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O último suspiro de um açaizeiro



Por William Haverly Martins

Dos folguedos infantis, nada empolga mais a criançada do que empinar papagaio, a criação dos chineses, conhecida também com o nome de pandorga, continua sendo a rainhas das brincadeiras, principalmente nas comunidades mais humildes, impossibilitada às diversões eletrônicas de alto custo. Por um papagaio, o cGente de Opiniãoaçador de pipas mirim é capaz de atos impensáveis para um adulto.

Na minha cidade, no interior da Bahia, a gente chamava “arraia”, nome feminino, figura retangular, entretanto exercia o mesmo papel: navegar pelos ares! Sim, eu sei que a arraia original navega pelos mares, no fantástico universo julioverniano das Vinte Mil Léguas Submarinas, mas é nos ares que se dá A Volta ao Mundo em 80 Dias, nossa arraia de papel de seda exercia poderes de fada: a varinha de condão que por um fio nos levava ao céu, à pátria maior da imaginação, à morada dos deuses, à extensão de nossos sonhos, principalmente, ao porto de nossos olhos sorridentes.

Os papagaios, as arraias, as pandorgas e as pipas enfeitaram os céus de inúmeras cidades, ao redor do mundo, durante vários séculos. Incentivaram invenções: Leonardo da Vinci desenvolveu mais de cem objetos voadores, baseado na potencialidade das pipas; Benjamim Franklin chegou à criação do para-raios através de experiências com uma pipa; o 14-BIS, de Santos Dumont, também foi inspirado na brincadeira, não passava de uma pipa motorizada, sem linha; Marconi a utilizou em sua experiência com transmissões de rádio, enfim, a pipa foi a vedete da criançada  e de vários inventores.

O efeito vassoura de bruxa, às vezes, pendia a garotada para as bandas da sociopatia: puxando o fio com maestria, deslocando o papagaio de um lado para outro, o garoto ia cortando, matando, acabando com o prazer do concorrente, um deleite psicopata momentâneo, próprio do flerte natural do jovem com o mal. Quem nunca flertou com o mal, que atire a primeira pedra. Este efeito, aparentemente maléfico, desencadeava a alegria no seio dos caçadores de pipas quedadas.

Psicólogos defendem o pensamento de que os empinadores de papagaios podem ser analisados sobre vários aspectos: os que empinam pelo prazer de desfrutar a beleza colorida, singrando e sambando altaneiro no céu; os que empinam para competir – qual a maior pipa, a que sobe mais, a que melhor dança, a maior rabiola, etc. e os que usam a brincadeira com maldade, usando vidros, gilete, fórmula química, com o único intuito de destruir o brinquedo do outro, verdadeira concorrência desleal.

Antigamente o cerol, ou o tempero, como a gente chamava na Bahia, servia apenas para cortar a linha do adversário, era fraco e dificilmente provocava acidentes, o segredo da fórmula era guardado pelos garotos como a patente de uma invenção criativa.

Devido a estes projetos maléficos, a inocente brincadeira de soltar papagaios se transformou, em muitas regiões, numa atividade proibida, há casos de mortes provocadas por cortes de linha de cerol, outros tiveram que ser levados ao hospital com o pescoço cortado, motoqueiros e ciclistas passaram a dirigir com mais cautela, em ruas, onde se costuma soltar pipas.

Há algum tempo, presenciei um tresloucado ato de um garoto, meu vizinho, autêntico caçador de papagaios. Ao perceber que a prenda perseguida se enroscara no alto de um majestoso Açaizeiro, correu a sua casa, se apoderou de um facão e estupidamente cortou o Açaizeiro, ignorando meus gritos e protestos: o universo conspirou contra a “inocência” (ou será ignorância?) do beiradeiro de 12 anos – ao cair, o açaizeiro danificou totalmente a estrutura do papagaio e rasgou o papel.

O sorriso amarelo do menino decepcionado ouviu de meus olhos encharcados: Altas torres, bonitos penachos, energia nos frutos que dão em cachos. O garoto, sem entender o choque de opiniões, saiu carregando o cadáver de seu papagaio e eu, impotente, assisti o último suspiro do pé de Açaí.

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Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e vice-presidente da ACLER – Academia de Letras de Rondônia, onde ocupa a cadeira 31.             

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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