria sido vítima de um atentado por pessoas ligadas ao Governador do Território; e) o oficial teria sido vítima do ataque de algum animal; e, f) o oficial teria sido jogado num rio, amarrado a uma pedra.

Oano de 1946 seria marcado, também, por incidentes extremamente desagradáveis acontecidos à IRMANDADE Santa Bárbara: primeiro, ofalecimento de um dos fundadores da Entidade, o “Seu” IRINEU DOS SANTOS, ocorrida logo ao início do ano – 06.01.1946 – do que decorreu a suspensão dos trabalhos do Batuque pelo período de luto, que se prolonga por 01 (um) ano, com o reinício de suas atividades somente no ano seguinte – 1947 – quando já investido na condição de Pai-de-Terreiro “seu” ALBERTINO BARBOSA DA SILVA, o “pai” Albertino, que enfrentou, aos primeiros momentos de sua gestão, enorme rejeição à conta de uma suposta homossexualidade, o que precipitou uma cisão da IRMANDADE de Santa Bárbara, que assistiu à transferência de vários de seus membros para o Terreiro de São Benedito, o Samburucú, fundado por Dona Chica Macaxeira, ela mesma uma filha-de-santo de “mãe” Esperança Rita e maior incentivadora da cizânia; depois, a exoneração do Governador do Território Federal do Guaporé, o Major Aluízio Ferreira – acontecida a 07.02.1946 – e sua substituição, nessa mesma data, pelo Tenente Coronel Joaquim Vicente Rondon, o que incomodou sobremaneira a Irmandade à medida que via afastada do poder uma autoridade que sabidamente era simpático às atividades desenvolvidas no Terreiro de SANTA BÁRBARA, e, por fim, a chegada do novo Bispo de Porto Velho, D. João Batista Costa, empossado no cargo em Março de 1947, quando, em seguida, deu início a uma violenta campanha de perseguição aos cultos afro-brasileiros, tanto por intransigência e crenças pessoais quanto por cumprimento às orientações e determinações eclesiásticas superiores, o que culminou com a dissolução da IRMANDADE de Santa Bárbara e o fechamento da Capela – em agosto de 1947 – sob a alegação de que “... de algum tempo a esta data a Irmandade vivia em contraposição com todos os artigos dos seus estatutos”.  

Aperseguição aos cultos afro-brasileiros e suas práticas ritualísticas promovidas pelas autoridades católicas – sobretudo para com a Irmandade de Santa Bárbara – fora de uma intolerância tão repulsiva que chegou a produzir “opiniões” as mais abjetas, como a feita pelo então Padre e historiador regional VITOR HUGO:

“Essa irmandade, em Porto Velho, foi sempre insubordinada às autoridades eclesiásticas e, após repetidas admoestações, terminou por fazer as festas anuais, primeiro sem o sacerdote, e, atualmente, tudo se reduz a um vulgar batuque frequentado por pessoas sem categoria moral”.

(Vitor Hugo, 1991, II VOLUME, Pg. 28).

Adecisão episcopal, entretanto, não intimidou os membros da então Irmandade de Santa Bárbara, que com sua extinção criaram uma sociedade beneficente, conforme nos afiança a Professora MARTA VALÉRIA DE LIMA, em trecho contido em sua dissertação de Mestrado:

“Apesar das medidas oficiais da Igreja, o grupo comandado por Dona Esperança não acatou as determinações do Bispo, reabrindo a Capela em um dos prédios do conjunto arquitetônico do terreiro e dando continuidade às suas atividades religiosas e beneficentes com uma nova razão social, a de Sociedade Beneficente de Santa Bárbara.”

Os constantes acontecimentos desagradáveis, tais como os ocorridos aos primeiros anos da transferência do Batuque de SANTA BÁRBARA para a Avenida Joaquim Nabuco, viram-se cessados a partir dos anos finais da década de ’40 – 1948 a 1950 – verificando-se, a partir desses anos, uma acomodação das forças contrárias aos trabalhos da SOCIEDADE, quando o Terreiro de YANSÃ passou, então, a ser visto pelos moradores de Porto Velho como “um espaço de cura e de lazer”, passando a ser considerado como uma opção de passeios e de entretenimento aos demais moradores de nossa cidade, sobretudo, nos períodos das festas dedicadas a YANSÃ e OXÓSSI que aconteciam, regularmente, no período compreendido entre 26 de novembro e 20 de janeiro, de todos os anos.

Nos anos em que permaneceu na Avenida Joaquim Nabuco – 1944 a 1972 – o Terreiro de SANTA BÁRBARA foi, sem dúvidas, a nossa referência maior. Para nós moradores, era visto como um espaço para aonde acorríamos todos nós em horas de necessidades ou de incontido desespero à busca do conforto precisado. Por isso, supõem-se, os festejos que tomavam lugar no Barracão por conta das celebrações em louvor aos nossos santos padroeiros – SÃO SEBASTIÃO e SANTA BÁRBARA – sempre tenham merecido uma participação significativa de nossas gentes. Diga-se, ademais, que o envolvimento de nossos moradores nas festividades que ali tomavam lugar fazia-se à revelia do credo religioso de cada um, razão pela qual os eventos festivos sempre foram muito esperados por todos nós, o mesmo acontecendo com as outras atividades realizadas em atendimento ao calendário profano, sobretudo o carnaval, e as brincadeiras relativas às festas juninas.

Destaque-se, ademais, que o Terreiro de SANTA BÁRBARA foi, para muitos de nossos moradores, um espaço de trabalho e renda para aonde eles acorriam à busca dos recursos necessários ao sustento próprio e de suas famílias, o que se fazia, geralmente, através de uma “banca de comidas” que era colocada nos arredores do BARRACÃO para ali serem vendidas as diversificadas iguarias regionais – os bolos, os mingaus, o tacacá, a tapioca, o mungunzá e o cafezinho, para ficar em alguns poucos exemplos – às pessoas presentes ao momento da realização das festas. Ressaltamos, entretanto, que o tradicional “churrasquinho de gato” hoje tão comumente presente às festas populares não compunha o rol de acepipes vendido nas bancas instaladas na área periférica do Terreiro de YANSÃ, quer seja pela escassez da carne bovina em nossos açougues; quer seja pelo desconhecimento de nossos moradores das qualidades nutritivas e afrodisíacas presentes na carne de nossos bichanos.

Ao início dos anos ’70 – 1971 e 1972 – o Batuque de SANTA BÁRBARA mergulharia em nova crise, consequente do falecimento da mãe-de-santo d. ESPERANÇA RITA e da decisão de seus filhos adotivos em vender o imóvel onde estivera edificado o TERREIRO de YANSÃ, quando, então, o corpo diretivo do Batuque, tendo à frente “seu” Albertino Barbosa, viram-se obrigados a uma nova mudança da, agora, ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE SANTA BÁRBARA que transferiu suas instalações – em 1972 – para a Rua Venezuela, no bairro Nova Porto Velho, vindo, anos depois, a ser transferida para o bairro Vila Tupy – 1986 – aqui em nossa cidade, onde permanece até os dias atuais.

* Advogado, escritor e memorialista, conta histórias que viu ou ouviu sobre nosso estado, nossa cidade e do bairro em que nasceu e reside: o Santa Bárbara. e-mail: [email protected]    

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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