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Francisco Matias

RONDÔNIA E O GOLPE MILITAR DE 1964 – PARTE 1


Por Francisco Matias(*)
 

1.O programa Conexão Repórter, apresentado pelo jornalista Roberto Cabrini, do SBT, em sua edição desta quarta-feira, 30 de março 2011, trouxe uma pauta diferente e apropriada ao dia: o Golpe Militar de 31 de Março de 1964. Na pauta, Rondônia apareceu “na remota Porto Velho”, como enfatizou Roberto Cabrini logo no primeiro bloco, como se a cidade de Porto Velho estivesse nos idos de 1964, época em que, realmente,não passava de um lugar remoto, distante do Brasil e, portanto, dos acontecimentos nacionais, dentre eles, o Golpe de Estado que derrubou o governo do presidente João Goulart e instalou uma ditadura que durou 21 anos. A ditadura militar, como se convencionou chamar, não era assim puramente militar, com soldados uniformizados nas ruas e oficiais no controle. Havia, e é bom que se frise, importantes segmentos da sociedade civil, de todas as esferas, inclusive acadêmicas, religiosas, empresariais, donas de casa, jovens e trabalhadores de um modo geral a apoiar o levante militar que, partiu de Minas Gerais, com o apoio de São Paulo e do Rio de Janeiro e assumiu o governo do país, destituindo um presidente cuja posse e trajetória foram ligados aos problemas geopolíticos mundiais, envolvendo ideologia de esquerda, e as influências capitalista e socialista do pós-guerra.

2. O Conexão Repórter não se limitou a apresentar uma reportagem apenas com militantes da esquerda queixando-se da tortura e das perseguições, como tem sido comum neste país. Ao contrário, trouxe a público dois personagens que atuaram na defesa armada do regime e contrários ao comunismo, socialismo e outros ismos da época, e favoráveis ao capitalismo e ao direitismo que os militares brasileiros e seus seguidores instalaram a partir daquela terça-feira, 31 de março de 1964. Portanto, o Brasil inteiro de 2011,  47 anos depois do golpe, pode ver pela TV as figuras do ex-major Curió, principal comandante das tropas federais que combateram na guerrilha do Araguaia, e o ex-agente da Polícia Federal João Lucena Leal, que liderou várias incursões policiais no Nordeste contra guerrilheiros urbanos, ambos na década de 1970. De todo modo, os dois foram personagens dos anos de chumbo, quando o Estado enfrentava guerrilheiros numa guerra sem quartel e sem chances de vitória para a Esquerda. Não se pode esquecer que o Golpe Militar era de Direita, numa época em que o mundo vivia uma espécie de bipolarização ideológica fomentada pela União Soviética e pelos EUA, tendo como pano de fundo o Muro de Berlim.

3. João Lucena Leal é advogado em Porto Velho, onde aportou no início o da década de 1980 para atuar como delegado de polícia civil, a convite do coronel Jorge Teixeira de Oliveira. O que não foi dito, na reportagem, é que o Dr. João Lucena, cuja imagem deixava notar um semblante que nem de longe lembra o “Homem da Boina”, como ele era conhecido na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, quando estudava para ser advogado e, nas horas vagas, agia como espião do sistema. Odiado pela esquerda até hoje, João Lucena foi firme até onde pode ser na entrevista, mas disse sentir-se envergonhado por ter participado de torturas e chegou às lágrimas quando falou de “uma jovem terrorista de 17 ou 18 anos morta pelo major Curió”, segundo disse na entrevista. Lágrimas e sentimentalismos à parte, ele era homem de frente, agente de campo, de combate que trocava tiros e prendia terroristas e subversivos e, como foi dito e redito, os torturava. Está no livro Brasil Nunca Mais e nunca pediu para sair. Ontem, no programa, sua figura demonstrava sentir a força do tempo e da velhice, mas Lucena estava fazendo o que sempre quis fazer: contar a História como viveu, do seu lado, do seu ponto de vista, de sua linha de atuação. E não estava sozinho nisso. Aqueles a quem prendeu e foram entrevistados no programa, também aproveitaram para contar suas versões da História,  sob seus pontos de vista. Os torturados e o Torturador. Apenas isso.

4. Faltou ainda muita coisa que, certamente, por falta de tempo ou de pauta, João Lucena não pode dizer. Mas diria se tempo tivesse. Ele se sente parte da história contemporânea do Brasil. Não disse, por exemplo, que foi ele quem prendeu o Comandante Marcos, também conhecido por Santa Cruz, o terrorista mais procurado do país no início da década de 1970. Não disse que, por desconhecimento, salvou a vida de José Sales de Oliveira, o próprio Comandante Marcos, ou Santa Cruz, a quem perseguia tenazmente e cuja foto estava marcada com uma cruz, o que significava que deveria ser morto imediatamente. Lucena, o Homem da Boina, o prendeu, não como o Comandante Marcos, mas na condição de suspeito de um possível assalto a um avião dos correios, em Juazeiro do Norte, CE. “Eu sou o comandante Marcos, filho da p.”, ouviu o  estarrecido  agente João Lucena Leal quando colocou José Sales no pau de arara e ele, sabendo que não poderia ser morto diante de testemunhas, revelou quem era. Foi uma decepção para o Homem da Boina. Não disse também que duas décadas mais tarde, em Rondônia, os dois foram candidatos, um a deputado federal, no caso João Lucena Leal, e outro a deputado estadual e fizeram uma dobradinha política, com direito a cartaz e tudo. Dizia-se que eram Raimundo e o Capitão Trovão, dois personagens inventados pelo humorista Chico Anísio que representavam o Torturador e o Torturado numa relação de dependência muito forte. João Lucena não contou, e não pode contar, que foi ele quem prendeu o acadêmico de engenharia Pedro Albuquerque, em Fortaleza. Pedro Albuquerque, para quem não sabe, era o principal elo entre a guerrilha do Araguaia e os fornecedores de armas, cujos carregamentos saíam do Ceará e, por São Raimundo Nonato, no Piauí, chegavam ao sul do Pará para abastecer a guerrilha. O que Pedro Albuquerque não sabia ao ser preso é que nem João Lucena nem a Polícia Federal tinham conhecimento de sua atuação na guerrilha nem da rota das armas e, pensando ter sido preso por isso, tentou o suicídio no banheiro da Polícia Federal em Fortaleza. Ao ser impedido, entregou o jogo e permitiu ao regime a descoberta do que estava ocorrendo no sul do Pará e no norte de Goiás, na pequena Xambioá.

5. João Lucena Leal estava na TV para o Brasil todo ver no dia 30 de março de 2011.  O programa inovou, contudo, ainda caiu no lugar comum do maniqueísmo histórico. Seja como for, João Lucena e Sebastião Curió ainda teriam muito a contar sobre a História recente do país se, por um mero acaso, os governantes e os controladores da História do Brasil tivessem interesse iguais em personagens de uma época tão dura para o país, cuja história tem sido mostrada de forma vesga, com viés ideológico de ódio, e repulsa para uns, e de heroísmo e patriotismo para outros, dependendo de que lado do balcão tenham estado. João Lucena Leal jamais  será condecorado por suas ações. Nem espera por isso. Mas deveria, pelo menos, ser ouvido mais amiúde para que policiais como ele não tenham que, num futuro qualquer, prender e torturar pessoas por atos ou pensamentos políticos ou ideológicos, sejam militantes da Direita, sejam da Esquerda.

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Fonte: Francisco Matias - Historiador e analista político

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