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Sandra Castiel

Um apartamento em Copacabana


Um apartamento em Copacabana - Gente de Opinião

Ontem cedo, enquanto andava pelo jardim, a brisa da manhã trouxe-me o inconfundível cheiro de jasmim; amo as florezinhas e o perfume que exalam, por isso cultivo um grande arbusto dessa planta tão antiga em meu espaço. Este episódio transportou-me a certo endereço em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Há muitos anos, meu marido e eu procurávamos um apartamento para morar naquele bairro, dada a facilidade de locomoção, a praticidade do comércio existente em quase todas as ruas dali e a proximidade do mar; amo contemplar o mar!

O prédio era antiquíssimo e os funcionários, bastante idosos, estavam ali há muito tempo: achei-os um tanto formais e comedidos, porém eram educados, isso bastava.  

Havia quatro apartamentos por andar: dois quartos, cômodos pequenos, mas com janelas grandes, era o que precisávamos. Mudança feita, seguimos a vida no novo endereço. Nos primeiros dois meses, tudo ótimo; dormíamos com as janelas abertas, no sétimo andar, e a brisa do mar refrescava os ambientes. Até que chegou o inverno e trouxe consigo um frio intenso; assim, as janelas precisavam ser fechadas, sobretudo à noite, quando a temperatura tornava-se mais baixa.

Certa madrugada, fui despertada por um som estranho: móveis sendo arrastados delicadamente, murmúrios de vozes masculinas e femininas que pareciam cochichar, para que não acordássemos, e aquilo vinha da sala do apartamento! -- Isto não seria possível --- pensei.  A princípio, achei que um grupo de pessoas conversava na rua em frente ao prédio. Olhei pelo vidro da janela do quarto, em todas as direções, não havia ninguém na rua àquela hora (três horas da madrugada), tampouco qualquer ruído dos apartamentos vizinhos; o silêncio era interrompido apenas por um ou outro carro que passava pela avenida próxima.

Enrolada no cobertor, dirigi-me cautelosamente até a sala. A luz tênue da arandela centenária, presa à parede, permitia-me enxergar todo o espaço, na penumbra.  Não havia pessoas, não havia nada estranho, tudo estava em seu lugar. Então, mais calma, concluí que fora apenas um sonho esquisito. Resolvi tomar um copo de leite.

Assim que entrei na cozinha, percebi um odor de incenso no ambiente e, de imediato, senti falta de ar; era o sintoma de minha alergia respiratória a odores fortes. Verifiquei se o basculante estava aberto, se o cheiro era oriundo do apartamento mais próximo, e nada; parecia mesmo que um incenso fora aceso em minha cozinha. Então, retornei ao quarto com o copo de leite e ingeri o líquido vagarosamente: quem sabe aquilo não fora criado por minha imaginação?

Nos dias subsequentes, minha mente estava tão ocupada com leituras e teorias relacionadas a meu trabalho que sequer comentei o episódio com as outras pessoas da casa. Até que, algumas semanas depois... acordo no meio da noite e a história se repete: murmúrios de conversas na sala, móveis sendo arrastados com certo cuidado, e eu, perplexa, tentando entender uma palavra ou outra do que diziam as vozes: em vão.

Decidi não ir até a sala. Acordei meu marido, que dormia tranquilamente ao meu lado: ---- Você está ouvindo algo estranho? ---- pergunto. --Não, não estou ouvindo nada; procure descansar. – responde.  Dito isso, meu marido fez uma carinho no meu rosto e voltou a dormir imediatamente. Claro que eu não consegui relaxar àquela madrugada: como poderia? Ouvidos atentos, acompanhei a movimentação que vinha da sala, até o fim. Quando tudo silenciou, eu estava exausta.

Pela manhã, percebi que precisava de alimentos fortes para compensar a noite terrível que tivera. Entrei na cozinha e fiquei atônita.  Lá estava o forte odor de incenso que eu sentira na primeira vez. Falta de ar. Cumprimentei a diarista que chegara cedo e limpava os armários sobre a pia.

Enquanto tomava um café reforçado com ovos mexidos, perguntei-lhe: --- Você sabe de onde está vindo este cheiro de incenso? --- Não. Não estou sentindo cheiro de incenso ---- responde a moça, depois de levantar a cabeça, e inspirar pelo nariz.  

Mal consegui trabalhar àquele dia. A possibilidade de que eu estaria ouvindo vozes, reuniões em minha sala e sentindo odores inexistentes me angustiava: estaria eu com esquizofrenia? Tudo é possível neste mundo de meu Deus.

Dediquei-me mais ainda ao trabalho e à pesquisa, algo que preenchia minha mente, mobilizava minha inteligência e alegrava minha existência. Assim, deixei pra lá o ocorrido: --seja lá o que tenha sido, ou o que for, estou em paz.  Com esse estado de espírito, segui minha vida. Até o dia em que conheci alguém que morava no sétimo andar (o mesmo andar que eu) há muito tempo.

A mulher da porta em frente à minha chamava-se Grace; de meia idade, falava com um inconfundível sotaque britânico. Apaixonada pelo Brasil, sobretudo pela mata atlântica e pelo Rio de Janeiro, apresentou-se a mim como uma botânica que exercia sua profissão no Jardim Botânico do Rio, espaço grandioso, criado pelo Imperador Dom Pedro II. Gostei dela. Conversamos.

Bastante sociável (talvez pelo longo tempo de convívio com brasileiros), Grace perguntou-me: --- Você está gostando do apartamento? ---Sim, estou gostando ---respondi sem muita convicção. ----Ainda bem, tomara que fique por aqui, porque ninguém permanece nele muito tempo. -----Então ela se volta para a portaria e fala baixinho, fazendo um gesto com a cabeça na direção do balcão onde estavam os antiquíssimos funcionários do prédio: ----Todos esses frequentavam as reuniões que aconteciam lá.

Não fazia a menor ideia do que Grace (a vizinha) acabara de falar. Então, ela continuou com aquela narrativa estranha: --- A antiga proprietária, mulher de uns oitenta anos (já falecida), era mentora de uma seita esquisita: uma vez por mês, ela recebia os seguidores; afastavam os móveis e abriam um círculo, no centro do qual promoviam ritos, repetiam mantras e acendiam incensos.

Antes que minha vizinha continuasse com mais informações sobre o passado do “meu” apartamento, despedi-me dela. No dia seguinte, meu marido ligou para a imobiliária e encontramos um outro lugar para morar. Ainda hoje, quando passo em frente àquele edifício (sempre igual), sinto calafrios. Observo que, desde sempre, cultivam lindas flores de jasmim, no jardim. O perfume é inconfundível.  

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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