Quinta-feira, 31 de julho de 2014 - 19h19
Um dos mais conhecidos teólogos do Brasil, Leonardo Boff é um nome atualmente aclamado em todo o mundo, mas que já foi muito marginalizado dentro da própria Igreja em que acredita. Nos anos 1980, o então frade foi condenado pela Igreja Católica pelas ideias da Teologia da Libertação, movimento que interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo como manifesto contra as injustiças sociais e econômicas.
Aos 75 anos, Boff é um intelectual, escritor e professor premiado e respeitado no país, cuja opinião é ouvida por personalidades com o Papa Francisco e os presidentes Lula da Silva e Dilma Rousseff. Nesta entrevista ao Sul21, concedida durante sua vinda a Porto Alegre, entre 23-25 de julho, Boff fala do momento atual da Igreja Católica, critica os religiosos que usam o evangelho para justificar ideias retrógradas ou tirar dinheiro dos fiéis, tece comentários sobre a situação no Oriente Médio, aborto, violência e sobre a crise ecológica e econômica mundial.
As duas estão profundamente interligadas: como explica Boff, o capitalismo está fundado na exploração dos povos e da natureza. “Esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer por falta de acesso à água e à alimentação”, afirma ele, que é um grande estudioso das questões ligadas ao meio ambiente.
Sul21 – Nos anos 1980, por causa dos ideais defendidos pela Teologia da Libertação, o senhor foi condenado a um ano de silêncio obsequioso e sofreu várias sanções, que acabaram sendo amenizadas diante da pressão social sobre a Igreja Católica, mas que o fizeram abandonar o hábito. O senhor acredita que atualmente a Igreja agiria da mesma forma?
Leonardo Boff – Não. O atual Papa diz coisas muito mais graves do que eu disse no meu livro “Igreja: carisma e poder”, que foi objeto de condenação. Se ele tivesse escrito isso, teria sido condenado. Eu disse coisas muito mais suaves, mas que afetavam a Igreja. Dizia que a Igreja não respeitava os direitos humanos, que é machista, tem um conceito de poder absolutista e absolutamente superado, sem limites.
Os tempos mudaram e a graças a Deus temos um Papa que pela primeira vez, depois de 500 anos, responde à Reforma, responde a Lutero. Lutero lançou o que chamamos de Princípio Protestante, que é o princípio de liberdade cristã que impõe limites ao princípio da autoridade. E esse Papa vive isso. E vive o cristianismo não como um feixe de verdade que você adere, mas como o encontro vivo com Jesus. Deve-se distinguir entre a
Tradição de Jesus, aquele conjunto de ideais e valores que anunciou, mais movimento que instituição; e a religião cristã, que se organiza como instituição à semelhança de outras religiões.. Muitos dizem “eu sou do movimento de Jesus”, e não da religião católica. Preferem viver a ética de Jesus que frequentar a igreja. Tais afirmações são escandalosas para cristãos tradicionais, mas são absolutamente corretas no sentido da Teologia, daquilo que nós sempre dizíamos e éramos perseguidos por isso. Quem salva é Jesus e não as doutrinas.
E eu fico feliz que a Igreja não é mais uma instância que nos envergonhe, mas sim uma instância que pode ajudar a humanidade a fazer uma travessia difícil para outro tipo de sociedade que respeite os direitos da natureza, da Terra, preocupada com o futuro da vida. Eu mesmo tive contato com o Papa e o tema central dele é vida. Vida humana, da terra, da natureza. E nós temos que salvá-la, porque temos todos os instrumentos para destruí-la.
“Pregar na África que é pecado usar a camisinha, em lugares onde metade da população sofre de Aids, é cometer um crime contra a humanidade. Foi o que o papa Bento XVI disse várias vezes.”
Sul21 – O senhor acredita que a Igreja Católica, sob orientação do papa Francisco, vai efetivamente renunciar a alguns temas tratados como tabu, como a união homossexual?
