Quinta-feira, 7 de março de 2024 - 18h38
Na luta contra a
insegurança alimentar, emergem histórias inspiradoras de mulheres resilientes,
que, com mãos firmes e o desejo de ver a terra florescer, garantem o alimento
na mesa de suas famílias e vizinhos. Elas transformam pequenos pedaços de terra
em espaços de esperança e nutrição, desafiando as adversidades e construindo
legados de prosperidade. Mulheres como Irene, Nerci e Érika, de Rondônia, cujas
histórias de luta e superação ressoam como um chamado à ação pela segurança
alimentar, igualdade e dignidade, se desdobra como um verdadeiro combate às
adversidades com coragem e constrói legados de abundância. Elas entendem que
cada semente plantada é um passo em direção a um futuro mais promissor.
A jornada de
resiliência de Irene contra a fome
Entre as lembranças
da infância, a morte do pai e as dificuldades enfrentadas pela mãe para
alimentar os oito filhos está entre as mais marcantes de Irene Rocha de Almeida
Macedo, agricultora familiar de 43 anos, moradora do Assentamento Terra
Prometida, em Rolim de Moura, interior de Rondônia. Ela volta a essa lembrança
ao contar sobre a sua história no campo e a realização de um sonho despertado
lá naquela época: o de plantar e colher alimentos. Hoje Irene tem o seu próprio
pedaço de terra para plantar e já colhe os frutos de uma realidade mais doce,
onde ela pode alimentar a família com qualidade e ainda ajudar a quem precisa,
ao mesmo tempo em que gera um incremento para a renda familiar.
“Eu e meu irmão
mais velho, a gente dizia: quando a gente crescer, vamos ser gente. Vamos
plantar para ter na nossa mesa, para o vizinho, para o próximo. Para ninguém
passar o que a gente já passou. Porque a fome é triste, a necessidade é
horrível!”.
A fome, que marcou o
passado de Irene e os irmãos, não só é, ainda, uma realidade dos tempos atuais,
como se agravou nos últimos anos no Brasil e no mundo. Dados do relatório “O
Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)”, publicado em
2023 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO), mostram que em 2022, mais de 70 milhões de pessoas estiveram em estado
de insegurança alimentar moderada no país, ou seja, tiveram dificuldade para se
alimentar. O levantamento também aponta que pelo menos 21 milhões de
brasileiros passaram por insegurança alimentar grave, caracterizada pela falta
de acesso à comida, podendo passar fome durante o dia e, nos casos mais
extremos, passar dias sem comer.
Para o presidente do
Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) da Organização das
Nações Unidas (ONU), a erradicação da fome passa pela definição de uma
prioridade global de investimento em agricultores familiares e em sua adaptação
às mudanças climáticas, com a promoção do acesso a insumos, tecnologias e
financiamentos para pequenos negócios. “Os pequenos produtores são parte da
solução. Com o suporte adequado, eles podem produzir mais alimentos,
diversificar a produção e abastecer os mercados urbanos e rurais – alimentando
áreas rurais e cidades com alimentos nutritivos e cultivados localmente",
reforça o presidente do PMA/ONU, Alvaro Lario.
Apesar de Rondônia
apresentar um dos melhores índices de segurança alimentar do país, reforça o
coordenador do projeto Viveiro Cidadão, Marcelo Ferronato, a fome ainda
persiste, destacando a importância da soberania alimentar. “O que abrange o
acesso universal a alimentos saudáveis, a valorização da produção agrícola
local, a sustentabilidade e a autonomia das comunidades”. Ele completa que o
enfrentamento à fome requer reconhecimento de sua natureza coletiva e a
implementação de políticas públicas que abordem tanto a segurança alimentar e
nutricional, quanto o fortalecimento da agricultura familiar, responsável por
uma parcela significativa da produção de alimentos básicos no país.
Investir nas
mulheres: Acelerar o progresso
Neste contexto, mulheres como Irene
estão entre as mais vulneráveis diante de um sistema econômico e de produção
explorador e desigual. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas propõe o
tema "Investir nas mulheres: Acelerar o progresso" para o Dia
Internacional da Mulher de 2024, incentivando discussões sobre a escassez
mundial de financiamento para ações eficazes que promovam a equidade de gênero
e o empoderamento de meninas e mulheres. Este tema enfatiza também a
necessidade de transição para uma economia verde e uma sociedade do cuidado.
