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Montezuma Cruz

Seu José Lucas faz 102 anos, mas a Pátria lhe dá as costas


Seu José Lucas faz 102 anos, mas a Pátria lhe dá as costas - Gente de Opinião

Aos 102 anos de idade, o cearense José Lucas do Bonfim espera por justiça. Ex-soldado da borracha, ex-garimpeiro, ex-picadeiro nos anos 1930 no interior rondoniense ainda pertencente ao antigo Mato Grosso, ele perdeu a vista esquerda, está diabético, convive com a gastrite e recupera-se do fêmur quebrado.

No entanto, nem os problemas de saúde e todas as dificuldades que já enfrentou tiram a serenidade deste herói que ajudou a desbravar a Amazônia Ocidental numa época ainda mais inóspita e insalubre. Hoje, 29 de novembro, ele aniversaria, lúcido, tranquilo, compartilhando conosco parte de sua história de vida e um verdadeiro exemplo de superação.

Tempos atrás, José Lucas submeteu-se a uma cirurgia de hérnia num hospital no Bairro Cachoeirinha, em Manaus. Em Porto Velho, passou 22 dias internado nos hospitais de Base e João Paulo II, antes de perder parcialmente a visão.

Mesmo analfabeto, aprendeu a falar francês, inglês e alemão, e com isso foi intérprete no Arquipélago de Fernando de Noronha (PE)*, onde funcionava a Base Americana para rastreamento aéreo durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), orgulhoso, ele pronuncia um pouco dessas línguas. José Lucas chegou ao arquipélago após a desativação do presídio construído no governo de Getúlio Vargas. O Brasil entrava na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e Fernando de Noronha servia como base para a defesa nacional.


“Pouca gente sabe da minha dor, mas, com sinceridade, lhe digo que sou brasileiro, obediente às leis da Pátria e de Deus”, afirma José Lucas.


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Os remédios que consome diariamente

Sem dinheiro para comprar remédios caros e aqueles de uso contínuo, muito menos para consultar médicos, o ex-soldado só não está abandonado, porque encontrou pessoas amigas. Uma delas é Maria de Nazaré Costa Azevedo, 56, ribeirinha do interior de Humaitá, que vem cuidando dele numa pequena casa de madeira no Setor Chacareiro (zona leste), em Porto Velho.

Eles não são casados. Dona Maria tem um pequeno sítio no Lago Acará, no interior de Humaitá (AM), onde cria galinhas, carneiros e bodes. “Ele se realiza quando estamos lá”, ela diz. “Caminha para todo lado, nem parece que passou por esses momentos difíceis da doença”, acrescenta.

No entanto, numa volta recente daquela localidade, seu José Lucas desembarcou em Porto Velho com infecção intestinal.

ex-soldado da borracha não se casou, porém, adotou cinco filhos, todos eles moradores no Amazonas e nenhum se inconformou o suficiente com o sofrimento do pai.

HISTÓRIA CHEIA DE EMOÇÕES

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Ele venceu doenças, quebrou o fêmur, e é diabético

“Eu saí menino de Viçosa do Ceará [microrregião da Ibiapaba] e ainda menor de idade tive a honra de participar das picadas abertas pela expedição do marechal Rondon”, conta.

Não tinha direito a receber pagamentos mensais aos quais a tropa fazia jus, porém, aprendia a dura arte do desbravamento quando as leis trabalhistas ainda não puniam o trabalho infantil.

“Eu carregava cabaças de água nas costas pra matar a sede daquele povo”, recorda. “Rondon era madrugador, ele dizia assim: pra quem for bom, eu sou um pai”. Na extensão da linha telegráfica, iniciou a viagem em Cuiabá, passando por Jangada [por onde antigamente passava a rodovia BR-364] e Rosário Oeste, até chegar ao território indígena Pareci, dali para o Juruena, Roosevelt, Aripuanã e Madeira.

Coincidências da vida: nascido numa antiga região indígena cearense, séculos atrás habitada por índios Tabajaras [do ramo Tupi], Anacé, Arariú e Croatá [do ramo Tapuia], veio auxiliar o extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em Rondônia [ainda Matto Grosso].

Em 1931, ele era amigo do lendário padre Cícero Romão Batista, de Juazeiro do Norte, e já tinha noções de justiça. Chegando a Porto Velho conheceu ferroviários da Madeira-Mamoré e “desceu” ao Vale do Guaporé a serviço do Serviço de Proteção ao Indígena (SPI). “O Manoel do Cai n’água foi um dos primeiros amigos meus” – referindo-se possivelmente a um comerciante da margem do Rio Madeira.

Antes de alcançar a região do Abunã, andou muito a pé e de canoa, navegando em pequenos e grandes rios. Conta que ajudou a conduzir índios Tubarão para uma área de terras com roças de um homem conhecido por Artur Gusmão.


“Desses aí eu digo que Urutá era a mais linda, o Caripá e o Pirará [líderes naquele período] os mais brabos; mas eu ajudei a abrir a terra Cinta-larga e sabia que lá tinha muito diamante", relata.


José Lucas estreitou seus laços com religiosos jesuítas. Menciona os nomes de alguns deles: freis Alberto, Angélico, Edmundo e Plácido. Lembra-se que até o primeiro bispo da Prelazia de Guajará-Mirim, o espanhol dom Francisco Xavier Rey, fazia suas desobrigas viajando de canoa pelos rios Pacaás Novos, Mamoré e Guaporé.

Os sonhos povoam sua memória:

“Urucumacuã existe sim!” – fala aludindo-se às lendárias minas de ouro alardeadas nos tempos do marechal Rondon.