Leonardo Boff – Ainda não sabemos bem a opinião dele. Ele diz: “quem sou eu para julgar?”, no fundo diz para respeitar as pessoas. Ele vai deixar haver uma grande discussão na Igreja sobre a questão do divórcio e dos homossexuais, sobretudo a moral sexual cristã, que é extremamente rigorosa e restrita. Em alguns casos é até criminosa. Por exemplo, pregar na África que é pecado usar a camisinha, em lugares onde metade da população sofre de Aids, é cometer um crime contra a humanidade. Foi o que o papa Bento XVI disse várias vezes. Eu acho que o Francisco é mais que um Papa, é um projeto de mundo, projeto de Igreja, ele se dá conta de que a humanidade é uma, está sob risco de desaparecer e temos que nos unir nas diferenças para superar a crise.
Acho que a grandeza desse Papa não será ele definir as coisas, mas deixar que se discutam. E eu acho que ele vai respeitar as pessoas, porque a maioria não é homossexual, ou homoafetivo, por opção. As pessoas se descobrem homoafetivas. E ele vai dizer: “ande diante de Deus, não se sinta excluído”. Vai dizer que (os homoafetivos) são tão filhos e filhas de Deus quanto os outros. E daí respeitar. Talvez ele diga “não chame matrimônio, que é um conceito jurídico-canônico”. Mas uma união responsável, que merece a benção de Deus, e que tenha uma proteção jurídica, que tenha seu lugar na Igreja, que possam frequentar os sacramentos. Esse seguramente vai ser o caminho dele.
Sul21 – E com essas posições do Papa Francisco, o senhor acha que Igreja Católica talvez consiga recuperar fiéis diante do avanço das igrejas evangélicas?
Leonardo Boff – Esse Papa não é proselitista e diz claramente que o evangelho deve atrair pela sua beleza, pelo seu conteúdo humanitário. Ele não está interessado em aumentar o número de cristãos, em fazê-los voltar. Está interessado em que as pessoas, com a situação confessional que têm, se coloquem a serviço da humanidade, das coisas boas que a humanidade precisa para viver humanamente.
É aquilo que nós chamamos de “ecumenismo de missão”. Estamos divididos, é um fato histórico, mas não é uma divisão dolorosa. Porque cada um tem seus “santos”, profetas e mestres. Mas como nós juntos nos reconhecemos mutuamente nas diferenças e como juntos vamos apoiar os sem terras, os sem tetos, os marginalizados, as prostitutas. Esse serviço nós podemos fazer juntos.
“Ninguém é a favor do aborto em si, as mulheres que fazem aborto não pediram por isso. Mas muitas vezes passam por situações tão delicadas que precisam tomar essa decisão”
Sul21 – Muitas pessoas usam a religião para justificar opiniões conservadoras, machistas e homofóbicas. Qual a sua opinião sobre essas posições?
Leonardo Boff – Há o exemplo concreto do aborto nas últimas eleições. Isso mobilizou as igrejas, foram até o Papa, fizeram pressão sobre os fiéis. Eu acho que é uma falsa utilização da religião. A religião não foi feita para isso. E todos devem reconhecer, e são obrigados a reconhecer pela Constituição, que há um Estado que é laico e pluralista. Ele não assume nenhuma religião e respeita a todas entro do marco constitucional. Então essas pessoas pecam contra o princípio fundamental da democracia, não são democratas. Eles podem ter a opinião deles, mas não podem impô-la.
É muito fácil a posição deles, a de salvar a criancinha. E depois que a salvou a deixa na rua, abandonada, passando fome e morrendo. E nem têm compaixão pelas mais de cem mil mulheres que morrem por ano por causa de abortos malfeitos. Precisamos superar esse farisaismo. São pessoas que pecam contra a democracia e contra a humanidade, contra o senso humanitário. Ninguém é a favor do aborto em si, as mulheres que fazem aborto não pediram por isso. Mas muitas vezes passam por situações tão delicadas e dilacerantes que as levam a tomar essa difícil e dolorosa decisão.
