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Serpa do Amaral

Manelão sai da Banda para entrar na História




Manelão, a morte e o carnaval: uma tríade que hoje chama atenção na mídia local por marcar a partida para a eternidade do maior carnavalesco da folia popular de Rondônia. Todavia, em que pese a tragédia e a dor, todos sabem que essa trindade é antiga, pois há 31 anos eles brincam juntos no mesmo bloco da existência. Dessa longa e inusitada convivência nasceu a mais famosa agremiação festiva do carnaval da região norte brasileira – a troça carnavalesca dos 100 mil brincantes.

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Manelão e sua filha, defronte ao bar do Calixto, numa roda de samba do Asfaltão

Inspirada na famosa Banda de Ipanema, a Banda do Vai Quem Quer veio ao mundo pelas mãos de doze correligionários etílicos que, ante a falta de criatividade e apoio dos administradores públicos aos foliões, resolveram dar a volta por cima na apatia que entediava a cidade e conceberam aquilo que hoje é mais que uma banda, é uma verdadeira confederação de blocos, uma grande nação baconiana a serpentear pelas veredas portovelhenses no sábado de carnaval. Daqueles doze apóstolos, coube a ele, Manelão, o papel de pastor daquele rebanho de ovelhas desgarradas. À Banda ele deu cara, coragem e identidade. Enfrentou fortes tempestades e uma imensa onda de negativismo quando um dos carros de som do Bloco Maria Fumaça, que acompanhava o cortejo, envolveu-se num acidente com vítimas fatais. Mas nada disso o demoveu da idéia de colocar a banda nas ruas. Manelão manteve inabalável sua crença de que era preciso superar a miopia dos administradores da coisa pública e manter a fórmula barata e popular de brincar o carnaval.

O histórico mantenedor da Banda não era apenas um carnavalesco, já que detinha também um outro dom – o da conversa. Manelão era um grande conversador. Gostava como ninguém de uma boa prosa e adorava passar horas nessa atividade coloquial. Dizem as más línguas que ele era o maior fofoqueiro da cidade. Comentam, ainda, que todos os bastidores da chamada vida dos outros poderiam ser sabidos, escutados e comentados em torno de sua mesa de trabalho. Diz a lenda que, em tempos idos, ele e alguns colegas de farra seqüestraram um morto no necrotério do antigo Hospital São José (hoje policlínica da Polícia Militar) e passaram a noite toda zoando com o cadáver, tendo levado o de cujus até o salão principal da Maria Eunice, antigo prostíbulo situado na subesquina da rua Dom Pedro Segundo com a Tenreiro Aranha, no centro da cidade. Para outros, porém, ele não passava de um autêntico contador de causos, do naipe, por exemplo, um Cláudio Feitosa.

A morte do Marechal da Banda na temporada dos festejos momescos não constitui uma fatalidade, é coisa de cumplicidade e amizade de longínquas calendas. Isso porque o Rei da Folia nunca temeu a senhora do destino. Tendo a alegria por credo religioso, ele firmou no coração que hoje nos priva de sua presença a plena convicção de que só há um jeito de negar a morte, que é reafirmando a vida, todos os anos, década após década, numa fantástica quizomba bárbara e popular pelas ruas da cidade, cantando, dançando, bebendo, sem medo de ser feliz. Ao escolher a vida, vivendo intensamente o princípio do prazer, Manelão também escolheu a morte, sabendo que uma é a antítese da outra na dialética da existência. E para que ela não assuste também ao povo, ele ordenou à sua filha: - que saia a banda, apesar da minha morte, para que ela não intime os brincantes do maior bloco de rua da amazônia ocidental. Para o deleite da vida, para a exaltação da alegria e autoafirmação do carnaval popular, o meu corpo fica, mas a banda sai; fica o homem, mas a fé num amanhã melhor não perecerá no coração das massas!

E assim será: baixado o corpo à sepultura, choradas as lágrimas forjadas no vazio da dor e experimentados sentimentos de perda e lamentos pela partida do homem que reinventou a alegria nos prados rondonianos, toda a tropa da patuscada saberá fazer jus ao bem-querer do seu General, e assim marchará altiva e risonha, frenética e anárquica, dançante e indomável, bela e sedutora, despudorada e crítica, pelas ruas da caótica Porto Velho, ungida pelas graças de Momo e unida em torno de um só ideal: mostrar ao mundo que mais do nunca é preciso cantar e alegrar a cidade – como diria o poeta Vinícius de Morais. Da dimensão em que se encontrar, Manelão aplaudirá, pela primeira vez de fora, o desfile da Banda do Vai Quem Quer que criou, e sorrirá, e brindará quem sabe, e abençoará a todos, e haverá festa em seu coração cósmico, e ele descansara no eterno, satisfeito por ter pregado e vivido a paz entre os homens.

Manelão morreu como sempre quis: no berço da alegria que ajudou a criar. Manelão partiu no tempo em que escolheu: um tempo de dança, de canto, de Banda Carijó, de esperança e celebração – o carnaval! Ao desafio de encarar a morte, angústia de quem vive, e conviver com a solidão, fim de quem ama, ele propôs um pacto: vamos estar juntos, brincarmos juntos, festejarmos juntos e cantarmos nossas marchinhas, para mostrar ao sistema e aos seus prepostos que a nossa anarquia mameluca é espiritualmente bem maior do que supõe o projeto capitalista selvagem que vem tentando engessar a pajelança tribal do povo Guaporé!

E tendo dado seu recado e cumprido sua missão celestial na terra, Manelão saiu da Banda para entrar na História.

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Fonte: Antonio Serpa do Amaral Filho /  antonio.serpa@trf1.gov.br  

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