Sábado, 3 de agosto de 2013 - 19h37
Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 03 de agosto de 2013.
Tenho a honra de responder categoricamente a V. Exa. que a desigualdade de forças sempre foi um estímulo que animou os portugueses, por isso mesmo, a não desampararem os seus postos e defendê-los, até as suas extremidades, ou de repelirem o inimigo ou sepultarem-se debaixo das ruínas dos Fortes que se lhes confiaram: e nesta resolução se acham todos os defensores deste presídio (praça de guerra), que tem a honra de ver em frente à excelsa pessoa de V. Exa. a quem Deus guarde muitos anos. (Cel Ricardo Franco de Almeida Serra)
- Origens da Engenharia Militar
A primeira civilização a contar com elementos totalmente dedicados à Engenharia Militar foi, provavelmente, a Romana, cujas Legiões contavam com um corpo de engenheiros conhecidos como “architecti”. O advento da pólvora e a invenção do canhão deram um grande impulso à Engenharia, que teve de adequar suas fortificações para fazer frente ao poder das novas armas.
- Engenharia Militar no Brasil
Desde o Brasil Colônia os Engenheiros Militares absorveram e aprimoraram a arte portuguesa de planejar e construir fortificações, edificações e acessos. Os testemunhos das obras realizadas, pela Engenharia Militar Luso-brasileira, solidamente construídas e estrategicamente localizados ainda fazem parte de nossa paisagem como bastiões de nossas fronteiras marítimas e terrestres.
Naqueles tempos ser engenheiro pressupunha ser, obrigatoriamente, Oficial do Exército, já que o ensino regular de Engenharia estava ligado à vertente militar. Em 1792, foi criada a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, uma das primeiras escolas de Engenharia do mundo, embrião do Instituto Militar de Engenharia (IME) e da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na Real Academia é que se começou a estender o acesso de civis aos conhecimentos técnicos de Engenharia resultando, em 1874, na separação do ensino civil do militar, só então surgindo a “Engenharia Civil”.
- Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra
O Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra, militar de origem portuguesa nasceu na cidade do Porto, em Portugal, no dia 03.08.1748. Formado em Engenharia e Infantaria, integrante o Real Corpo de Engenheiros (R. C. de E.) do Rei de Portugal veio para o Brasil, nos idos de 1780.
Aqui chegando, Ricardo Franco prestou incontáveis contribuições no campo da construção de fortes e levantamentos topográficos, cumprindo a missão de desbravar e proporcionar melhores condições de defesa das fronteiras Norte e Centro-oeste do Brasil Colônia, que ainda se encontrava em formação.
Vamos repercutir parte da biografia de Almeida Serra escrita por Virgílio Alves Correia Filho. O engenheiro, jornalista e historiador, conhecido como, Virgílio Correia Filho nasceu em Cuiabá, MT, no dia 06.01.1887, foi Secretário Geral do Estado de Mato Grosso (1922-1926), Secretário Geral do Conselho Nacional de Geografia (1950 e 1956), membro da Academia Mato-grossense de Letras, de Institutos Históricos Estaduais, da Academia Portuguesa de História e Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1931). O texto foi publicado na: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (RIHGB) ‒ Volume 243 ‒ Abril-Junho – 1959.
Ricardo Franco de Almeida Serra
Virgílio Correia Filho
FRONTEIRO IMPÁVIDO
Desprovido de tudo mais, poderia, em compensação, contar com a dedicação inexcedível de Ricardo Franco, a serviço de impávido patriotismo. Sem demora, destacou o ajudante Francisco Rodrigues do Prado para organizar a defesa do vale de Miranda, onde estabelece um Fortim, assim denominado, em homenagem ao Governador no 1° aniversário de sua chegada a Vila Bela. (FILHO)
O Capitão Reformado do Regimento de Milícias destas Minas, Guarda-Mor das Mesmas, e Fiscal dos Diamantes Joaquim da Costa Siqueira assim relata no seu Compêndio Histórico Cronológico das Notícias de Cuiabá, Repartição da Capitania de Mato-Grosso desde o Princípio do ano de 1778 até o fim do Ano de 1817.