O que eu aconselho e o que muitos países fizeram como a Alemanha, o Canadá, inclusive a Espanha e a Itália, que são cristianíssimas e permitiram o aborto, pediram que houvesse um grupo de acompanhamento, que converse com a mulher e explique o que significa. E deixar a decisão a ela, se ela decidir vamos respeitar a decisão. Mas ela faz com consciência. Isso eu acho que seria democrático e seria responsável diante da fé, você não renuncia à tua fé, mas respeita a consciência, que é a instância última a que responde diante de Deus.
“Então eles têm um país que foi vítima do nazismo e utiliza os métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a grande contradição.”
Sul21 – Algumas igrejas aqui cobram dízimo dos fiéis, muitas vezes dizem que para agradecer a Deus as pessoas têm que pagar as igrejas. Qual a sua opinião e como a teologia da libertação vê essa prática?
Leonardo Boff – São igrejas do chamado “evangelho da prosperidade”, dizem que você dá e Deus te devolve em dobro. Eu acho que é um abuso, porque religião não foi feita para fazer dinheiro. Foi feita para atender as dimensões espirituais do ser humano e dar um horizonte de esperança. Agora quando a igreja transforma a religião num poder econômico, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que em Belo Horizonte tem um shopping ao lado, chamado de “o outro templo”, que é o templo do consumo, e depois do culto as pessoas são induzidas a comprar. Para mim, é a perversão da religião. Inclusive acho que é contra a Constituição utilizar a religião para fins não naturais a ela. Eu combato isso, sou absolutamente contra. Porque isso é enganar o povo, é desnaturar e tirar o caráter espiritual da religião. A religião tem que trabalhar o capital espiritual, e não material.
Sul21 – E em relação a essa crise violenta entre Israel e a Faixa de Gaza, em que o Estado de Israel já matou centenas de pessoas, como o senhor acha que o resto do mundo deveria agir em relação a isso? O Papa poderia ser uma pessoa a mediar o conflito?
Leonardo Boff – Esse Papa é absolutamente contemporâneo e necessário. Acho que é o único líder mundial que tem audiência e eventualmente poderia mediar essa guerra de massacre criminosa que Israel está movendo contra Gaza.
E eu acho que grande parte da culpa é do Obama, que é um criminoso. Porque nenhum ataque com drones (avião não tripulados) pode ser feito sem licença pessoal dele. Estão usando todo tipo de armas de destruição, fecharam Gaza totalmente, ficou um campo de concentração, e vão destruindo e matando centenas de inocentes, crianças e idosos. Esses israelenses foram vítimas do nazismo (não esqueçamos os ciganos,os homoafetivos,os deficientes e os que se opunham ao regime) e agora criam vítimas à semelhança do nazismo. Essa é a grande contradição. É isso que nos dói em toda esta situação de guerra.
E os Estados Unidos apoiam, o Obama e todos os presidentes são vítimas do grande lobby judeu, que tem dois braços: o braço dos grandes bancos e o braço da mídia. Eles têm um poder enorme em cima dos presidentes, que não querem se indispor e seguem o que dizem esses judeus radicais, extremistas e que se uniram à direita religiosa cristã. Isso está aliado a um presidente como Obama que não tem senso humanitário mínimo, compaixão para dizer “acabem a matança”.
“Mas tudo o que dá sentido humano não entra no PIB: o amor, a solidariedade, a poesia, a arte, a mística, os sábios. Isso é aquilo que nos faz humanos e felizes.”
Sul21 – Qual a sua avaliação da atual disputa para a presidência da República?
