Antônio Cândido da Silva
Dia 6 de junho do corrente ano fiz parte de um grupo liderado pelo Professor Emmanuel Gomes, com o objetivo “histórico investigativo” de fazer uma visita ao cemitério da Candelária, para verificarmos a construção de passarelas e outros melhoramentos feitos pelo IPHAM, naquele local.
À entrada, fiquei impressionado com o tamanho da placa indicativa da obra medindo, aproximadamente, 5m², em concreto bem trabalhado e que deve ter custado a maior parte dos R$-84.000,00 ali gastos.
Pelo pouco conhecimento que tenho de construção (mais como ajudante de pedreiro do que como engenheiro) poderia definir o concreto utilizado na construção daquelas passarelas como um concreto magro, não pelo reduzido “teor de cimento”, mas pelo elevadíssimo “teor de areia” o que significa dizer: uma porcaria.
Membros do grupo como os professores Abnael e Emanuel se pronunciaram através da TV-Rondonia, presente na ocasião, e Lúcio Albuquerque e Antônio Serpa do Amaral através dos nossos “sites”, o que significa que a indignação dos sepultados foi muito bem traduzida pelos ilustres citados.
Antes de tudo quero pedir desculpas por haver informado à jornalista Cléo Subtil, talvez sob o efeito da emoção, que durante a construção da ferrovia, foram enterrados, ali, 5.593 pessoas e, para que não haja mais dúvidas, apresentamos a tabela n.5 que faz parte do relatório sanitário final, com todos os óbitos ocorridos entre 1907 e 1912, ano do término da construção, num total de 1.593 mortos, informação extraída do livro “Trem Fantasma”, de Francisco Foot Hardman.
Há divergências quanto ao número de mortos nesse período, Manoel Rodrigues Ferreira, por exemplo, registra 1.552 falecidos, no entanto, todos os estudiosos do assunto concordam que morreram em torno de 6.000 trabalhadores, considerando os já desligados dos trabalhos da ferrovia, falecidos em Porto Velho, Santo Antônio, em viagem ou nos lugares de origem, como consequência de doenças adquiridas no local da construção.
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Em determinado momento, passeando pelas veredas que se tem de percorrer para descobrir alguma cruz quase totalmente enterrada pela ação do tempo, fiquei a pensar na última visita que fiz aquele lugar, há mais de dez anos, quando escrevi:
O cruzeiro de ferro, ao chão tombado,
não guarda sentinela ao campo santo.
O árabe, o judeu e o muçulmano,
um ao lado do outro sepultados.
E a triste visão do abandono
nos sepulcros que foram saqueados. Essa visita serviu para constatar que muita coisa mudou, para pior, de lá para cá: o cruzeiro sumiu, dos túmulos (saqueados) que eram bastante, encontramos três cuja “restauração” deixará envergonhado qualquer restaurador que se preze, e a área foi transformada numa enorme plantação de cupuaçu.
Agora estou aqui a pensar em o que está sendo feito com a história do meu povo karipuna no que diz respeito a esse campo santo. Uma área cujo processo de legalização começou em 08.01.1908 com o boliviano Fidel Claure Bacca solicitando ao governo do Amazonas a compra da área, vendida depois ao italiano Bertine e chegando ao domínio de Suares & Hermanos que em 1922 passou escritura pública de compra e venda à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, após a área ter sido desapropriada pelo governo Federal para implantação do parque ferroviário, através do Decreto n. 8.776, de 7 de junho de 1911, ação revogada pelo Decreto-Lei n. 1.031 de 6 de janeiro de 1939.
Está confuso?
Mais confusão veio depois quando a constituição do Estado de Rondônia (Art.264) tombou como patrimônio do Estado, todo o acervo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. O local foi grilado, cercado, a terra tombada (aqui no sentido agrícola) o Ministério Público embargou a invasão, fato que rendeu um parecer técnico com 404 páginas e vários documentos garimpados com competência pelo Dr. Fausto Matuscelli Monteiro e entregues ao Ministério Público para análise da história de apropriação indevida, através de grilagem, de falsificação de documentos e outras irregularidades.
Sabe-se que a construção da cerca foi embargada e rendeu, à época, vários entrevistas com o Promotor Público encarregado do caso, na mídia local. No entanto, não foi divulgado (que eu saiba) o resultado ou julgamento da investigação, fato lamentável para coroar o excelente trabalho do Doutor Fausto Matuscelli.
O Dr. Belisário Penna que emprestara seu nome ao educandário construído nas terras da Candelária, deve se sentir refugado da história médica Karipuna após seu nome ser sepultado nos alicerces de um condomínio de luxo e nas latrinas de um conjunto de casas populares (onde não há cuidado com alicerce) que lembrará doravante o nome de um novo herói surgido nos meios políticos do novo século.
Parece que um furacão à moda dos Hunos está varrendo das terras ribeirinhas qualquer vestígio da história dos índios, conquistadores portugueses, seringueiros, garimpeiros e, principalmente, a história da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré que teima em resistir defendida por meia dúzia de teimosos que se revoltam com o descaso das autoridades.
Passeando pelas veredas do cemitério sigo pensando nas 1593 vidas que acabaram ali até 1912, e todas as outras cujos restos mortais foram enterrados naquele campo santo até o ano de 1918, totalizando, aproximadamente, 3.500 pessoas.
Quanta história de amor, de lutas, de bravura, de determinação, de sofrimentos e de sonhos de construir e de voltar pra casa, interrompida pelo beribéri, malária, tifo, pneumonia e um rosário de moléstias estudadas e descritas por Osvaldo Gonçalves Cruz no seu relatório de 1910.
Valeu a pena para esses heróis anônimos, passarem por tantos dissabores para nos legar o chão em que pisamos se não somos dignos de recebermos e conservarmos esse legado?
Será que depois de solidificarem (definitivamente) com o preço da própria vida a conquista desta imensa região, nós temos o direito (ou falta de vergonha) de negar-lhes um espaço insignificante de 150m x 120m, tamanho da área do cemitério, para repouso eterno dos seus restos mortais?
Daqui a cem anos, será justo que façam o mesmo com a nossa memória?
Definitivamente, esse mísero pedaço de terra guarda histórias para muitos volumes. The Last Titan, de Charles A. Gauld, nos assegura que Olívio Gomes foi contratado para projetar o cemitério da Candelária e depois se tornou milionário (com a Tecelagem Parahyba e outros negócios em São José dos Campos, São Paulo). A história de Olívio é apenas um exemplo.
Há oito anos tenho pronto um romance sobre Lydia Xavier de Lima, o primeiro suicídio de Porto Velho; outro sobre o Karipuna Pitt, encontrado pelos americanos, abandonado e doente nos caminhos de medição da ferrovia, ao todo, oito obras à espera de um patrocínio para publicá-los.
Primeiro inventaram que não temos história, depois, gradativamente, estão destruindo ou permitindo a destruição do que existe porque sem provas não há história...
Devemos exigir um trabalho bem feito na área do cemitério da Candelária e coloco o material que possuo a disposição de quem estiver interessado em pesquisar para fins de “restauração” no verdadeiro sentido da palavra.
A verdade é que não podemos repetir o gesto de alguns que se contentam e batem palmas pelas migalhas históricas que nos servem, naquela conversa fiada de “que é melhor do que nada”...
Fonte: Antônio Cândido da Silva