O Tenente-Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra, Comandante em chefe da fronteira do Paraguai, participou em data de 23 de Agosto que os índios Guaicurus verificavam a guerra entre nós e os espanhóis, e entre as notícias que davam, diziam que lhes tinham certificado no Forte de Bourbon que D. Lázaro da Ribeira, Governador da cidade da Assunção, era esperado ali para vir atacar o Presídio de Coimbra. Com estas notícias empregou-se o dito Tenente-Coronel em contentar aqueles índios por todas as formas, comprando-lhe igualmente seus cavalos por baetas, facões, machados e outros gêneros que eles estimam muito, afim de os não venderem aos espanhóis, que solicitavam esta compra com dois fins, um para que eles sem tantas cavalgaduras lhes não fossem fazer inversões nas suas terras, e outro para privarem-nos deste indispensável auxílio. (SIQUEIRA)
E, em pessoa, dirige as obras do Forte, que deveria substituir a frágil estacada, vista pela espionagem castelhana, quando solertes comitivas, de D. Pedro Benites, sobrinho de Espíndola e outros, inclusive o Ministro da Real Fazenda, D. Barnabé Gonzalez, a visitaram, de maio a outubro. (FILHO)
No dia 12 de Setembro, depois de ter pedido socorro a esta Vila, mandando duas canoas armadas com o destino de saberem dos índios que viviam próximos ao dito Forte de Bourbon o estado e movimento dos espanhóis, sucedendo que passando pelas 03h00 pela Boca da Baía Negra, dez léguas de navegação abaixo do Presídio de Coimbra, ali foram atacados por mais de vinte canoas de Papagúas com alguns castelhanos dentro, sustidas por um grande bote, gritando todos “entrega”, “entrega”, dando fogo às armas, que felizmente não dispararam. Os portugueses deram sete tiros, com que afastara aqueles índios, e retiraram-se. (SIQUEIRA)
Cuidou, de princípio, de evitar pretexto para a repetição de observadores suspeitos, mediante viagens de pessoas de sua confiança ao posto paraguaio de Bourbon, onde entregassem a correspondência e recebessem as respostas enviadas de Assunção. E como o seu projeto merecesse aprovação do Capitão-General, cumpria-lhe executá-lo a todo o transe, ainda que servisse até de pedreiro, como ocorreu. E a despeito das doenças que o molestavam, por vezes, conseguiu rematar em tempo a remodelação do Forte, onde se gloriou (cobriu-se de glórias) de maiores louros (dos maiores triunfos). Apenas ultimada a mudança, apontou no estirão (trecho retilíneo do Rio) a flotilha fluvial, que D. Lázaro movimentara ansioso de concretizar os planos políticos de Azara (José Nicolás de Azara), pela expulsão dos moradores de Coimbra e Albuquerque. Confiante em sua Força de 600 a 800 homens, em três sumacas, armadas de peças de calibre quatro, seis e oito, começou o canhoneio pela tarde de 16, sem prévia declaração, que Julgou dispensável, pois sabia que rompera a guerra entre a Espanha e Portugal. Com surpresa e decepção, verificou a ineficácia dos seus tiros, que desmantelariam, sem dúvida, a velha estacada, mas se mostravam inoperantes diante dos muros de alvenaria recentemente erguidos. Diante do malogro da ofensiva, recorreu à intimidação, por meio de arrogante “ultimatum”:
“Ayer a la tarde tuve el honor de contestar el fuego que V. S. me hizo, y habiendo reconocido en aquellas circunstancias que las fuerzas que imediatamente voy atacar ese Fuerte son muy superiores à las de V. S., no puedo dejar de hacer ver en este momento que los vasalos de S. M. Catholica saven respetar las leyes de humanidad, aun en medio de la misma guerra. Portanto yo requero a V. S. se rienda prontamente à las armas de El-Rei mi amo pues de lo contrario el cañon y las espadas decidiran la suerte de Coimbra, sufriendo su desgraciada guarnicion todas las extremidades de la guerra, de cuyos estragos se verá libre si V. S. conviene com mi propuesta, contestandome categoricamente en el termino de una hora.