Leonardo Boff – Notamos que é uma disputa de interesses de poder. Não se discute o projeto Brasil, se discute poder. O que eu acho lamentável porque não basta ter poder, o poder é um meio. Eu vejo que há duas visões de futuro. Uma é mais progressista e republicana que é levada pelo atual governo baseada em políticas públicas, visando a inclusão para os mais pobres. E eu torço que ele ganhe. Mas ganhar para avançar, não para reproduzir a mesma agenda. Ele atingiu o primeiro passo, de incluir milhões de pessoas que têm agora direito de consumir o mínimo, de comida, ter geladeira, casa, luz. Isso é direito de todo cidadão. Essa etapa eu acho que o governo cumpriu e bem e deve consolidá-la. Mas agora vem uma nova etapa, porque o ser humano não tem só fome de pão. Tem fome de escola, beleza, lazer, participação na vida social, dos espaços públicos, de transporte que não gaste tanto o tempo de vida.
E há os que querem seguir o neoliberalismo montado sobre o mercado, o Estado mínimo, um tipo de austeridade que gera desemprego, rebaixa os salários e destrói as conquistas sociais, e priviligia atender antes os bancos do que as demandas da população. Isto está sendo imposto e não está dando certo na Grécia, em Portugal,na Espanha na Itália, na Irlanda, que é o capitalismo financeiro mais voraz e acumulador e o mais radical que houve na história. Aplicdo ao Brasil significa a imposição da austeridade que implica o arrocho salarial, o aumento o superávit primário, que é aquele bolo com que se paga os rentistas. Há a visão de futuro que quer enquadrar o Brasil nesse tipo de globalização que é boa para o capital, porque nunca os capitalistas enriqueceram tanto. Tanto que nos Estados Unidos 1% tem o equivalente a 99% da população, enquanto no Brasil 5 mil famílias controlam o equivalente a 43% do PIB. São famílias da casa-grande, que vivem do capital especulativo.
Acho que nós temos que vencer democraticamente esse projeto, porque não é bom para o povo. Mesmo com todos os defeitos e violações de ética que houve, erros que o PT cometeu, ainda assim este projeto é o mais adequado para o Brasil. Agora se for ganhar é para avançar e melhorar. Caso contrário os do outro projeto internalizarão o sistema que provocou a crise global e entnao corremos o risco de perder os avanços alcançados. Não podemos mais retroceder.
Sul21 – O senhor mencionou a crise econômica pela qual passam a Grécia, Espanha e países europeus que seguem o neoliberalismo. Há maneiras de reverter a crise?
Leonardo Boff – A Europa está tão enfraquecida e envergonhada que nem mais aprecia a vida. Aquilo que mais escuto em cada palestra que vou na Europa é pessoas me pedindo “por favor, me dê esperança”. Quando um povo perde esperança, perde o sentido de viver. Isso acontece porque alcançaram tudo que queriam, dominaram o mundo, exploraram a natureza como quiseram, ganharam um bem-estar que nunca houve na História e agora se dão conta que são infelizes. Porque o ser humano tem outras fomes. Fome de amar e ser amado, de entender o outro, conviver, respeitar a natureza.
E tudo isso foi colocado à margem. Só conta o PIB. Mas tudo que dá sentido humano não entra no PIB: o amor, a solidariedade, a poesia, a arte, a mística, os sábios. Isso é aquilo que nos faz humanos e felizes. E essa perspectiva em que só contam os bens materiais poderá levar a humanidade a uma imensa tragédia. Dentro do sistema capitalista, não há salvação para a Terra e a Humanidade. Por duas razões. Primeiro porque nós encostamos nos limites da Terra. É um planeta pequeno, com a maioria dos recursos não renováveis. O sistema tem dificuldade de se auto-reproduzir, porque não tem mais o que explorar. E segundo porque os pobres, que antes da crise que eram 860 milhões, pularam, segundo a FAO, para um bilhão e 200 milhões. Há pois duas injustiças: a social e a e ecológica.
