Quinta-feira, 17 de junho de 2021 - 17h01
Na cafeicultura existem duas
perguntas que se propagam em toda a cadeia de produção e transformação. A
primeira: O que é um café especial? A segunda: Como produzir um café especial?
São questões que ecoam do campo à xícara e tem mais camadas que as paredes
seculares das casas dos barões do café.
Assim como aconteceu nestas
paredes, os tons, as cores e as percepções estéticas da bebida também foram
modificadas com o passar do tempo. Assim é a definição de qualidade do café, os
padrões são constantemente ressignificados em nome dos aspectos socioculturais
e das tecnologias disponíveis. Além, é claro, das questões referentes à
escala de produção e a eterna batalha entre o tecnológico e o artesanal.
Modelos que são, ao mesmo tempo, tão antagônicos e complementares. Então, vamos
começar o artigo com um "spoiler"! Cafés especiais envolvem capricho,
amor e, principalmente, entender que a alma do fruto está na semente. Sem ela
não há vida, nem sabor. Resumindo, cafés especiais preservam a vida do embrião,
do cafeicultor e, principalmente, do consumidor.
Agora que já discutimos o que faz
um café ter qualidade e ser especial, como produzi-lo? Nesse caso, é preciso
ser um pouco prolixo, apenas para que fique claro: produza semente! Partindo
deste princípio, estabelecemos alguns passos que vão da colheita à armazenagem
e que não podem ser negligenciados para quem deseja produzir cafés
especiais.
Passo a passo para
colheita e pós-colheita dos cafés Robustas Amazônicos: https://youtu.be/gpm4sYOwnG4
1. Colher por clone - no caso dos cafés canéforas
(robusta e conilon), cada clone tem características agronômicas e sensoriais
únicas e isso torna mais fácil criar lotes homogêneos e obter a repetitividade
no processo de pós-colheita. Além disso, cada clone tem seu ciclo de desenvolvimento
que pode ser: precoce, intermediário ou tardio. A colheita individual por
material genético garante maiores índices de frutos maduros (cereja). E,
pensando na semente, sabemos que elas vão se tornando mais viáveis à medida que
os frutos amadurecem. Para quem produz cafés da espécie arábica é interessante
colher por talhões, que devem ser bem homogêneos em relação às características
de solo, microclima, manejo e também genética.
2. Colher as plantas com o máximo
de frutos maduros - apesar de ser indicado o início da colheita com pelo menos 80% dos
frutos maduros, dificilmente se conseguirá cafés especiais com índices
inferiores a 95%. Sendo assim, ter plantas com bom índice de maturação, 80% de
frutos no estádio cereja, deve ser encarado apenas como o ponto de partida para
iniciar os trabalhos, nunca uma meta. Outro ponto fundamental, frutos, ainda
que tenham a mesma origem, se eles amadurecem em épocas diferentes, não devem
ser misturados em um lote único. Há trabalhos científicos que demonstram que o
brix – medida indireta de sólidos solúveis, principalmente açúcares – dos
frutos cereja no início da safra, para uma mesma planta ou talhão, tem valores
diferentes. E isso pode influenciar na qualidade final e seus atributos.
3. Lavar os frutos - além de retirar sujidades
superficiais dos frutos, o processo de lavagem ajuda a eliminar os famosos
"boias", que podem ser resultado de frutos mal granados (apenas uma
semente ou chochos), brocados, defeituosos e até secos (sobremaduros). Por meio
do princípio da densidade, se separa os frutos íntegros, cerejas, verdoengos e
verdes dos demais. Uma dica interessante, os frutos que boiam, porque estavam
secos ou com apenas uma semente, dependendo das condições climáticas, podem
apresentar boa qualidade. Sendo assim, podem ser beneficiados de forma
diferenciada dos “defeituosos”. Para tanto, seria interessante ter uma mesa
densimétrica.
4. Selecionar os frutos perfeitos
- os
frutos cereja são o princípio básico da qualidade de bebida. Como nem toda
colheita é perfeita ou seletiva, se recomenda a catação manual dos frutos
verdes remanescentes. Isso demanda mão de obra, mas pode ser viável para cafés
com foco em mercados diferenciados ou concursos. O processo manual e mais
artesanal é excelente e pode produzir microlotes excepcionais, mas são
limitados pela capacidade de escala. Para aumentar esta produção de cafés
especiais e diferenciados, é necessário o investimento na seleção mecânica.
Atualmente, os equipamentos mais conhecidos são os de via úmida e as seletoras
que utilizam processamento de imagens e inteligência artificial. Elas são
consideradas ecológicas, não usam água e não geram resíduos. Estão se
popularizando pela praticidade e incremento de resultados. Mas, ainda é
considerado um investimento de alto custo, algumas centenas de milhares de
reais.