A bordo de la sumaca Nuestra Señora del Carmen, 17.09.1801.
De V. S. atento e reberente servidor – Lazaro Ribera Snr.
Comandante del Fuerte de Coimbra”.
Não necessitaria Ricardo Franco do prazo marcado para a resposta. Pesando bem as palavras e as consequências a que dariam lugar, retruca em termos incisivos.
“Ilmo. e Exmo. Sr.
Tenho a honra de responder categoricamente a V. Exa. que a desigualdade de forças sempre foi um estímulo que animou os portugueses, por isso mesmo, a não desampararem os seus postos e defendê-los, até as suas extremidades, ou de repelirem o inimigo ou sepultarem-se debaixo das ruínas dos Fortes que se lhes confiaram: e nesta resolução se acham todos os defensores deste presídio (praça de guerra), que tem a honra de ver em frente à excelsa pessoa de V. Exa. a quem Deus guarde muitos anos.
Coimbra, 17 de setembro de 1801.
Ricardo Franco de Almeida Serra
Ilmo. e Exmo. Sr. D. Lázaro de Ribeira”.
Não tinha, na frase, a fanfarronice do agressor, nem os recursos bélicos de que este se achava munido, mas sabia cumprir heroicamente o seu dever. Mantém-se, prudente, na defensiva, à míngua de armas com que pudesse conter o avanço do inimigo. Os tiros de suas peças, de pequeno alcance, eram sublinhados de apupos (troças, gozações) e vaias pelos expedicionários, entre os quais avultavam numerosos os Paiaguás. As sumacas (barcos pequenos de dois mastros) trafegavam impunemente pelo Rio, acima do Forte, estendendo a linha de assédio, sem que fossem molestadas. D. Lázaro julgou-se capaz de escalar as muralhas, de onde a guarnição mal lhe respondia ao canhoneio (tiros sucessivos de canhão). Deu, a 21 (09.1801), ordem de desembarque, em pequenas canoas, que a fuzilaria de terra alvejou com vigor, impedindo a aproximação. A passeata militar, prometida aos expedicionários, ameaçava transfigurar-se em derrota. O Governador tentou vários expedientes além do bombardeio contínuo, sustentado por nove dias. Por fim, desistiu de prolongar o bloqueio, e à noite de 24 (09.1801), deu ordem de retirada, após perder 20 homens, explicando aos índios que por serem poucos os sitiados, deixaria, que lhes aumentasse a quantidade, para capturar e exterminar maior número. Entrara como leão invencível, sem suspeitar que o enfrentasse, com vantagem, a rija bravura do animador dos defensores. Ninguém poderia melhor avaliar o alcance do feito memorável do que o próprio Capitão-General, apreensivo quanto à agressão de D. Lázaro de Ribera, que se apossaria de grande parte do Sul de Mato Grosso, como sucedeu a Solano Lopes, caso não lhe contivesse a investida a impavidez resoluta de Ricardo Franco. (FILHO)
As autoridades, tão logo chegou o pedido de socorro do Tenente-Coronel Ricardo Franco, buscaram, imediatamente, tomar as urgentes e devidas providências. O Capitão-General Caetano Pinto de Miranda Montenegro determinou ao Mestre de Campo José Peres Falcão das Neves, que selecionasse Oficiais e Praças que deveriam acompanhá-lo em socorro da fronteira, e ao Juiz de Fora Joaquim Ignácio da Silveira Motta que providenciasse gêneros e munições para a Expedição. Estas medidas estavam em pleno andamento quando chegou, à 16.09.1801, a notícia de que o Forte fora atacado por três embarcações espanholas. Siqueira relata:
Se grandes eram até então os cuidados de socorrer a fronteira, maiores se tornaram com estas notícias, mas tudo faltava. Não havia armas, nem petrechos alguns de guerra nos armazéns reais, não havia embarcações no porto, nem esperanças de expedir prontamente o socorro, se o sobredito Dr. Juiz de Fora executor dos Reais Decretos não tomasse sobre seus ombros o grande peso de uma tão grande Expedição. Sem embargo da pouca saúde com que vivia, foi pessoalmente por todas as casas dos moradores desta Vila, e mandou para os Distritos de Fora tomar todas as espingardas que houvessem, com a limitada exceção das indispensáveis para guardas das fazendas e sítios expostos aos assaltos dos gentios e das feras. E para concertar as que disso necessitassem juntou nas casas da sua residência os ferreiros mais hábeis, mandando vir alguns de distância de não poucas léguas, gastando em sustentá-los da sua própria fazenda, e obrigando-os a trabalhar de dia e de noite, domingos e dias santos e, a todos os mais ferreiros desta Vila, seleiros e carpinteiros fez empregar em diferentes obras, em cujas diferentes oficinas não cessava de comparecer, promovendo o adiantamento das obras. Passou as mais estreitas ordens para que os poucos roceiros deste Distrito fornecessem o real armazém com todo o mantimento que tivessem, chegando além das ditas ordens a dirigir-lhe Carta Circular concebida nos termos mais urgentes.
Contribuíram os lavradores com efeito, e com a maior prontidão, com os mantimentos que cada um teve e pôde conduzir das longas distâncias das suas lavouras e, aos moradores do Rio Cuiabá acima e abaixo dirigiu também carta circular com expressões próprias da ocorrente necessidade, fazendo em consequência conduzir ao porto todas as canoas que se achassem em estado de prestar à Real Fazenda. Foi, pessoalmente, pelas lojas dos negociantes da terra, que tinham os gêneros que as circunstâncias exigiam, comprá-los pelo menos que pudesse, afim de evitar quanto lhe fosse possível o empenho da Real Fazenda, de cujos cofres pagou todos os gêneros comprados com palavra à vista. Não tanto para contentar o povo para que não exasperasse com a calamidade pública, quanto para segurar o crédito da Real Fazenda vacilante nesta Capitania pelas grandes despesas que tem feito.
Juntaram-se na casa do dito Ministro o Mestre de Campo José Paes Falcão das Neves, o Capitão-Mor de ordenanças Antônio Luiz da Rocha, o Ajudante Comandante do Quartel pago Luiz Eller, e outros oficiais para deliberarem o melhor modo do expediente: foram de parecer que “ex vi” (em decorrência) da penúria, em que se achava o Presídio (Forte), enviassem já o fornecimento que se achava pronto, e que se fosse aprontando o mais que exigia maior demora, enquanto se recebiam ordens positivas do Exmo. General, que por momentos se esperavam da Capital, o que assim se fez. Tudo ficou subordinado à defesa da Capitania, e a segurança pública era a suprema lei. Fecharam-se os auditórios, a casa da audiência do dito Ministro se tornou em casa de pólvora, aonde cinquenta dragões recrutados de novo, que estavam a cargo do Ajudante do Quartel pago, se ocupavam em fazer cartuchos. Já se achava o sobredito Mestre de Campo Comandante aquartelado no porto geral para partir com o socorro da fronteira, com ânimo até lançar fora os espanhóis do Presídio, se estivesse em seu poder, e antes que partisse entregou o Governo da Vila ao Sargento-Mór de ordenanças Antônio da Silva de Albuquerque, e para se desaferrar (Levantar ferro, partir) só se esperavam ordens positivas de S. Exa.
