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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Francisco Solano López – Parte V


Francisco Solano López – Parte V - Gente de Opinião

Bagé, 27.05.2020

 

Vejamos, agora, alguns quadros desta crudelíssima Campanha pela lavra de um ilustre militar e historiador que participou ativamente de toda Guerra do Paraguai.

 

O General honorário do Exército Brasileiro, voluntário da Pátria, Cavaleiro das Ordens Militares de Cristo e da Rosa, foi condecorado com as Medalhas de Bronze e Passador de Prata n° 5 do Mérito e Bravura Militares, de Prata da República Argentina, de Ferro com Sol de Ouro do Estado Oriental do Uruguai ‒ por relevantes serviços militares prestados na Campanha da Tríplice aliança. O General Pimentel como costumava dizer o General Manuel Deodoro da Fonseca, "fizera a guerra do Paraguai de fio a pavio". Natural de Rio Formoso, Estado de Pernambuco, personificava as qualidades mais nobres e audazes do Soldado Brasileiro. Diferente de outros autores que escreveram suas obras sobre a Guerra do Paraguai no conforto e tranquilidade de seus gabinetes ou consultando livros nas bibliotecas ele a vivenciou, percorrendo o campo de batalha e combatendo o inimigo.

 

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Guerra do Paraguai – Episódios Militares

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General Joaquim Silveira de Azevedo Pimentel

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Tipografia à Vapor A. dos Santos, 1887

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XIX – A Nudez

 

A 31 de maio de 1869, partiu no Piraiú, com uma Força de Cavalaria e quatro bocas de fogo, o Brigadeiro João Manoel Menna Barreto [de saudosa e gloriosa memória], para o Sudoeste da República, por Ibitimi até Vila Rica, a fim de ir libertar naquela direção militares de famílias paraguaias, que pediam com instância o socorro dos brasileiros que as livrasse das garras do ditador, cuja perversidade se tornara crescentemente assombrosa. Seguiu essa coluna, destruindo em sua passagem toda a resistência que o inimigo tentou opor-lhe, incendiou a fábrica de pólvora do Ibicuri e, chegando à Vila Rica, daí voltou conduzindo e protegendo as famílias que não imploraram debalde nosso auxílio e apoio. Deixemos falar o Diário do Exército [página 26], do Comando-Chefe do Sr. Conde d’Eu:

 

Dia 10 [junho de 1869].

 

[...] o General João Manoel anunciava a sua chegada a Paraguari às seis horas da tarde daquele dia, depois de ter-se visto obrigado a lutar com os paraguaios, cujo esforço principal fora isolar a coluna da frente da de sua retaguarda, que trazia marcha muito demorada em consequência de grande acompanhamento de mulheres e crianças [...]

 

Dia 11 [junho de 1869].

 

Sua Alteza foi pela manhã até Paraguari, a três e meia léguas de distância, e encontrou a Força do General João Manoel, que saía daquele povoado precedida de uma coluna de velhos, mulheres e crianças, em número de mais de 4.000 pessoas, cujo aspecto indicava os últimos limites da desgraça e dos padecimentos. Às 3 horas da tarde, essa gente magra, nua, raquítica, curvada ao peso de longa tirania, acabrunhada pela fome de muitos meses, entrava no acampamento de Piraiú.

 

Todos mostravam intensa alegria por ver enfim terminado um tempo de sofrimentos inaturáveis, que já haviam feito sucumbir muitos milhares dentre eles, tempo marcado pela nudez que os fazia cobrir-se de tiras de couro e pela fome que os impelia a comer frutas azedas, porque o despotismo do Chefe da Nação proibia-lhes a matança do gado e até a colheita de laranjas doces.