5. Escolher o processamento - se baseia na realidade
ambiental, tecnológica e o perfil sensorial que se deseja atingir. De forma
geral, a escolha passa por duas opções básicas e suas variantes: via úmida ou
via seca. A via úmida exige o uso de equipamentos como lavador/separador,
despolpador e desmucilador (opcional). A via seca se dá sem processamento e os
frutos vão íntegros à etapa de secagem. Obviamente, é mais fácil trabalhar a
qualidade do café por meio dos equipamentos de via úmida. O sucesso da via seca
está na homogeneidade de maturação das plantas e na capacidade de mão de obra.
Mas, de forma geral, tem limitação de escala e maiores custos. Normalmente, a
bebida do café de via úmida tem aspecto suave, leve e muito limpo. Já, a via
seca, proporciona bebida marcante e adocicada.
6. Fermentar ou não
fermentar? Qualquer
que sejam os processos escolhidos: natural, despolpado, desmucilado, descascado
ou fermentado, eles não são melhores entre si. Cada um agrega características
diferentes ao perfil sensorial natural e intrínseco do fruto. Os atributos
sensoriais de cada processo, que também podem modificar as características
físico-químicas dos grãos (sementes), podem trazer exoticidade e singularidade
à bebida. A apreciação e valorização dessas nuances varia com o mercado,
valores culturais do consumidor e também se modifica com o tempo. Atualmente, a
maior acidez e percepção de doçura, que são obtidos no processo de fermentação
positiva, têm sido muito valorizado. Com "status de novidade" entre
os antenados da cadeia de transformação, tem conquistado júris de concursos. Já
vimos esse filme antes, não …? Houve um tempo em que os cafés obtidos por via
úmida eram muito mais valorizados que os naturais. O fato é que todos os
processos mencionados, quando realizados com respeito às boas práticas
agronômicas, são tecnicamente especiais, o resto é questão de gosto.
Para os cafés canéforas, os
processos de fermentação positiva, sendo os anaeróbicos mais comuns, têm sido
muito bem aceitos. É conhecido que os Robustas Amazônicos Finos, naturalmente,
têm corpo agradável e marcante, doçura presente e acidez sutil, além das
nuances de castanhas, caramelo e chocolate. A fermentação positiva ou
controlada, tem agregado acidez a estes cafés, o que tem deixado a bebida muito
equilibrada e com aspecto mais brilhante. Independente da preferência
individual do consumidor, se pode dizer que os cafés de fermentação positiva e
outros processos trazem ainda mais diversidade à cafeicultura. De certa forma,
esta nova onda de processos de pós-colheita, vem para destacar o quanto a
ciência pode transformar realidades, seja no campo ou na cidade. E serve para
demonstrar que “o saber fazer” tem conquistado uma participação cada dia mais
importante na determinação do “terroir” de uma região.
É incrível como as tecnologias de
pós-colheita comprovam como se pode extrair diversidade sensorial em um único
lote de frutos. Definitivamente, não há espaço para marasmo e rotina no
campo. Entretanto, há de se salientar que o desenvolvimento de novas técnicas
de fermentação deve estar atrelado à pesquisa científica. Isso evitará menor
chance de erros e a produção de grãos que podem trazer riscos à saúde do
consumidor. Processos fermentativos equivocados, ao invés de agregar aspectos
sensoriais desejáveis à bebida, podem proporcionar um ambiente favorável à
proliferação de microrganismos, que têm como resultado do seu processo
metabólico, toxinas que podem causar danos à saúde humana. Ser saudável,
nutracêutico – com valor nutricional e que proporcionam também benefícios para
a saúde – e seguro também são atributos de qualidade.
7. Secagem - qualquer que seja o método
se secagem escolhido, existe um princípio básico: Quer produzir um café verdadeiramente
especial? Esqueça os grãos, produza sementes! Isto quer dizer que a manutenção
da viabilidade do embrião deve ser perseguida em cada etapa de produção.
Para isso, a secagem deve ser lenta e gradual. Se possível, a secagem deveria
ser realizada à meia sombra. Tendo a temperatura de 35°C como alvo,
aceitando-se o intervalo de 35°C a 45°C. Este intervalo é naturalmente
alcançado em secadores solares em diversas regiões do país. O uso de cobertura
que proteja o café de eventuais chuvas e umidade noturna é bem-vindo. Além
disso, as camadas devem ser o mais fina possível e os frutos e sementes
precisam ser constantemente movimentados. O processo de secagem natural é muito
tradicional, extremamente indicado para a agricultura familiar de pequena escala
e possui grande diversidade de opções: estufas, pátios cimentados, terreiros
suspensos, sendo o último considerado referência para cafés especiais.