Então esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer por falta de acesso à água e alimentação. Esse sistema, contem uma perversidade total: transformou tudo em mercadoria. De uma sociedade com mercado passou para uma sociedade só de mercado, transformando tudo em mercadoria, também a vida e a alimentação. O pobre tem que atender suas necessidades no mercado. Mas não dispõe de dinheiro. Então diante da mesa farta, passa fome e fica como os cachorros esperando que caiam migalhas da mesa dos opulentos e desumanos.
“Essa nova relação com a natureza e o mundo é o que precisamos desenvolver para ter uma relação que não seja destrutiva e possa fazer com que a humanidade sobreviva.”
Sul21 – O senhor se preocupa também com o avanço da extrema direita na Europa?
Leonardo Boff – É a reação normal de quando há uma crise maior que alguns postulem soluções radicais. No caso da Europa, é a xenofobia. Mas são todos países que têm problema de crescimento negativo de população. A Alemanha tem que importar 300 mil pessoas por ano para manter o crescimento mínimo de população, e na França a situação é parecida. Então estão em uma dificuldade enorme, porque precisam deles, mas ao mesmo tempo, querem os expulsar. Há o risco de que haja um processo que gerou a Segunda Guerra Mundial, que era fruto da crise de 1929 que nunca se resolvia, até que a direita criou o nazifascismo. Mas hoje o mundo é diferente, é globalizado. Não dá para resolver a questão de um país sem estar vinculado aos outros. Nem se pode usar a violência porque ela é demasiadamente destrutiva, pode liquidar com toda a humanidade.
Sul21 – Os governos da América Latina oferecem uma alternativa a esse modelo europeu que está em crise?
Leonardo Boff – Muitos veem, como o (sociólogo português) Boaventura de Sousa Santos, que na América Latina há um conjunto de valores vividos pelas culturas originárias que podem ajudar a humanidade a sair da crise. Especialmente com a característica central do bem-viver, que significa ter uma relação respeitosa para com a natureza, entender a Terra como mãe, que nos dá tudo que precisamos ou podemos completar com o trabalho. A economia não é de acumulação mas de atendimento coletivo das demandas humanas. E inventaram a democracia comunitária, que não existe no mundo, é uma invenção latino-americana, em que os grupos se reúnem e decidem o que é melhor para eles, e o país é feito por redes de grupos de democracias comunitárias. Essa nova relação com a natureza e o mundo é o que precisamos desenvolver para ter uma relação que não seja destrutiva e possa fazer com que a humanidade sobreviva.
Há uma revisitação das culturas originárias, porque elas têm ainda respeito com a natureza, não conhecem a acumulação que devasta os ecossistemas. São valores já vividos pelas culturas andinas, sempre desprezadas e hoje estudadas por grandes cientistas e sociólogos que percebem que aqui há princípios que podem nos salvar. Em vez de falar de sustentabilidade, respeitar os ritmos da natureza. Em vez de falar de PIB e crescimento, garantir a base físico-química que sustenta a vida. Porque sem isso a vida vai definhando. E em vez de crescimento, redistribuição da renda. É tanta riqueza acumulada que se houvesse 0,1% de taxa sobre os capitais que estão rolando nas bolsas, estão na especulação, daria um fundo de tal ordem que daria para a humanidade matar a fome e garantir habitação. Porque o capital produtivo é de U$ 60 trilhões, enquanto o especulativo é U$ 600 trilhões. Então é uma economia completamente irracional e inimiga da vida e da natureza. E não tem futuro, caminha para a morte. Ou nos levará todos para a morte, ou eles mesmos se afundarão.
“Nós não “temos violência” no Brasil, nós estamos sentados em cima de estruturas de violência. É um estado de violência permanente.”
Sul21 – E onde entra o papel do Brasil no âmbito ecológico? Os governos têm conseguido lidar com as questões ambientais?