O Tenente-Coronel de Infantaria da cidade de São Paulo, Cândido Xavier de Almeida e Sousa, que descia da Capital para reunir-se na Povoação de Albuquerque com sua tropa a recolher-se à sua Praça, antes que chegasse aquela Povoação sabendo do movimento que havia na fronteira, mudou o caminho a que se destinava e veio para esta Vila, aonde depositou nos reais cofres o pagamento da tropa que conduzia a entregar aos respectivos Comandantes daquele Presídio. Logo depois da sua chegada ao porto desta Vila chegaram da Capital as ordens que se esperavam de S. Exa., que eram suspender o embarque do referido Mestre de Campo, para que não deixasse esta Vila, incumbindo-se ao dito Cândido Xavier de Almeida e Sousa a inteligência de conduzir o socorro aprontado, o que assim se cumpriu.
Largou finalmente, no dia 31 de Outubro, a expedição do socorro, composta de quinze canoas e um bote, duzentos homens de armas, além da tripulação, dois Capitães e mais oficiais competentes, tudo debaixo das ordens do dito Tenente-Coronel de infantaria Cândido Xavier de Almeida e Sousa. Pouco depois marcharam para o registro do Jauru os cinquenta dragões novamente recrutados, duas companhias de infantaria, e duas de cavalaria. Expedidos assim estes socorros, chegaram canoas do presídio expedidas pelo dito Tenente-Coronel Comandante em chefe, em que participou que depois do dia 16 de Setembro, em que foi atacado pelos espanhóis, que fizeram fogo até o dia 17, nele bateram retirada. (...)
A 17.11.1801, chegou à Povoação de Albuquerque o socorro enviado desta Vila, debaixo do comando do Tenente-Coronel Cândido, com doze dias de efetiva navegação. No dia 20.11.1801, fez este Comandante marchar os destacamentos para os presídios, e no dia 21.11.1801 expediu para a fazenda do Camopoam o prático José de Arruda Botelho a fazer recolher para esta Capitania as monções que vinham de São Paulo, retardadas na dita fazenda por causa da guerra.
O Tenente Francisco Rodrigues do Prado, Comandante do Presídio de Miranda, de quem já se falou, sabendo a total falta de mantimentos em que estava o seu Comandante e os poucos defensores do Presídio de Coimbra, com a maior intrepidez foi socorrê-lo a todo o risco com o mantimento que tinha e com cinquenta e tantas armas, porém, encontrando um dia acima do Presídio o aviso que lhe fazia o dito Comandante em chefe da retirada do inimigo, e das cautelas com que devia ter no caso que este intentasse por aquele lado de Miranda melhor sucesso do que tiveram pelo de Coimbra, se recolheu ao seu destacamento. Finalmente Coimbra, cujos defensores seriam quarenta pouco mais ou menos, ficou salva com glória e, o inimigo, que a sua força deitava de seiscentas a oitocentas pessoas, assaz superior, se retirou com perda e vergonha. (SIQUEIRA)
O Tratado de Paz de Badajós, 06.06.1801, certamente homologaria a conquista, como sucedeu no Rio Grande do Sul, em relação aos Sete Povos das Missões. Tal não aconteceu, todavia, mercê da presença do intrépido paladino e de sua atuação militar, enaltecida pelo Capitão-General a Rodrigo de Souza Coutinho.
“O Tenente-Coronel Ricardo Franco foi quem me propôs esta obra, foi o primeiro que conheceu a sua necessidade, e o que a tem continuado até o ponto em que se acha com a mesma guarnição, e quase sem despesa da Real Fazenda, servindo ele de arquiteto, de feitor, de mestre pedreiro e carpinteiro.