Independente da escolha, todos seguem o princípio do uso da energia solar,
circulação natural de ar e a proteção da umidade externa. É um processo lento
de secagem que pode variar de uma a três semanas, de acordo com a estrutura e
condições ambientais.
Mas, também é possível produzir
cafés especiais por meio de secadores mecânicos. Para tanto, é necessário
atentar que a temperatura ideal de secagem se mantém a mesma (35°C a 45°C).
Também é importante que o ar aquecido que trafega entre os frutos e sementes
não carregue fuligem, fumaça e outros resíduos do processo de combustão. O
famoso e tão necessário fogo indireto. Infelizmente, apesar de
extremamente práticos e de possibilitar a secagem rápida de grandes volumes de
café, alguns encaram o processo como se fosse uma corrida. Chegam a utilizar
altíssimas temperaturas (acima de 200°C) e finalizam o processo em menos de dez
horas. Para se ter uma noção, a expectativa é que sejam necessárias entre 48 e
72 horas para secar cafés especiais. Obviamente, o tempo pode variar um pouco
de acordo com o mecanismo escolhido e a umidade inicial dos frutos. Alguns cafeicultores
utilizam mecanismos, tipo centrífugas, que retiram a umidade superficial do
café antes de levá-lo ao secador. Em resumo, se o processo de secagem fosse uma
corrida, ganharia quem chegasse por último.
Alternativas de terreiros secadores solares para a produção de cafés com qualidade: https://youtu.be/QgxsJ2vzKU4
Como fazer terreiro suspenso para
secagem do café: https://youtu.be/OGoSwDxFPeU
8. Armazenagem e beneficiamento - ao finalizar a etapa de
secagem o cafeicultor praticamente cumpriu a sua tarefa. O que resta agora é
preservar a qualidade conquistada até o momento da comercialização ou torra.
Para isso, existem alguns princípios básicos: o ambiente deve ser seco (umidade
próxima a 60%), temperatura amena (entre 20°C e 25°C), limpo, livre de insetos,
roedores e sem a presença de qualquer animal doméstico. Os frutos podem ser
armazenados em coco, no caso dos cafés naturais, e em pergaminho, para os cafés
provenientes de via úmida. Mas, por questão de espaço ou praticidade, também
pode ser guardado já beneficiado. Existem diversos tipos de embalagens
permeáveis, semipermeáveis, impermeáveis e algumas que até prometem maior preservação
da qualidade. Seja qual for a escolhida, devem ser novas, limpas e codificadas
de acordo com a rastreabilidade de cada lote. Deve-se evitar o contato das
sacas com o piso ou paredes. Não raro, cafeicultores já perderam cafés
espetaculares, ganhadores de concursos, por equívocos na armazenagem. O ideal é
que o período de armazenagem se estenda por, pelo menos, 15 dias, para então o
produto ser beneficiado. Pois, nesse período, ocorre a estabilização de
transformações químicas e de propriedades físico-químicas associadas à
qualidade de bebida. É importante frisar que, por melhores que sejam as
condições de armazenamento, os cafés vão perdendo a intensidade de seus
atributos ao longo do tempo. Então, é de se esperar que cafés de safra passada,
ainda que mantenham características agradáveis e se enquadrem como especiais,
possivelmente não têm a mesma potência dos de safra nova.
Uma dica importante fica para os
cafés submetidos à fermentação positiva. Apesar de o entendimento completo dos
processos físico-químicos ainda serem objeto de estudo, se tem observado, na
prática, que os cafés fermentados tendem a se estabilizar em umidades inferiores
a 10%. Sendo assim, para evitar perdas no momento de beneficiamento dos grãos,
principalmente para os robustas de peneira alta, se recomenda não esperar muito
para beneficiar os cafés armazenados.
Novos caminhos para diversificar
a qualidade
São muitos os caminhos que levam
à qualidade. Mas, todos têm em comum o respeito ao alimento e o capricho. Os
cafeicultores brasileiros já perceberam que o país não é apenas um produtor de
commodities. E, para manter e ampliar a sua participação no mercado mundial,
que já é de 40%, precisa continuar evoluindo na qualidade do seu produto.
É preciso garantir que o alimento que chega à mesa do consumidor seja
agradável, prazeroso, nutritivo e, principalmente, saudável. Isto quer
dizer, livre de contaminantes químicos, impurezas e micotoxinas.
Somos acostumados às frases como:
"Os fins justificam os meios!" Mas, no caso dos cafés especiais, os
meios justificam o fim. Nesse caso, cabe aí outra frase bastante conhecida e
que deveria ser seguida por toda a cadeia: "Ame o próximo como a si
mesmo!" O produtor que segue este princípio não vai querer entregar nada
menos que o seu melhor. E o consumidor, por sua vez, vai se sentir feliz em
valorizar de forma justa este trabalho de amor.