Foi em busca de
mudança, que em 2015, um grupo de mulheres do Sindicato de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais de Rolim de Moura provocou o projeto Viveiro Cidadão a
investir na inclusão socioprodutiva de mulheres e jovens da agricultura
familiar, para fomentar uma agricultura sustentável. Realizado há mais de 10
anos pela Ação Ecológica Guaporé - Ecoporé, com patrocínio da Petrobras, o
projeto começou a oferecer suporte para a implantação de Quintais Produtivos,
ampliando esta abordagem para incluir comunidades extrativistas, quilombolas e
indígenas. Essas áreas, localizadas nos arredores das casas, são destinadas ao
cultivo de frutas, verduras, ervas, plantas medicinais e à criação de pequenos
animais. É nesses espaços que as mulheres aplicam e vivenciam os conhecimentos
tradicionais, promovendo o uso consciente da água, do solo e a preservação de
sementes.
Ascensão feminina
na vanguarda para soluções sustentáveis
Em um momento em
que o mundo clama por soluções urgentes de mitigação, adaptação e combate às
desigualdades, mulheres como Irene emergem como heroínas reais,
fundamentais para a erradicação da fome, para a transição para modelos de
produção sustentáveis e a promoção da equidade.
Desde 2017, mais de 250 mulheres, por meio de sua participação no projeto Viveiro Cidadão, têm sido agentes de transformação, não apenas redefinindo o cenário de suas propriedades, mas também elevando a renda e a qualidade de vida de suas famílias e comunidades, fortalecendo a segurança alimentar e nutricional nas localidades onde atuam.
“A gente sempre morou no sítio, mas sempre plantando no que era dos outros. Quando chegava a hora da gente aproveitar, a gente tinha que desocupar. Aí apareceu a oportunidade da gente ter o nosso pedacinho de chão pra gente plantar e depois veio outra benção, que é o Viveiro Cidadão, que nos ajudou com as mudas, dando força e coragem que a gente às vezes procurava e não encontrava”.
Hoje em seu quintal, Irene contabiliza as inúmeras frutas e outros cultivos, como araçá, canela, cravo, biribá e abacate, que ela sempre sonhou em ter e que hoje ela tem, além de plantar, colher e alimentar a sua família, sua comunidade e ajudar a quem mais precisar. Para ela, é a realização do seu sonho de infância. “Eu gosto de plantar, gosto de ver as frutas, ver o alimento na mesa. Não só na minha, mas na do próximo, de um vizinho, de alguém na rua que precisa. E ainda trazer uma renda pra nossa mesa. Eu acho lindo um quintal cheio de frutas, bem organizado… ainda não cheguei aonde eu quero chegar, mas tenho fé que eu chego lá”, diz.
Harmonia e saúde: o poder transformador dos Quintais Produtivos biodiversos
No quintal de dona Nerci Senhora dos Santos a diversidade produtiva também é destaque. Tem amora, acerola, jambo, banana, coco, laranja, além das plantas medicinais, evidenciando o saber tradicional transmitido por gerações. Tudo é cultivado com muito esforço dela e do marido, sem o uso de defensivos químicos. “É tudo à base de enxada, da foice, de roçadeira, não tem agrotóxico, é tudo natural. Muitas pessoas vêm de longe aqui buscar as coisas”, diz ela, explicando que a comercialização da produção é feita na própria propriedade e os consumidores vêm do entorno e de outros municípios.
Quando perguntada sobre o que o quintal produtivo significa para ela, dona Nerci é enfática: “Significa tudo, filha, porque eu não tenho intenção de sair daqui. Aqui eu me sinto feliz, porque você vê que é um fruto do seu trabalho. Você está colhendo a sua renda, sabe que vai ajudar alguém, porque aqui a gente vende com preço acessível. A gente plantou, colheu, está comercializando uma coisa com qualidade, e as pessoas estão levando”, destaca a agricultora.
O sonho - e a realidade - de Érika Aparecida Machiore não se distancia muito ao de Irene e Nerci. Filha de agricultores, ela cresceu no campo e nunca pensou em sair de lá. Foi com o trabalho na terra que ela criou o filho e hoje, ao mesmo tempo em que amplia a área de floresta, recuperando uma área que era de pastagem, ela produz frutas, verduras e até arroz entre os corredores do seu Quintal Produtivo. “É uma paixão. Toda a vida criei meu filho na agricultura familiar e sempre foi um desejo produzir, repartir, plantar e colher. Aqui nós temos de tudo um pouco. Tem abacaxi, cacau, colorau, bananeira, mandioca. Nós também aproveitamos a área e plantamos arroz”.
A diversidade na produção, segundo ela, garante não só uma melhoria na renda, como também economia e mais qualidade na alimentação e saúde da família. “Algumas outras coisas que têm que buscar lá no mercado, a gente sabe que o preço é salgado. Então plantando aqui, a gente tem mais saúde, porque a gente sabe o que planta e o que come”.