Escudado em sua própria construção, resistiu bravamente ao inimigo, apesar de dispor apenas de 37 dragões, 12 pedestres, 60 paisanos vinte dos quais eram ‘Henriques Velhos’, que rechaçaram a fúria de mais de seiscentos atacantes”. (FILHO)
Henriques: “Dois regimentos havia em Pernambuco em que soldados e oficiais todos deviam ser pretos, chamavam-se um dos velhos e outro dos novos Henriques, em honra de Henrique Dias, cujos serviços ainda recordam com gratidão os Pernambucanos em geral, e com entusiasmo os da mesma cor. Brancas eram as fardas com vivos escarlates, o aspecto militar e de impor, e a disciplina em nada inferior à dos outros regimentos. Nem soldados nem oficiais recebiam soldo, satisfeitos com a honra do serviço, e dava este sentimento seguro penhor da sua fidelidade. (SOUTHEY)
MONOGRAFIAS GEOGRÁFICAS
A glória militar de Ricardo Franco, relevante sem dúvida, por impedir a invasão de Mato Grosso, não sobrepuja, todavia, a que alcançou como sagaz estudioso da terra mato-grossense. Somente a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estampou em vários dos seus tomos. (...) Quase todos os seus ensaios atendiam a solicitações do Governador Caetano Pinto, de quem se tornou consultor constante. Assim, em resposta à solicitação de 19.09.1799, redigiu conveniente Plano de Defesa da Capitania, de acordo com as diretrizes que lhe norteariam a ação em Coimbra. Quando já se pressentiam os rumores da guerra, que se avizinhava, em meio da apressada construção do Forte, ainda ultimou, ao findar junho de 1799, valioso ensaio, que evidencia os seus anseios de geógrafo.
“Nesta confiança, declarou ao Capitão-General, seu amigo, ordenei a memória relativa ao Rio Tapajós, segundo as continuadas informações que dele tenho adquirido, as quais, não deixando de serem raras, serão talvez úteis, e interessantes para a Capitania de Mato Grosso. Adicionando-as com algumas reflexões que julguei necessárias. tendentes à utilização pública destes distantes povos, que cheios de geral complacência ao felicíssimo governo de V. Exa. esperam nele em não duvidosas prosperidades o complemento das suas bem fundadas esperanças”.
Mas, sufocando a sua vaidade de escritor, refletiu humildemente:
”Pode ser, Exmo. Sr. que o amor próprio me alucine, e que estas memórias, não merecendo algum louvor, sejam só dignas da sua judiciosa reprovação. Nestas condições, que receoso temo, eu espero e evoco da notória bondade de V. Exa. as faça entregar as chamas como uma heresia geográfica. Pois o ardente desejo de servir a V. Exa. ligou gostosamente a minha vontade a empreender este trabalho, que me serviu de recreio nos solitário; dias e melancólicas noites que se passam neste presídio de Coimbra”.
Os sofrimentos íntimos, em vez de o amofinarem com o desespero, convertiam-se em monografias esclarecedoras, que lhe contestavam os temores da inutilidade. Ao revés, eram contribuições valiosas, ainda na atualidade manuseadas com proveito, por quem examine os assuntos de que tratou o preclaro geógrafo colonial arraigado em Mato Grosso. De Coimbra, cenário da sua façanha gloriosa, apenas se afaga para compor o triunvirato que sucede ao Governador Manuel Carlos de Abreu Menezes, em consequência do seu falecimento, a 08.11.1805. Após a posse, a 18.11.1807, do novo Capitão-General, João Carlos de Oyenhausen e Grevenburg, regressa o Comandante ao seu reduto, donde suspeita não mais sairá. Sente-se “gravemente molesto, de umas impertinentes sezões”. O organismo combalido já não resiste a novos acessos. Acama-se em condições angustiantes. E antes que receba os socorros, que os seus auxiliares pedem com urgência às autoridades distantes, Ricardo Franco de Almeida Serra sucumbe aos 21.01.1809. Ao terem notícia da fatal ocorrência, de Cuiabá e Vila Bela se apossou geral consternação. Ao dar conta a Rodrigo de Souza Cominho do triste sucesso. Oyenhausen confessa nobremente a sua dor.