Para quem chegou até aqui, ficam
algumas dicas extras para dois processos de fermentação positiva que podem ser
úteis:
1. Apesar de existirem indícios
de que a fermentação possa melhorar o aspecto sensorial dos cafés verdes, seja
por possibilitar o despolpamento dos frutos, ou mesmo, diminuir a adstringência
da bebida, o segredo está nas características intrínsecas dos frutos maduros. O
café de qualidade e as características finais da bebida começam no fruto
cereja.
2. O método conhecido como
“sprouting process” ou “bombona” tem alguns protocolos específicos para o café
robusta. Os frutos perfeitos e lavados vão diretamente para a bombona, se
faltar um pouco para encher, não tem problema. Atenção com a vedação e com o
posicionamento correto da válvula “airlock” ou da mangueira conectada à garrafa
pet com água. A bombona só deve ser aberta no momento final do processo
fermentativo. Segure a curiosidade, não a abra antes do tempo. Para cafés
Robustas Amazônicos, o tempo de fermentação pode variar de dez a 20 dias.
Normalmente, aos dez se obtém um padrão mais suave na bebida, lembrando frutas
secas, espumantes e florais. Já aos 20 dias, o perfil fica mais intenso e com
aroma e sabor marcantes, que lembram vinho, amarula e licor.
3. Apesar de a maioria dos
processos de “bombona” utilizar frutos cereja íntegros, pode ser obtido
excelente resultado utilizando-se frutos descascados. Mas, é preciso manter a
mucilagem que envolve as sementes. Isso pode facilitar muito a produção de
lotes maiores de cafés fermentados, pois a seleção manual dos frutos envolve um
trabalho intenso.
4. Existe a possibilidade de usar
leveduras comerciais para induzir um processo fermentativo, algumas vezes com
sucesso. Também existem alguns grupos de pesquisa, selecionando microrganismos
específicos para o processo de fermentação controlada do café. Mas, ainda há
muito a evoluir se levarmos em consideração as variações de espécies e
ambientes da cafeicultura brasileira. Na dúvida, é melhor o cafeicultor
trabalhar a fermentação se beneficiando da microbiota local e endofíticos –
microrganismos que vivem em associação positiva com as plantas do café. Os
cuidados de higiene e os protocolos anaeróbicos – sem presença de oxigênio –
têm sido suficientes para proporcionar um ambiente favorável à fermentação
positiva. Também existem alguns processos, às vezes controversos, que utilizam
aditivos como frutos e especiarias. Mas, ainda existe muito empirismo nesse
processo, melhor aguardar estudos mais conclusivos e se dedicar aos processos
já consagrados.
5. O fluxo de ar no “airlock” ou
garrafa pet é um indicativo de que o processo está ocorrendo a contento.
Normalmente, ocorre nas primeiras 24 horas, mas a intensidade vai depender de
inúmeros fatores ambientais e genéticos.
6. Ao finalizar o prazo do
processo fermentativo na bombona, os frutos ou sementes devem ser escoados e
levados para o processo de secagem, que devem seguir as mesmas regras já
mencionadas. A expectativa é que o café tenha aromas agradáveis como de frutas
secas, vinho e garapa. Aromas estranhos e duvidosos podem indicar algum
equívoco no processo que pode ter levado à fermentação indesejada como acética
e butírica. Caso isso ocorra, estes cafés são candidatos ao descarte. Pois,
podem apresentar riscos à saúde do consumidor.
7. Após a secagem, como se tratam
de cafés muito aromáticos, é interessante armazenar em embalagens impermeáveis
ou sacarias limpas envoltas em filmes plásticos que ajudem a preservar as
características desejáveis desses cafés.
A produção de cafés especiais,
como pode ser visto, envolve muitos conceitos simples, mas que provém de uma
complexidade de parâmetros científicos. O cafeicultor, antes de submeter sua
produção à uma nova prática agronômica, deve consultar um engenheiro agrônomo
ou especialista da área. Tanto a Embrapa Rondônia como a Emater-RO dispõem, em
seus portais na internet, inúmeras informações em vídeos e documentos
técnico-científicos que podem subsidiar o agricultor para a escolha do processo
de colheita e pós-colheita que melhor se adequam à sua realidade e objetivos.
Como fazer fermentação positiva do café - método o "sprouting process": https://youtu.be/Nt_tT_e0itI
*Enrique Anastácio Alves é doutor na área de Engenharia Agrícola e,
desde 2010, atua como pesquisador A na Embrapa, nas áreas de Colheita,
pós-colheita do café e qualidade de bebida. Contato: enrique.alves@
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