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Montezuma Cruz

ERA ASSIM O SERTÃO PAULISTA


ERA ASSIM O SERTÃO PAULISTA - Gente de Opinião

Casamento na roça em Martinópolis (SP): a noiva com o buquê nas mãos;
adultos e crianças com suas melhores roupas /Fotos do acervo do autor

 

MONTEZUMA CRUZ
Amazônias


 

Quando Deus dá a farinha, o diabo furta o saco. Manga com leite faz mal. Passar por baixo de uma escada dá azar. Achar um trevo de quatro folhas é sinal de sorte. Abrir guarda-chuva dentro de casa pode atrair a morte. Sal em bolso de bêbado cura bebedeira. Quebrar espelho resulta em sete anos de azar – quanta coisa se falava na roça antiga!
 

Remédios de antigamente, ditados e provérbios populares, festas, objetos de cozinha em sítios e fazendas compõem o minucioso resgate feito pelo jornalista e escritor José Carlos Daltozo, no livro Costumes e Tradições Rurais, o décimo de sua autoria. Saiu pela Editora Impress, tem 128 páginas e 150 fotos e ilustrações em preto e branco.
 

 “Acredito que ele será lido com satisfação por aqueles que viveram ou ainda vivem na zona rural, e também por aqueles que só ouviram falar, mas gostarão de saber como foi sacrificada a vida de seus antepassados”, comenta o autor, que mora em Martinópolis, no oeste paulista, a 539 quilômetros de São Paulo.
 

No auge da cafeicultura paulista havia muitas casas de madeira, sapé e palha na zona rural. De 40 anos para cá o progresso causou o desaparecimento do arado manual, roda d’água, monjolo, fogão a lenha, chuveiro de balde, lamparinas e lampiões a querosene, ferro a brasa, pilões, garruchas, canivetes grande, moedores de café, entre outros. Eliminou também os costumes, entre os quais, a fritura e conserva de linguiça em varal acima do fogão. Salgava-se carne para fazer charque.

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Daltozo: o sertão do paulista em sua essência /Foto O Imparcial


O cinema desconhecido do povo da roça, o futebol, o jogo de bocha nos fundos de bares e armazéns, a limpeza dos grãos de café em terraços e o armazenamento em tulhas empolgam o leitor. Brincadeiras de crianças, casamentos, batizados, reuniões familiares – eis um cenário quase impossível no atual mundo de tablets e celulares de alta tecnologia.
 

“Não tendo bola de couro ou plástico, improvisavam com meias recheadas de palha e amarradas, ou até mesmo bexigas de animais abatidos, cuidadosamente lavadas, que enchiam de ar com um canudinho de folha de mamoeiro e brincavam até que ela estourasse” – descreve Daltozo. Com certeza, esse mundo é até hoje desconhecido das novas gerações de fãs das modernas bolas de futebol cujo consumo influencia até na escolha de jogadores de seleções.
 

Saci, lobisomem, corpo-seco, mulher de branco, caipora, curupira, boitatá, alma penada, casa mal assombrada eram comumente citados pelos mais velhos para conseguir um pouco de sossego e evitar traquinagens da criançada.  Entre as crendices mais conhecidas, ele menciona: mocinhas não deviam ficar fora de casa depois de meia-noite, do contrário “podiam se transformar em mula sem cabeça”.
 

A caça era diversão. Livre e abundante, ainda não se sujeitava às leis restritivas. Perdizes, codornas, saracuras, marrecas, nhambus, eram os tipos de aves preferidos. Também eram caçados mamíferos, entre os quais, cutias, pacas, catetos, queixadas e capivaras. Alguns tinham sorte de encontrar veados campeiros, lagartos e tatus-galinha, que também viravam refeições.
 

Gente de OpiniãoConstrução da Igreja no Distrito de Teçaindá, em Martinópolis

As pessoas se casavam geralmente em setembro, por um motivo simples: o final da colheita de café. O grão era colhido geralmente em maio e junho, secado, limpo e vendido em julho. Em agosto estariam livres do serviço pesado e com um pouco de dinheiro no bolso poderiam se casar nesse mês. Mas havia superstição: “Agosto é mês de desgosto”, inadequado para casamento, por isso, setembro era o escolhido.
 

Alguns noivos fugiam por causa da rejeição de um dos pais, outros porque não tinham recursos para fazer festa. O “fugir” significava os dois noivos irem para alguma cidade vizinha, onde ficavam uma ou duas noites num hotel, ou até mesmo na cada de amigos ou parentes, regressando logo depois à casa paterna. Fato consumado a união física do casal, não havia outro remédio senão marcar urgente o casamento no cartório e na igreja. Alguns casos iam parar na delegacia de polícia, mas tudo se arranjava da melhor maneira.
 

Sem energia elétrica no campo, o rádio a pilha proporcionava lazer e distração nos finais de semana, ou em fases de pouco trabalho nas lavouras. Quem não tinha rádio, ouvia o do vizinho, especialmente o noticiário e o programa de música caipira, que promoviam o congraçamento entre famílias e amigos.
 

Quem não tinha transporte adequado, comprava roupas e remédios nos armazéns da fazenda. E havia confusão, porque os produtos eram fornecidos a preços mais altos que os praticados na cidade.