“O zelo, inteligência e conhecimentos que o distinguiram, os serviços feitos a S. A. R. e, finalmente, os sentimentos de piedade que acompanharam a sua agonia e a particular amizade com que eu estimava este honrado oficial, são outros tantos títulos que justificam a mágoa com que faço esta comunicação a V. Exa”.
Ainda mais, providenciou a trasladação dos restos mortais, que o Capitão Francisco Paes foi receber, por junho de 1810, em Buriti, “com a sua partida de cavalaria” e conduzir à Capela de Santo Antônio dos Militares, de Vila Bela, onde expressiva inscrição assinalou:
R. F. A. S.
Coronel do R. C. de E.
que gloriosamente defendeu Coimbra em 1801,
no mesmo lugar faleceu em 21 de janeiro de 1809,
aqui faz sepultados.
Não obstante, descuido ulterior modificou-lhe a posição, de sorte que os ossos não foram encontrados onde deveriam jazer. Coube ao General Raul Silveira de Melo a boa sorte de promover, em 1950, pesquisas no local e verificar onde se achavam e removê-los para jazigo apropriado. Além das providências que tomou, quanto ao enterro de Ricardo Franco em local sagrado, de outra cogitou o Capitão-General, para lhe amparar a descendência. Como soubesse que havia alguma, em Coimbra, mandou dar, a 01.03.1809, a pensão de vinte oitavas de ouro por mês ao Padre Antônio Tavares da Silva, como tutor das menores Ricarda Manoela e Augusto Martiniano e à sua mãe, de acordo, aliás, com a vontade expressa do herói em verba testamentária descoberta por José de Mesquita.
“Declaro, assim dispunha, que em minha casa se acham dois meninos Augusto Martiniano e Ricarda Manuela de Santa Rita, esta de 25 meses, aquele de três, filhos de Maria Guanã, batizada, os quais tenho cuidado com muito mimo, e por não ter herdeiros forçados e o grande amor que tenho aos ditos os nomeio por meus herdeiros legatários do resto dos meus bens que ficarem depois de pagas as minhas dívidas”.
Esta mensagem, de tons carinhosos, que se divulgou após o seu desaparecimento, revela desconhecidas feições de Ricardo Franco. Pelo proceder anterior, parecia empolgado apenas pelo inflexível cumprimento dos seus deveres, interpretados com rigor. Absorto em seus afazeres, militares ou científicos afigurava-se prescindir da presença de mulher em sua vida afanosa, quando não fosse misógino (que tem aversão às mulheres). De Portugal, não mais veria a família, caso alguma lá tivesse deixado, hipótese improvável, pois que não consta nenhuma consignação que tivesse autorizado a favor de alguém, a exemplo do que providenciou seu colega J. J. Ferreira. Vivia para o trabalho e nada mais, ao que se afigurava. Não obstante, em Coimbra, no derradeiro quinquênio da existência, não lhe bastou o estudo para vencer os “solitários dias e melancólicas noites”, a que se referiu em carta ao Capitão-General. Estudara a vida dos Guanás, e afinal se afeiçoou a uma representante da tribo. Maria, por nome de batismo, que lhe suavizara os últimos meses, apesar dos achaques paludosos. Destarte o herói provou que não se desprendera de todo de sua condição humana. A rija catadura (aparência) reservava-se para as ocasiões de trabalhos porfiados (intensos), ou de lutas decisivas, em que não esmorecia um só instaste, e servia de exemplo aos companheiros. Depois de vitórias nobilitantes, todavia, pulsou-lhe o coração, de vivente comum, seduzido por encantos femininos, que o enfeitiçaram. Quase sexagenário, pois nascera no Porto, por volta de 1748, consoante informou E. de Mendonça, ainda lhe refloriu a velhice, em sentimentos compreensivos, que lhe completaram a personalidade. E às vésperas de emudecer, ao beneficiar dois menores, mercê do “grande amor”, que lhes dedicava, provou que até o vocábulo, de aplicação sugestiva, sabia usar apropriadamente, para revelar a união sentimental, que lhe perpetuou a descendência em Mato Grosso. Vem a propósito lembrar a cooperação de Alexandre Rodrigues Ferreira para o desenho da “Carta”, conforme assinalou a comunicação ao Ministro, que o douto historiador Hélio Vianna teve a gentileza de oferecer:
“Ilmo. e Exmo. Senhor
Sobe a Presença de V. Exa. a Carta Geográfica de Projeção Esférica do Estado do Brasil, que V. Exa. me incumbiu de mandar desenhar pelos desenhadores deste Real Jardim Botânico às Ordens do meu Patrício, e Colega o Dr. Antônio Pires de Pontes. Possam os seus esforços ser coroados com a Aprovação de V. Exa. de quem tenho a honra de ser
Mui humilde criado Alexandre Rodrigues Ferreira,
Jardim Botânico
em o N° de dezembro de 1797”.
