Terça-feira, 17 de janeiro de 2017 - 15h31
Frei Betto
Em dezembro de 1516, a gráfica belga de Dirk Martens, em Louvaina, publicou “Utopia”, romance do inglês Thomas Morus (1478-1535). O título deriva do grego “utopos”, que significa “lugar nenhum” ou, no senso comum, “lugar de sonhos, além da realidade”.
Trata-se de uma ilha paradisíaca, que abriga a sociedade republicana ideal. Ali não se trabalha mais de seis horas por dia; não corre dinheiro; não existe propriedade privada nem cobiça; e seus habitantes socializam entre si os frutos da atividade agrícola.
Morus era pessoa de destaque na corte inglesa. Foi parlamentar, ocupou a nobre função de Lorde Chanceler e mereceu a confiança do rei Henrique VIII. O monarca apaixonou-se, em 1533, por Ana Bolena e decidiu se separar de sua esposa, Catarina de Aragão, e recasar no religioso com a nova mulher.
Isso contrariava todos os preceitos da Igreja Católica, que não admite o divórcio e, muito menos, o recasamento religioso. Diante da oposição do papa, Henrique VIII rompeu com Roma e fundou a sua própria Igreja, a Anglicana.
Thomas Morus, católico praticante, se opôs à decisão do monarca. Denunciou-o como herege. O rei mandou prendê-lo. Levado a julgamento, foi condenado à morte por decapitação. Em 1935, a Igreja Católica o proclamou santo. É considerado o padroeiro dos políticos.
O cinema retratou-o em “Um homem para a eternidade”, dirigido por Fred Zinnemann. O filme conquistou, em 1966, seis Oscar.
“Utopia” é uma crítica ao ambiente político da Inglaterra no século XVI, no qual predominavam a ambição de poder, a corrupção e a incompetência. Na ilha de Utopia, reina a justiça e a boa administração. Todos os seus habitantes são felizes naquela terra ecologicamente sustentável.
Na expressão de Michelet, “cada época sonha o seu futuro”. A Antiguidade concebeu a Arcádia, e Platão, a República ideal. A obra de Morus inspirou “As viagens de Gulliver”, de Swift, e “Robinson Crusoé”, de Defoe. Mais tarde, inspiraria também as distopias, como “Admirável mundo novo”, de Huxley; “1984”, de Orwell; e “Farenheit 451”, de Bradbury.
Marx considerou Morus um protocomunista do século XVI por abolir, em sua ilha imaginária, a propriedade privada.
Nos países capitalistas, o poder é antiutópico ou distópico por natureza. E tantos governos progressistas que, outrora, elevavam sua voz contra a exploração do capital e desfraldavam bandeiras progressistas, de leões bravios tornaram-se dóceis cordeiros do rebanho neoliberal.
O poder, devido às premências do presente, faz com que se perca a visão de futuro. E como o poderoso tende a perpetuar-se no cargo (vide as velhas raposas da política brasileira), procura reduzir o processo histórico a seu momento pessoal. Julga-se início e fim, sem consciência de que não passa de mediador (meio) de um mandato popular.
Daí o fato de se transformar numa figura ridícula, sem honra biográfica, mera caricatura de suas ambições desmedidas. Em sua pobre topia, muitos políticos já não enxergam a utopia.
Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.
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