ERA ASSIM O SERTÃO PAULISTA - Gente de Opinião  Galinhas no quintal. E a casinha, bem antiga


 

A falta de estradas e de hospitais nas pequenas cidades e vilarejos fazia do trabalho da parteira função de muita relevância. Ela atendia chamados mesmo em altas horas da noite, caminhando ou cavalgando longos trechos, até chegar à casa da parturiente. Em algumas regiões recebia nomes de curiosa ou aparadora, mas sua função era tão antiga quanto à própria humanidade. Chegaram a ser caluniadas, diziam que seu trabalho “era perigoso” para a mãe e a criança, “que realizava suas práticas sem asseio ou higiene”. Viajavam a pé, a cavalo, em pequenas embarcações nos rios, atravessando matas. Estiveram presentes no nascimento da maioria da população.
 

Se a criança está muito quieta, por estar com quebranto, e para eliminá-lo, jogavam-se três pedras de sal grosso, ou mesmo pitadas de sal, na água do banho. O povo criou tudo isso, sem base científica alguma.
 

O livro lembra o fenômeno dos boias-frias que trabalhavam em lavouras do oeste paulista nos anos 1970. Levavam marmitas de madrugada, com arroz, feijão, farinha, e ovo frito e, às vezes, um pedaço de carne. Comiam por volta de 11h, sob a sombra de árvores. Viajavam em bancos de madeira nas carrocerias de caminhões cobertos por lonas e, posteriormente, passaram a ser transportados em ônibus sucateados.
 

“Houve mudanças nas leis trabalhistas, levando pânico entre proprietários rurais. Grandes propriedades agrícolas desmancharam as colônias de casas em que residiam os trabalhadores. Os colonos migraram para as cidades, foram viver na periferia da zona urbana e trabalhavam por dia, conforme contato com um líder chamado gato, que os arrebanhava para as lavouras” – descreve.

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  Moinho, ferro de brasa, canivetes, garruchas,
chuveiro, máquina de costura


 

 “Não precisa ser nenhum Machado de Assis, nem Carlos Drummond de Andrade, ou Gabriel Garci Marques. Basta gostar de escrever e não ter receio de mostrar ao público”, ele diz, referindo-se aos concursos literários dos quais participa.


Escreva para José Carlos Daltozo
Caixa postal 117, 19500-000 Martinópolis (SP).
Ou solicite pelo e-mail: jcdaltozo@uol.com.br


 

Expressões típicas
do linguajar rural

Adonde é a lavoura do fulano?
Garrou a criar boi.
Morreu tudo os leitãozinho.
Do zoio verde.
► O que é quenós vai fazer?
Escuita só o que eu vou te dizer.
Ponhouele ali.
► Chegou a chorar de réiva.
► É custoso viver hoje em dia.
► Essa mortandela é bem gostosa.
Alembrode tudo e mais um pouco.
► Meus tempos de rapais.

 

O jeito de falar

►Abancá (sentar-se num banco)
►Abridera (abrir o apetite
►Ara... sê (ora... se). Expressão de dúvida
►Azucriná (atormentar)
►Arranchar (estabelecer-se provisoriamente)
►Binga (isqueiro)
►Brabo (zangado)
►Bobiá (bobear)
►Bocó (palerma, bobo)
►Breganha (barganha, troca)
►Bruaca (bolsa de couro em lombo de animal)
►Caboco (pessoa muito simples)
►Calombo (inchaço, tumor)
►Cafundó (lugar longe)
►Cambaio (perna torta)
►Cambito (pernil de porco)
►Catá (pegar)
►Campiá (procurar)
►Catinga (mau cheiro)
►Chilique (desmaio)
►Cotó (animal com rabo cortado)
►Cosquento (sensível a cócegas)
►De banca (de lado)
►Engrovinhado (mirrado, paralítico)
►Escangaiado (destruído)
►Espeloteado (maluco)
►Fuguera (fogueira)
►Jararaca (mulher enfurecida)

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 Mulheres na carpa, boias-frias e secagem do café


►Inhaca (azar)
►Intojado (cheio de si)
►Lombriga assustada (com medo)
►Meia-pataca (insignificante)
►Mió (melhor)
►Mancá (manquitolar)
►Módequê? (qual a razão?)
►Pernada (caminhada longa)
►Pidoncho (que pede muito)
►Pito (cachimbo, descompostura)
►Pórva (pólvora)
►Puía (mentira)
►Pra mode (por amor de)
►Relá (tocar de raspão)
►Tira-prosa (valente)
►Suzim (sozinho)
►Tauba (tabua)
►Titica (excremento de ave)
►Tramela (fechadura)
►Tropicar (tropeçar)
►Truxe (trouxe)
►Veiaco (velhaco)
►Xucro (cavalo não domado)

Ditados ou provérbios

Bezerro enjeitado não escolhe teta
Boi lerdo só bebe água suja
Cada um por si e Deus por todos
Casa onde não entra o sol, entra remédio
Depois de fugir o coelho, todos dão conselho
Dinheiro não dá em árvore
É andando que o cachorro acha o osso
Em terra de cegos, quem tem um olho é rei
Filho de burro pode ser lindo, mas um dia dá coice
Galinha que cacareja, botou
Lágrimas de herdeiro, riso sorrateiro
Não procure sarna para se coçar
Palavras ferem mais que a espada
Quem foi mordido por cobra, tem medo até de minhoca
Quem trabalha o dia inteiro, acha mole o travesseiro
Sapo não pula por gosto, mas por necessidade
Um homem prevenido vale por dois
No sítio do pobre, todo chuvisco é temporal


 

ERA ASSIM O SERTÃO PAULISTA - Gente de Opinião
 O transporte de algodão em 1945
ERA ASSIM O SERTÃO PAULISTA - Gente de Opinião
Procissão em frente à Igreja Matriz Santa Bibiana

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