Joaquim da Costa Siqueira, no seu Compêndio Histórico Cronológico das Notícias de Cuiabá, Repartição da Capitania de Mato-Grosso desde o Princípio do ano de 1778 até o fim do Ano de 1817 relata que em 20.03.1804:
Chegou a esta Vila, pelo caminho de terra, o Ilmo. e Exmo. Manoel Carlos de Abreu e Menezes para Governador e Capitão-General desta Capitania, o qual sucedeu no Governo de sucessão que existia pela ausência do Exmo. Caetano Pinto acima mencionado. (...) Passados alguns dias, fez publicar o mesmo Exmo. General as mercês que Sua Alteza Real se dignou fazer em remuneração de seus serviços: ao Tenente-Coronel do Corpo de Engenheiros Ricardo Franco de Almeida Serra, Comandante em chefe dos estabelecimentos do Paraguai, com a patente de Coronel do mesmo Corpo, com “Hábito de Aviz” e 300$000 de tença (pensão); ao Tenente de dragões Comandante do Forte de Miranda, Francisco Rodrigues do Prado, a patente de Capitão da mesma companhia e “Hábito de Aviz”, com o exercício do mesmo comando; ao Sargento-Mór das ordenanças da Capitania de São Paulo, nesta residente, Gabriel da Fonseca e Serra, o posto de Tenente-Coronel do regimento desta Vila; e ao Capitão de Milícias Leonardo Soares de Sousa o “Hábito de São Thiago”.
A atitude heróica do Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra foi uma valiosa contribuição ao espírito valente e soberano do povo brasileiro. Nada mas justo então que hoje, três de agosto, seus discípulos, integrantes do Quadro de Engenheiros Militares, rendam merecida homenagem ao seu ilustre Patrono.
Fontes:
FILHO, Virgílio Alves Correia. Ricardo Franco de Almeida Serra – Brasil – Rio de Janeiro – Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Volume 243 – abril-junho, 1959 – Departamento de Imprensa Nacional, 1959.
SIQUEIRA, Joaquim da Costa. Compêndio Histórico Cronológico das Notícias de Cuiabá, Repartição da Capitania de Mato-Grosso desde o Princípio do ano de 1778 até o fim do Ano de 1817 – Brasil – Rio de Janeiro – Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo XIII, 1° Trimestre de 1850 – Typographia de João Ignácio da Silva, 1872.
SOUTHEY, Robert - História do Brasil, Volume VI - Brasil - Rio de Janeiro - Livraria de B.L. Garnier, 1862.
- Livro do Autor
O livro “Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS e na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br). Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:
http://books.google.com.br/books?id=6UV4DpCy_VYC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false
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Fonte: Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
E-mail: hiramrsilva@gmail.com
Blog: http://desafiandooriomar.blogspot.com.br
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