E os benefícios do seu quintal também chegam também ao filho, que mora na cidade, e aos vizinhos da propriedade, com a doação e troca dos excedentes. “Ajuda tanto a minha família, quanto os vizinhos. E sempre tem fartura na mesa”, finaliza Érika.
Potencializando rendas: o impacto econômico dos Quintais Produtivos
Por meio da distribuição de mais de 167 mudas mil pelo Viveiro Cidadão para as mais de 250 mulheres, associadas ao fornecimento de insumos e assistência técnica contínua, o modelo produtivo proposto pelos quintais se revelou com um potencial expressivo para aumento de renda. Esta constatação surge a partir de uma análise detalhada dos ciclos de produção anuais e da avaliação dos valores de mercado. O foco desta análise recai sobre o cultivo de 11 espécies, escolhidas pelas mulheres, e consideradas prioritárias para a região, que incluem açaí, mamão, abacaxi, pupunha, cacau, maracujá, cupuaçu, banana, graviola, laranja e ponkan.
A produtividade média dessas variedades, juntamente com o número de plantas cultivadas em cada quintal, foi avaliada com base nos preços médios fornecidos pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Rondônia (Emater-RO), oferecendo um panorama detalhado do incremento financeiro possível através deste projeto.
Essa diversidade não só promove um aumento financeiro considerável, mas também valoriza o conhecimento tradicional e a riqueza da biodiversidade local. Os resultados destacam que o suporte aos quintais produtivos não somente fomenta a prática de uma agricultura sustentável, mas também viabiliza um importante avanço econômico para as famílias participantes.
De forma ilustrativa, quando avaliamos a jornada de Irene, participante do projeto desde fevereiro de 2022, e que tinha uma renda mensal inicial de cerca de R$400,00, é possível vislumbrar a possibilidade de dobrar seu rendimento após o cultivo das espécies frutíferas fornecidas. Em um horizonte de seis anos, essa projeção de crescimento poderá ser oito vezes maior, demonstrando um impacto econômico considerável em sua vida e de sua família e comunidade.
No caso de Nerci Senhora, cadastrada na mesma época, a partir da quantidade de mudas frutíferas solicitadas por ela para enriquecimento do seu quintal a projeção de incremento pode ser superior a R$22.000,00 a sua renda anual.
Globalmente, a implementação do conjunto dos Quintais Produtivos traduz-se em um potencial de geração de riqueza acumulada superior a R$ 6,2 milhões após seis anos, marcando um avanço significativo para a região da Zona da Mata rondoniense.
Sheila Noele, engenheira agrônoma e atual presidente da Ecoporé, explica que esses cálculos são realizados pensando na comercialização destes produtos, porém há ganhos imensuráveis, como o conhecimento tradicional aplicado e reaplicado nestes espaços, “a qualidade e diversidade dos alimentos consumidos pela família, o fornecimento de alimentação para os animais domésticos e fauna nativa, além das trocas e doações da colheita entre vizinhos, fortalecendo os laços que mantém a agricultura familiar forte e resiliente”, finaliza.
Semeando o futuro: a força e esperança das mulheres da Amazônia
É neste movimento silencioso e poderoso na Amazônia que a esperança floresce nos quintais dessas mulheres corajosas, que com as mãos na terra, semeiam mais do que alimentos: semeiam esperança, dignidade e um futuro de possibilidades ilimitadas.
As histórias de Irene, Erika e Nerci não são apenas relatos de uma transformação agrícola; mas o testemunho da força humana e da capacidade de superar adversidades com perseverança. Em cada semente plantada e cada colheita partilhada, essas mulheres redefinem o que significa nutrir e ser nutrido: não apenas pelo alimento, mas pelo profundo senso de comunidade, apoio mútuo e um compromisso inabalável com a vida e a prosperidade sustentável.
Na celebração deste Dia Internacional da Mulher, elas nos ensinam que, mesmo dos menores quintais, podem brotar as mudanças mais significativas para o mundo, alimentando não só os corpos, mas também as almas de suas famílias e vizinhos. Neste cenário de esperança, cada dia é uma celebração da vida, um tributo à terra que nos sustenta e um lembrete de que, juntos, podemos enfrentar os desafios mais difíceis enquanto sociedade.
À medida que o sol se põe sobre a Amazônia, ele não marca apenas o fim de mais um dia, mas o amanhecer de um novo mundo de possibilidades, gentilmente cultivado pelas mãos determinadas dessas mulheres extraordinárias.
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