 

O que sobremodo compungiu o caráter brasileiro foi a nudez total, absoluta, das desgraçadas mulheres. Dentre elas destacavam-se donzelas, senhoras da melhor e mais aristocrática sociedade do Paraguai, formas de uma pureza e correção ideais, que, ao cruzarem o olhar com os nossos oficiais e soldados, subia-lhes ao rosto o rubor do pejo de tal modo, que prontamente acudiram-nos aos olhos lágrimas de sincera comiseração. Ao desfilar o cortejo da nudez feminina, acendeu-se no coração de todos uma ideia idêntica e gerou-se em todos os Pensamentos uma palavra só:

 

     Camisas!

 

Rápidos nas boas obras, como na compreensão de seus deveres militares, soldados e oficiais mergulharam prontamente em suas barracas. Aqueles, das mochilas, e estes das macas, arrancavam, pressurosos, camisas e lençóis. Nesse instante o espetáculo da nudez desapareceu da vista dos libertadores. Atiravam-se camisas por cima das senhoras e donzelas, e transformou-se a procissão numa espécie de irmandade de capas brancas, respeitável pelo número de confrades. Coisa admirável! Ninguém riu daquele grotesco cortejo! As senhoras, que agora viam-se protegidas pelo natural pudor, até aquele momento expostos às vistas gerais, ergueram gentilmente suas cabeças agradecidas e murmuraram reconhecidas:

 

     Deus lhes pague, generosos “inimigos”!

 

Nesse dia a alegria no acampamento foi completa. As mochilas, porém, dos soldados e as macas dos oficiais só ficaram possuindo meias e lenços; tudo o mais fora distribuído.

 

     Eis o que se chama, dizia um Cadete muito feio a um colega ‒ despir um santo para cobrir outro.

 

     Enganas-te, amigo.

 

     Devias dizer: despir um diabo para cobrir um anjo!

 

Referia-se o Cadete ao fato de ter tido aquele a ventura de pôr sobre os ombros de uma beleza paraguaia sua alva camisa de algodão. (PIMENTEL)

 

XXII – O Requinte da Audácia

 

(Audaces fortuna juvat [1])

 

Um dos episódios mais belos e talvez mais românticos que antes parece lenda medieval, acha-se ao abrir o Diário do Exército do tempo do comando do Sr. Conde d’Eu. É para lamentar que esse magnífico repositório de esplendorosos feitos tivesse uma edição resumida, e que bem pouca gente possua o conhecimento de tão útil publicação. A maneira singela com que ali se referem os fatos é sua melhor recomendação.

 

Portanto, limitemo-nos a copiar “ipsis verbis” ([2]) tudo quanto nos vai dar um dos mais belos fatos da grande Campanha que nos tem fornecido matéria para estes artigos, e que no futuro há de fazer pasmar a quem dela tiver conhecimento. Aí vai a transcrição:

 

Dia 22 [dezembro de 1869].

 

O Tenente-Coronel Antonio José de Moura partiu com destino ao passo Espadim no rio Iguatemi, à frente de 50 praças de cavalaria bem montadas. O ardente desejo de salvar sua família o leva a essa arriscada empresa, para a qual conseguiu finalmente licença do Sr. Conde d’Eu.

 

Interrompamos, por um pouco, a transcrição. O Tenente-Coronel Moura tinha no Espadim, lugar destinado aos desterrados de López que haviam de ser trucidados depois, uma irmã com duas filhas. Essa senhora, natural do Rio Grande do Sul, casara-se com um português morador em Vila Rica, no tempo de López pai; e depois da morte do marido continuou a permanecer naquela vila, até que por ordem do ditador foi arrancada de sua habitação e, depois de longas marchas, atirada no degredo de Ilhu, e ainda posteriormente no de Iguatemi. Ao saber o distinto oficial que sua irmã e sobrinhas estavam ameaçadas de morte certa, pediu licença, implorou ao General-Chefe que o deixasse ir em socorro da família.

 

O Conde d’Eu negou-a diante do perigo da empresa, mas Moura insistiu com tenacidade. Aquela energia, e força de vontade, aquele desejo veemente de salvar a família, acabou por vencer. O General-Chefe tinha coração e também gozava da ventura de ser chefe de família Cedeu. Moura escolheu 50 amigos e partiu. Continuemos a transcrição:

 

Dia 1 [Janeiro de 1870].