Leonardo Boff – O Brasil é a parte do planeta mais bem dotada ecologicamente. Tem as maiores florestas úmidas, maior quantidade de água, maior porcentagem de terrenos agriculturáveis no planeta. Mas não têm consciência de sua riqueza. E as políticas públicas não têm nenhuma estratégia de como tratar a Amazônia, tratar os vários ecossistemas. Sempre é em função da produção. Então estão avançando sobre a floresta Amazônica e o Cerrado e deflorestando para ter soja e gado.
E o Ministério do Meio Ambiente é um dos mais fracos, assim como o dos Direitos Humanos. Isso significa que não conta a vida, conta a economia. Eu acho lamentável isso. E essa crítica tem que ser feita pelos cidadãos. Apoiamos um projeto de governo, mas nisso discordamos. Porque implica ignorância, irresponsabilidadee cegueira estratégica governamental. Muita coisa do futuro da humanidade passa por nós, especialmente água potável, que possivelmente será a crise mais grave, até mais do que aquecimento global. E o Brasil tem capacidade de ser a mesa posta para as fomes do mundo inteiro e fornecer água potável para os povos. Acho que não temos consciência da nossa responsabilidade. Os governantes são vítimas ainda de uma visão economicista, obedecem as regras da macroeconomia. A nossa relação com a natureza não é de cooperação, é de exploração.
Sul21 – Como o Brasil pode lidar com o grave problema de violência urbana?
Leonardo Boff – O problema que deve ser pensado é de que já agora 63% da humanidade vive nas cidades, no Brasil 85%. Não dá mais para pensar apenas na reforma agrária, tem que pensar como vão viver as pessoas nos centros urbanos. Trata-se de distribuir a terra e distribuir a cidade. Nós vivemos no Brasil a vergonha de que todas as cidades têm um núcleo moderno cercado por uma ilha de pobreza e miséria, que são as favelas. Esse é um problema não resolvido e para mim central na campanha: como trabalhar os 85% que vivem nas cidades, já perderam a tradição rural, de plantar e viver da natureza, e não assimilaram a cultura urbana. Então são perdidos. Daí o aumento da criminalidade. E muitos dizem que a sociedade têm um pacto social que rege o comportamento dos cidadãos. Os marginalizados dizem: “vocês nos excluíram do pacto, então não somos obrigados a aceitar as leis de vocês, vamos criar as nossas”. As milícias do Rio criaram funções de Estado paralelas, criam sua organização e distribuição de alimentos, de gás, garantem a segurança e o governo é impotente. E as UPPs não são a solução, porque cria ilhas e as drogas ficam nas margens. O problema não é de polícia, é do tipo de sociedade que nós criamos, montada em cima do colonialismo, escravagismo e etnocídio dos indígenas. Nós não “temos violência” no Brasil, nós estamos sentados em cima de estruturas de violência. É um estado de violência permanente.
Sul21 – E como o país pode fazer para fugir disso?
Leonardo Boff – Aquilo que já começou com as política sociais e aprofundá-las e parar de fazer políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres; fazer a urbanização das favelas, políticas de integração, inclusão, começando pela educação. Porque onde há educação a pessoa se habilita a se autodefender, buscar novas formas de sobrevivência. Um país que não investe em educação e saúde conta com pessoas ignorantes e doentes. E com essas pessoas não têm como dar um salto de qualidade. Para mim esse é o grande desafio e isso deveria ser discutido nas campanhas, e nos partidos. Desafiar todo mundo: “como vamos sair disso?”, porque tende a piorar cada vez mais. Essa seria uma política ética, digna, onde o bem comum estaria no centro e somaria forças, alianças de pessoas que se propõem a mudar as estruturas que sustentam um Estado injusto, que tem a segunda maior desigualdade do mundo. Desigualdade significa injustiça que é uma falta ética, e injustiça é tambem um pecado social estrutural, mortal que afeta Deus.Isso é que deveria ser discutido e não o é. Lamentavelmente.
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