Sábado, 15 de abril de 2017 - 09h48
Frei Betto
Sexta-feira da Paixão. Frei Nicolau, pároco da igreja de São Domingos, na capital paulista, pediu-me para encontrar um Cristo sofrido para a procissão do Senhor morto. No templo, o clima litúrgico, com as imagens cobertas de roxo, recordava a prisão, a tortura e a morte de Jesus.
Fui ao Bexiga atrás do Paco, cenógrafo que trouxera da Espanha a mania de colecionar Cristos. Mostrou-me sua coleção, na qual se destacavam um Cristo lavrador do Vale de Jequitinhonha, com o ventre oco, crucificado nas próprias enxadas; um Cristo peruano com cara indígena, todo retorcido, a cabeça avançada, como que prestes a se desprender do tronco; e um Cristo guatemalteco, amarrado no poste de tortura, tendo sobre a cabeça um capuz por baixo da coroa de espinhos. Emprestou-me os três para que frei Nicolau escolhesse.
Na volta, parei no Largo do Arouche para comprar flores. Dia seguinte, o altar da igreja deveria ser enfeitado para a noite do sábado de Aleluia. De repente, uma mulher em trajes sumários, descabelada, olhos a brilhar de ódio, invadiu uma das barracas e, com uma jarra nas mãos, começou a derrubar tudo e a xingar o florista. Foi a única vez que vi uma briga de casal sob chuva de pétalas...
O homem, acuado, começou a gritar que ela era louca. Três ou quatro fregueses acorremos a segurá-la. Ao conseguir, senti algo quente e pastoso correr pelo meu braço direito. Ela tinha cortado as mãos com a jarra. Acalmada, aceitou que eu a levasse até o Hospital das Clínicas para que fosse medicada.
― O que houve com a senhora? – indaguei no caminho.
― Frei, ele me largou – disse vacilante, exalando forte cheiro de álcool. – É meu homem, mas agora anda com uma piranha.
Padres e pastores são como médicos, ainda que não tenham tido a doença devem prescrever algum remédio aos males da alma. Procurei explicar que ela deveria buscar outros métodos para reconquistá-lo. A agressão e a ofensa não eram os mais indicados. Quem sabe ele logo cairia em si e se daria conta da importância de trocar a aventura pelo verdadeiro amor.
A mulher contou que trabalhava em um restaurante próximo à Praça da República, onde lavava copos, pratos e talheres. Viera da Bahia. O florista era de Minas. Os dois se conheciam há cinco anos. Eles se lavavam no restaurante, comiam o que sobrava das travessas retornadas das mesas e, à noite, dormiam na barraca, cercados de rosas, margaridas, cravos, hortênsias e bicos-de-papagaio.
― Prefiro morrer, padre, a viver sem ele.
Falei do amor, de Deus, da esperança. Por mais que tentasse fugir do discurso convencional, eu sabia que, nas águas da emoção, não se pesca com a rede da razão. Um coração machucado só conhece dois remédios: o amor, que cura e transfigura; ou o tempo, que cauteriza.
No pronto-socorro do Hospital das Clínicas, ela foi logo atendida. Na saída, me pediu que a deixasse junto ao cemitério do Araçá.
― Algum parente enterrado lá? – perguntei.
― Não; vou comprar uma flor ali na porta e levar para o meu homem.
O gesto, que a princípio me pareceu redundante, como oferecer pão ao padeiro, logo me fez entender que, no amor, a atitude fala muito mais alto do que a própria oferenda.
De volta à igreja de São Domingos, frei Nicolau veio correndo ver os Cristos que eu havia conseguido.
― Por que demorou tanto? - perguntou ele.
― Porque eu estava acompanhando uma outra paixão. E ela tem nome: Maria das Graças.
No Domingo de Páscoa, retornei ao Largo do Arouche com uma caixa de chocolates. Das Graças e Antônio, sorridentes, atendiam os fregueses na barraca de flores.
― Olá Maria, olá amigo, então vocês ressuscitaram?
Ela me reconheceu:
― Frei, acho que é isso mesmo o que aconteceu. A gente ressuscitou. O Antônio largou da piranha.
― Agora é pra sempre – disse ele. E acrescentou com um toque de ironia: ― O amor é eterno enquanto dura.
Corrigi-o:
― O amor dura enquanto é terno – e frisei a distinção entre o verbo e o adjetivo.
Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
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