Terça-feira, 23 de fevereiro de 2016 - 14h16
Quando eu era criança costumava ficar horas olhando o meu pai manusear os documentos e fotografias que ele guardava.
Aquele retrato preto e branco, com uma família grande, todos negros e bem vestidos, sempre me chamava a atenção.
- “Pai, é a nossa família?”
- “Não. São os...!”
Meu pai falava um nome diferente e eu sempre esquecia.
- “Pai, não tem ninguém da nossa família neste retrato?”
- “Não.”
- “Este retrato é tão bonito! O senhor tem outros parecidos com este?”
- “Não. Igual a esse não há!”
Eu repeti estas perguntas, conscientemente, ao longo de anos!
Tinha a esperança de que o tempo fizesse o velho Pierre me dar as respostas que eu queria ouvir.
Na enésima vez me rendi aos fatos e perguntei:
- “Pai, e quem são esses...?”
- “Giovanni, eles são uma família muito distinta!”
Nunca esqueci essa resposta pois o meu pai reservava este elogio a pouquíssimas pessoas.
O retrato da família com um sobrenome diferente e o elogio do meu pai preencheram uma lacuna histórica e o fato daquele não ser o retrato da Família Harvey deixou de ser relevante.
Cresci num tempo no qual a representação visual dos nossos antepassados se restringia a desenhos, pinturas e retratos ambientados no período da escravidão e, neste contexto, “o retrato que não era nosso” era “tão nosso como se fosse” ao ponto de funcionar como uma espécie de escudo.
A imagem daquela família, todos negros e bem vestidos, contrapunha os estereótipos aos quais eu me expunha na escola e que eram reproduzidos pelos meios de comunicação.
O tempo passou, meu pai morreu aos 94 anos e, quase 50 anos depois da primeira vez que eu vi o retrato nas mãos dele, encontrei a mesma imagem numa página dedicada a preservação da memória dos imigrantes antilhanos.
Não encontrei apenas a imagem: constava a data aproximada, 1950, a identificação do local, Porto Velho, e o sobrenome da família retratada.
Foi como se o tempo tivesse voltado e eu pudesse ouvir, compreender e memorizar a voz do velho Pierre respondendo para mim, com a voz empostada e a pronúncia impecável:
- “São os Shockness!”
Agora o nome que eu não ouvia direito, não compreendia e não memorizava me soa absolutamente familiar.
O sentimento de culpa que eu tinha por ter esquecido o sobrenome daquela distinta família se esvaiu como a fumaça das locomotivas da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
Percebi que a coisa mais importante que o velho Pierre me falou sobre a Família Shockness eu nunca esqueci.
Agora sou eu o velho que manuseia documentos e fotografias sob o olhar de curiosidade das minhas filhas.
- “Pai, é a nossa família?”
- “Não, mas é como se fosse a nossa família! É a Família Shockness.”
- “Quem são os Shockness?”
- “Eles imigraram para o Brasil na mesma época da sua bisavó, Mary Harvey, e moram em Porto Velho”.
- “Você já conheceu os Shockness?”
- “Conheci sim, filha, eles são uma família muito distinta!”
Giovanni Harvey
Descendente de Barbadianos
Ex – Secretário da SEPPIR – Secretaria de Políticas Públicas de Igualdade Racial do Governo Federal
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