A vida boêmia, nômade e perdulária do garimpeiro que bamburra, mas gasta fortunas na farra está viva em sua memória: “Eu e o Ceguinho ficamos de mão abanando no rio Machado e no Jaru”.

O QUE FAZER?

Nas andanças pela antiga aldeia Pacaá nova, entre Guajará-Mirim e Costa Marques, usava canoa de 20 metros, na qual cabiam 12 pessoas acomodadas. “Tinha muitas cobras no túnel do Forte Príncipe, eu passei oito dias lá dentro”, conta.

Quando houve o recrutamento de soldados para lutar nos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial, na Itália, ele não queria ir e foi se esconder num lugar próximo a Manicoré, no sul do Amazonas.  Capturado, foi levado de navio, de Manaus para o Rio de Janeiro, e de lá, para Fernando de Noronha, juntamente com outros 70 presos nordestinos. A base militar teve sete mil homens transferidos de diversas regiões.

“Esse navio passou pelo Porto Cabedelo (PB), depois, entramos no navio de guerra e no Rio fomos examinados no HGI e HCE [dois hospitais militares]. Eles me disseram: você é brasileiro com sangue de estrangeiro”.

Retornando a Fernando de Noronha, iniciou o trabalho de intérprete, o qual aprendeu totalmente pela prática. Em 1945, José Lucas recebeu o certificado de reservista do Exército Brasileiro. Por não possuir documento algum que revele sua trajetória entre o nordeste e a Amazônia, ainda não pôde ser indenizado. Em 1990, teria ouvido de um servidor do INSS que poderia se aposentar pelo Funrural, “desde que lá aparecesse mutilado do braço ou da perna”. Mais uma dor.

Tentou recorrer ao Exército, esclarecendo a sua contribuição aos países aliados, enquanto esteve em Fernando de Noronha, ou seja, um ex-combatente. Soube, então, de três situações: 1) quem embarcou para o teatro da Guerra, alcançou posto superior; 2) quem não embarcou, chega ao máximo ao posto de tenente; 3) ou se aposentar como soldado da borracha. Nesse aspecto, conversou até com um promotor de justiça.

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O primeiro pedido de um lote de terras

PEDIDO ARQUIVADO

“Onde está o meu direito?”, ele pergunta. A mesa forrada de remédios dá a noção exata do seu empenho em se manter vivo e em cores. No dia em que recebeu os repórteres, quarta-feira (27), vestia uma camisa amarelo claro, calça bege e calçava sandálias.

“Apenas um lote para plantar uma rocinha” – quer pedido mais simples e objetivo? Pois foi com essa intenção que, em 1982, alguém datilografou um ofício no qual seu José Lucas solicitou o direito a um pedaço de terra.

O pedido inicial resultou no Memorando nº 975/82, carimbado pelo coordenador especial do Incra em Rondônia, Adhemar da Costa Sales. Tratava-se de um homem que chegara à Amazônia em 1942, para trabalhar dia e noite na extração do látex.

Ele até aceitaria um lote em Jaru, onde trabalhara para o seringalista Raimundo Ferreira. Ali conhecera muita gente e mais tarde fora um dos primeiros garimpeiros na Serra Sem Calças.

Em 26 de maio, saía o parecer do Grupamento Fundiário da Coordenadoria Especial, assinado pelo executor João Gomes Cavalcanti. Já em 1º de setembro de 1988, o chefe da Divisão de Recursos Fundiários, Josemar Bezerra Martins encaminhava o documento ao executor do Projeto Fundiário do Amazonas, Diógenes Alves. Veio, então, o veredito: “Como não existe nenhum programa previsto para assentamento de soldados da borracha, ou seringueiros, sugerimos o arquivamento dos presentes autos por perda da finalidade à qual foi proposto”.

A sina de seu José Lucas continua, mas algo indica que possa melhorar a sua situação ao fazer aniversário neste 29 de novembro de 2019. Ele é um herói amazônico, carente, sofrido, mas perseverante.

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SAIBA MAIS:

A decisão de fazer o Arquipélago um espaço avançado de guerra começou em 1941, quando por lá existia um Presídio Político, instalado desde 1938. Uma Comissão militar foi incumbida – pelo Governo Federal – de avaliar e definir a melhor forma de ocupação daquele espaço em favor de garantia da segurança nacional. E a conclusão desses estudos foi que “o arquipélago não era lugar indicado para presídio e sim para uma base área naval ou militar. Sugestão aceita e foi providenciada a retirada de todos os presos políticos, adaptando-se os lugares por eles antes ocupados, como base de guerra.

Era um momento histórico e a situação internacional era difícil. Em fevereiro de 1942 o Conselho de Segurança Nacional, elencava razões em favor da ocupação militar do arquipélago, como "o afastamento da costa brasileira" e a “falta de condições para a agricultura, a indústria e o comércio. Cumprindo a determinação, cerca de três mil pracinhas foram enviados para o Arquipélago, com todas as dificuldades da arriscada travessia.

Lá, por todos os lados, implantou-se o esquema de acomodação dos soldados e de recebimento e instalação de mais de 50 canhões, de outros equipamentos bélicos e de veículos que viriam a danificar as seculares estradas do sistema viário do século XVIII, entre outros danos visíveis até os nossos dias.

Como acordo de cooperação técnica, instalou-se também a Base Americana de Guerra, na região situada entre a Baía Sueste e a Praia de Atalaia, substituindo-se a vegetação existente por barracões com diversas finalidades (inclusive moradia temporária), alguns dos quais resistem, reutilizados para outros fins. Sem esquecer do perigo que significou a proximidade dessa Base com o Mangue do Sueste, única ocorrência dessa espécie em ilha no Atlântico Sul.

[Da historiadora Marieta Borges e Silva, autora do livro Fernando de Noronha: cinco séculos de história].

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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