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Crônica

Don José e os passarinhos, crônica em memória de José Neumar da Silveira


Don José e os passarinhos, crônica em memória de José Neumar da Silveira  - Gente de Opinião

“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza”... Assim Miguel de Cervantes inaugura a saga de Dom Quixote, na edição em espanhol empoeirada na estante, que trago de volta à vista neste 22 de abril, data em que o escritor espanhol e também Shakespeare partiram deste mundo. Refletia sobre a centenária efeméride europeia e literária do meu quarto no sul da América do Sul, nesse distante 2023, quando o passarinho azul preso ao celular vem me falar de outra morte. Neumar nos deixava. 

Jornalista e assessora, muitas vezes escrevi esse nome: José Neumar Morais da Silveira. Volto mais de uma década atrás quando os passarinhos que me desviavam a escrita do release eram os que bicavam seus próprios reflexos na janela do escritório do Sistema de Proteção da Amazônia. Era fim de tarde e eu levantava para ver a ave que logo fugia, deixando meu olhar solto pela vista até encontrar o chefe metido em seus tênis, nas caminhadas pós expediente que fazia pelo estacionamento. Depois pegava seu Uno e partia para casa, onde certamente encontraria a cubana Llitsia ao piano. Era quixotesca a figura franzina, de olhar acolhedor e sorriso frequente, sempre teimando em acreditar nas gentes daquele lugar, que não era em La Mancha, mas Rondônia. Ali onde, por tantos anos, seus sonhos tiveram guarida e também pôde combater alguns moinhos.

Certa vez, inclusive, mostrou toda sua destreza empunhando uma espada. Na verdade, a vareta da alavanca que se desdobrava e permitia acessar o estepe da caminhonete L200, que fica inacessível por baixo do automóvel até que alguém com suficiente perícia e conhecimento consiga baixá-lo. Eis que o cavaleiro já levava anos de estrada nos fios brancos e na política, contabilizando muitos pneus furados nas idas e vindas pela BR 364. Então a roupa se tingiu mais uma vez daquela terra e pudemos seguir. Enquanto eu enjoava nas curvas de chão batido rumo a mais uma aldeia indígena onde haviam sido instaladas antenas parabólicas, ele contava sobre os primórdios do Partido dos Trabalhadores no estado, incluindo visitas de Lula e a filiação de número 1 ou 2, não lembro.

Acreditava em coisas simples. Sobretudo, na sua ideologia e na possibilidade de tudo ser melhor para todos, igualmente. E assim mantinha quase todas as chefias ao seu redor nas mãos de mulheres, às quais cobrava dedicação, mas também rendia elogios e perfumava em seus aniversários. A nós, tinha conselhos para dar. Falava de seu amor e dos seus filhos.  Ao lado de um deles,  uma vez deu a volta completa nessa grande ilha do desterro em que vim morar. E assim, sua imagem foi se perdendo aos poucos de minha vista.

As lembranças vêm agora na névoa úmida e quente, como Porto Velho. Se encontram no vazio deixado por outros doces Josés do Sipam, como o meteorologista Jose Carvalho Moraes . Percebo como perdemos um pouco de nós com aqueles que vão, ficando num tempo que já deixou de ser. A saudade bica doído e às vezes bate à janela. Mas se alguns passarão, Neumar, presente, sempre será passarinho.

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