 

O Tenente-Coronel Antonio José de Moura deu uma circunstanciada e curiosa parte, datada de 29 do mês próximo passado, de sua memorável expedição ao rio Iguatemi a fim de ir salvar as famílias destinadas a perecer de fome no acampamento do passo Espadim.

 

No dia 22 de dezembro último, saíra ele, às 10 horas da manhã, do passo do rio Curuguati, junto ao qual estava acampado. Levava 50 homens de cavalaria bem montados e melhor dispostos ainda. Na madrugada de 23, chegou ao rio Jejuí-Guaçu, cuja transposição lhe tomou bastante tempo por ser a corrente profunda e de grande força d’água, entretanto, nesse mesmo dia alcançou a Vila de Iguatemi, onde deixou dez homens de observarão com um inferior e pôde seguir além. Depois de pequeno alto de descanso, caminhou toda a noite e, às 8½ horas do dia 24, chegou à base da grande serra de Maracaju, cuja subida era preciso vencer para ganhar o chapadão em que correm o Escopil e o Iguatemi, confluentes do Paraná. Essa subida era abrupta e além disso pejada com grandes pedras e grossos madeiros atravessados. Com seis homens atirou-se Moura à obra e, ora cortando mata entrançada, ora esgueirando-se por entre galhos caídos, atingiu, com uma légua de penosa ascensão, o planalto.

 

Aí existira uma guarda. Contudo, o rancho achava-se abandonado, ou melhor, ocupado, não mais por soldados, mas sim por mulheres que fugidas de Espadim, haviam parado, baldas de forças, uma delas já moribunda. Duas eram espanholas, as outras paraguaias. Estavam de viagem havia 6 dias, tendo 4 dias antes sido encontradas por espiões partidos de Panadero, os quais aceitaram a desculpa de que vinham buscar laranjas azedas ([3]) e a promessa de que voltariam logo para o acampamento. O Tenente-Coronel procurou então desentulhar o caminho para fazer subir a sua gente, mas a princípio nada conseguiu.

 

Por isso despachou duas paraguaias para que fossem ao Espadim e de lá viessem guiando as suas companheiras de infortúnio até aquele ponto. Partiram elas; decorreram algumas horas e a impaciência deu forças novas aos que esperavam. Tentando ainda uma vez descobrir a subida, conseguiram abrir sinuosa trilha por onde passaram 20 homens a cavalo. Vinte outros ficaram de proteção na base; sentinelas destacadas no deserto, tão valentes como os valentes que buscavam o desconhecido. Ficou comandando o Alferes Francisco Carvalho de Moura. O Tenente-Coronel Moura caminhou três léguas em terreno plano até chegar a um cruzamento de estradas, das quais a mais batida era a da esquerda e foi por ele seguida na distância de duas léguas. Parou então. Essa estrada levava a Panadero, e como sinais incontestáveis jaziam cadáveres de mulheres, homens, crianças e velhos que dias antes tinham sido degolados.

 

O Tenente-Coronel retrocedeu e, depois de deixar quinze homens na encruzilhada, seguiu com cinco praças pela outra estrada, se bem que a noite já estivesse bastante adiantada. Depois de certo tempo de marcha, dois cavalos afrouxaram, e os soldados que os montavam tiveram que apear-se e os ir tocando por diante. Afinal, às 11 horas e meia, encontrou Moura três ranchos atopetados de famílias, mulheres e crianças, acocoradas ao redor de grandes fogueiras. O abalo que essa desgraçada gente recebeu foi imenso; umas desatavam em pranto ruidoso, outras fugiam espavoridas e corriam sem direção; a maior parte, agrupada ao redor dos brasileiros, os abraçava e os aclamava! Informaram que o acampamento distava ainda uma légua e duas delas serviram logo de vaqueanas ([4]).

