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Simon

O Cangaceiro de Vila Murtinho


No dia sete de setembro de 1939, desceu na estação ferroviária de Vila Murtinho, Material, um sujeito estranho, alto, magro, vasta cabeleira avermelhada, trajando vestimentas muito parecidas com uniformes militares, puxando uma espécie de mala quadrada, fabricada em couro curtido. Em seu rosto seco um pouco acima do olho direito, uma cicatriz grande e protuberante lhe deixava com uma aparência de  lobisomem. Em poucos dias sua chegada virou notícia no povoado, nos seringais e na Colônia Agrícola do Iata.

Ainda na estação, foi possível perceber que lhe faltava a orelha esquerda e mais cicatrizes espalhadas por todo o seu corpo. Estava vindo de Arcoverde

em Pernambuco onde foi cangaceiro no bando de Lampião. Com a morte do líder, o sujeito agora escolhera os confins da Amazônia para  tentar esquecer o cangaço e retomar a vida, isso, se os fantasmas do passado também tivessem ficado na poeira escaldante da caatinga.

Apesar da aparência um pouco assustadora, sua voz era de uma mansidão de água de cacimba e seus gestos eram ágeis, firmes e calculados. Na manhã seguinte,  retornou à estação em busca de trabalho e encontrou justamente o feitor da ferrovia, responsável pelos cassacos que faziam a limpeza e manutenção dos trilhos do trecho de Vila Murtinho à Cachoeira do Pau Grande.

O feitor era um sergipano negro com quase dois metros de altura, pesando cento e vinte quilos e um sorriso estrondoso como o badalar do sino da Igreja de Santa Terezinha. Desidério Domingos Lopes era o homem mais alto de toda a região e trabalhava na manutenção da ferrovia há muito tempo. Em poucos meses deixaria o cargo para seu filho, Virgílio Domingos Lopes.

Desidério,  imediatamente contratou o visitante, lhe explicando detalhadamente o serviçode limpeza e manutenção da ferrovia. Os cassacos saíam ao amanhecer montados em uma cegonha e percorriam todo o trecho apertando os grampos, trocando dormentes, retirando galhos e outras coisas da ferrovia. Material acompanhava o grupo todas as manhãs em silencio,  cumpria todas as ordens de Desidério, era um dos mais aplicados e nunca reclamava do trabalho ou da comida.

No mês de dezembro, Desidério fora substituído pelo filho Virgílio na condução dos trabalhos da ferrovia. Virgílio também era um homem alto e corpulento, além de herdar o mesmo sorriso do pai. Material, embora não tivesse gostado do novo chefe, preferiu permanecer calado e cumprir suas obrigações de cassaco. Seus pesadelos não o deixavam ter um sono tranqüilo, inúmeras vezes sonhou que estava na caatinga combatendo ao lado de Lampião. Nesta noite sonhou que Virgílio era quem vinha para lhe cortar sua única orelha e acordou mais assustado ainda.

Decididamente não gostara do novo chefe, talvez porque tivesse quase a mesma idade sua, ou algo que ainda não saberia identificar. A animosidade aumentou quando Material em um dia em que acordou com fortes dores abdominais não pode ir ao trabalho, ficou sabendo que Virgílio colocara falta em sua folha de ponto.

Neste dia seu silêncio foi ainda maior. No final do expediente, Material resolveu beber uns tragos de cachaça em uma bodega que ficava entre a estação e a igreja. Bêbado e mais calado ainda, disse para si mesmo que ainda naquele final de tarde mataria Virgílio. Com um facão  enorme na mão deixou o bar e partiu em direção à casa do seu novo chefe.

Virgílio morava em uma das casas construídas para abrigar os funcionários da ferrovia, nas proximidades do Igarapé Lages e do Rio Mamoré. Nesta tarde,   chegou do trabalho e foi tomar banho no porto localizado nos fundos de sua casa no rio Mamoré. Estava ensaboando-se quando percebeu a chegada enfurecida do Material lhe  dizendo “ vim te matar negro filho da puta”, partindo com o facão em riste em sua direção. Este pulou na água e nadando se afastou do porto.

Material lhe gritava dizendo que ainda naquele dia lhe mataria. Raivoso, retornou,  quando percebeu a figura do Desidério descendo o barranco também com um facão na mão querendo saber o que estava acontecendo. Material babando de raiva lhe disse que  iria matar seu filho, “aquele negro safado”. Desidério ao perceber a veracidade daquelas palavras não pensou duas e desferiu o facão no ombro direito do valentão penetrando-o até seu abdômen.

A vítima caída ao solo pediu para falar uma última coisa para Desidério, este se abaixou um pouco para ouvir o moribundo,  quando foi surpreendido por um golpe de facão atingindo seu braço. Neste momento um amigo de Desidério que acabara de chegar ao local com um pedaço de madeira na mão, desferiu violentamente um golpe certeiro na cabeça do infeliz. Material morreu com os olhos fixos nos olhos do Desidério que viveu ainda muitos anos sem esquecer o semblante perturbador da vítima. Quando Desidério desferiu o facão, decepou milimetricamente a orelha direita do Material, deixando-o completamente sem orelhas, agonizando ao som do sino da igreja de Santa Terezinha.

De acordo com relatos de pessoas que conheceram Material, sua orelha foi  cortada em Arcoverde pelo próprio Lampião, em desobediência a uma ordem a dada.


Autor: Simon Oliveira dos Santos, natural de Nova Mamoré. Formado em Pedagogia pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), pós graduado em Metodologia do Ensino Superior e Mestre em Ciências da Linguagem, também pela UNIR. Jornalista profissional, escritor, pesquisador e membro da Academia Guajaramirense de Letras –AGL.

Emails: [email protected]e [email protected]

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