 

A uma hora da madrugada chegou Moura à barraca do arroio Espadim, do outro lado do qual estava o acampamento das exiladas, sete léguas distante do cume da serra. Foram despachadas as duas mulheres e, com suas três praças, ([5]) atravessou o intrépido rio-grandense o arroio sobre o grosso madeiro que fazia de pinguela. Entrava enfim nesse local, em que já haviam perecido centenas de infelizes, depois de cruel martírio. Aí tinham-se passado cenas curiosas. As mulheres, enviadas do alto da serra, cumprindo com pontualidade a sua comissão, haviam procurado as duas sobrinhas do Tenente-Coronel Moura e anunciado a sua próxima chegada, dando a ele o nome de Antônio Guimarães nome que, por coincidência singular, era também o de um parente delas.

 

A notícia da vinda dos brasileiros circulou logo, confirmando o dito de um índio Caiuá, que de manhã viera espontaneamente trazê-las ao acampamento. Entretanto, as desgraçadas mulheres acreditaram mais num embuste para melhor perdê-las, como costumava ordenar o tirano Solano López, do que na possibilidade da verdade, e convenceram-se disso vendo chegar, às 8 horas da noite, dois espiões paraguaios.

 

Esses homens, demorando-se até uma hora da madrugada, presenciaram a chegada das outras duas mulheres que precediam o Tenente-Coronel Moura e que imediatamente produziram grande agitação no arranchamento, gritando que aí vinham os brasileiros. Presas, interrogadas, iam ser elas degoladas, quando penetraram na palhoça os salvadores que incontinenti mataram os dois espiões.

 

A alegria que demonstraram as destinadas ([6]) foi indescritível. Mulheres, com fachos acesos, corriam de um lado para outro dando gritos descompassados; muitas caíram em delíquio ([7]); outras expiraram de emoção e por todos aqueles pontos erguiam-se preces e cânticos de grupos que, ajoelhados, agradeciam a Deus a sua providencial salvação. O resto da noite passou-se assim.

 

As 4 horas da madrugada de 25, Moura reuniu 1.200 dessas mulheres e as dividiu em terços que deviam caminhar a certa distância um dos outros. A precipitação, porém, em sair daquele horrível lugar foi tal, que pinguela cedeu ao peso de muitas que queriam passar e entregou às águas velozes do Espadim, as mais apressadas.

 

Consertada a passagem, saíram todas e encetaram marchas forçadas que as trouxeram até Iguatemi, ficando, porém, de fraqueza e desânimo estendidas pelo caminho mais de metade. Entraram, pois, em Curuguati quatrocentas e tantas. É de crer, contudo, que muitas ainda possam vir se arrastando.

 

A irmã do Tenente-Coronel Moura havia falecido quatro dias antes da chegada deste ao Espadim, deixando duas filhas já núbeis ([8]) que puderam ser salvas. Tal foi a expedição do impertérrito ([9]) Tenente-Coronel Antonio José de Moura. (PIMENTEL)

 

Bibliografia:

 

PIMENTEL, Joaquim Silvério de Azevedo. Episódios Militares – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editor Tipografia a Vapor A. dos Santos, 1887.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·    Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·    Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·    Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·    Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·    Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·    Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·    Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·    Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·    Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·    Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·    Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·    Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·    Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·    E-mail: [email protected].



[1]   Adaptado de um verso da Eneida de Virgílio – significa literalmente “a sorte sorri para os audaciosos”.

[2]   “Ipsis verbis”: com as mesmas palavras.

[3]   Laranjas azedas: as doces eram proibidas, porque estavam reservadas somente para o exército! (PIMENTEL)

[4]   Vaqueanas: guias. (PIMENTEL)

[5]   Com suas três praças: parece fabuloso! (PIMENTEL)

[6]   Destinadas: na linguagem oficial de Solano López, queria dizer – condenadas a morrer de fome ou degoladas. (PIMENTEL)

[7]   Delíquio: chiliques.

[8]   Núbeis: em idade de casar.

[9]   Impertérrito: destemido, impávido.

Francisco Solano López – Parte V - Gente de Opinião

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