Quarta-feira, 8 de setembro de 2021 - 23h40
Entre a caixa d’água e a Igreja de
Nossa Senhora Terezinha, ficava a residência do José Ribeiro da Costa,
administrador da estação ferroviária da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Após a
igreja, residia o telegrafista José Gomes, e entre sua residência e o Rio
Mamoré, foi instalada a caldeira que abastecia a caixa d’água que
alimentava as fumarentas locomotivas inglesas, no vai e
vem diário entre Porto Velho e Guajará-Mirim.
O porto ficava na mesma direção da
estação ferroviária. Bem próximo foi instalada a representação da Jacob Sabbá,
empresa responsável pela comercialização de toda a Castanha do Pará que descia
através das barcaças “Vaca Diez” e “Mojo”, dos castanhais entranhados nos vales
dos Departamentos de Beni e Pando bolivianos.
Semanalmente, essas embarcações
regurgitavam no porto de Vila Murtinho toneladas da Bertholletia
excelsa, que os encarregados da Jacob Sabbá armazenavam na estação,
onde aguardavam o embarque nos vagões das locomotivas com destino a Porto
Velho, depois seguiam viagem nos porões dos navios que desciam o Rio Madeira,
para serem negociadas com as casas de aviamentos das cidades de Manaus e Belém
do Pará.
A residência do delegado José de Sá,
fora construída às margens do Mamoré, entre o porto e a escola
Aluízio Ferreira. Nas suas folgas, o delegado trabalhava como
sapateiro, ofício que aprendera ainda criança com seu pai no sertão de Caicó.
Era um exímio artesão no conserto e fabrico de sapatos, bolsas, carteiras e
cintos, cuja matéria-prima chegava em suas mãos vinda dos melhores curtumes do
Nordeste.
Construíra sua oficina nos fundos da
residência, defronte para o Mamoré, de onde se via o vai e vem das embarcações,
o encontro das águas do Mamoré com o Beni e a bandeira do país boliviano
fincada no alto de um poste de paxiúba acenando incansavelmente para a torre da
Igreja de Santa Terezinha. José de Sá não tinha família, era quase um ermitão e
só deixava sua residência para ir à delegacia, ou no botequim do Manduquinha,
tomar uns tragos de conhaque São João da Barra.
Num final de tarde límpida em que o
sol abraça furtivamente as matas das margens dos rios e lança raios multicores
sobre suas águas, dando aos peixes um colorido alaranjado, já
fadigado e exausto de tanto manusear pés-de-ferro, martelos, torquesas, faca,
agulhas e linhas, José de Sá levantou-se para fechar a oficina, quando os
latidos de seus cães anunciaram a chegada de um visitante. O homem que se
apresenta é um funcionário recém contratado da Jacob Sabbá, e trás nas mãos um
par de botinas velhas, com as solas despregadas e grandes furos nas pontas e
nos calcanhares. José Mansinho coloca as botinas velhas sobre o pé-de-ferro, e
pergunta arrogantemente ao velho sapateiro se ele tem tempo para lhe entregar
seus calçados remendados, ainda naquele fim de tarde.
Zé de Souza que também carregava no
sangue a marca da ignorância, respondeu-lhe não menos áspero e meio afobado, “
é mais fácil eu ir pro inferno andando do que lhe entregar essas
porcarias remendadas ainda hoje”, mirando resoluto para o bugre parado na porta
da oficina, cuja vasta cabeleira era dura e sebenta como suas escovas de
engraxar sapatos.
José Mansinho retira calmamente as
botinas de cima do pé-de-ferro, mira-lhes as solas despregadas e tomado por um
surto repentino de raiva incontrolável, as arremessa certeiramente nos peitos
do perplexo sapateiro. Não se sabe como e nem quem atacou primeiro, em segundos
os dois homens abufelados, rodopiavam feitos dois jacarés-açus por cima dos
apetrechos da oficina, rolam pelo terreiro e ainda entrelaçados como duas
sucuris, despencam pelo barranco e caem como uma pela de borracha
nas águas mornas do Mamoré.
A contenda continua no fundo do
remanso e desliza em direção à cachoeira, quando José Mansinho num esforço
descomunal se desvencilha das garras do sapateiro, retira-se arquejante de
dentro do rio, e sobe o barranco decidido a registrar um boletim de ocorrência
contra o encharcado e endiabrado sapateiro, “ao cagar dos pintos” do dia
seguinte.
A delegacia, com aspecto de casa
mal-assombrada, ficava nas proximidades do posto de saúde, defronte para a
ferrovia e há poucos metros da casa do delegado. Este, servidor público quase
se aposentando, abria as portas do estabelecimento público muito cedo, pois
naquela dia após a peleja com o bugre na barranca do rio, foi ainda mais cedo
para a delegacia pois não conseguira dormir e tinha passado a noite em claro
com dores insuportáveis na região ciática.
José Mansinho também acordou cedo e
após comer beiju com água açucarada, foi ao alpendre do barraco e pegou as “
botinas da confusão”, ainda molhadas pelas águas do Mamoré, as colocou num
bisaco e rumou para a delegacia sem imaginar que o delegado, era justamente o
sapateiro doido que quase lhe arrancara as tripas no fundo do rio.
O delegado estava sentado em sua
velha cadeira de cipó, pitando seu cachimbo cheio de fumo de corda,
enquanto observava a barcaça Vaca Diez deslizar pelas águas do Mamoré em
direção ao porto, quando alguém adentra ao estabelecimento, e retira-o daquele
leve torpor que se encontrava, provocado pela nicotina e pela paisagem mansa do
rio.
O espanto e a incredulidade de ambos
emudeceu e fez saltar até os pregos das tábuas das paredes da delegacia,
que foram caindo uma a uma, enquanto o telhado levantava voo e plainava
em direção à calha do Rio Madeira, se espatifando no pedral logo abaixo da
cachoeira. Os homens, mais uma vez frente a frente, no meio do tempo, rodeados
por borboletas amarelas que nessa época do ano infestavam as barrancas do rio
sorvendo o néctar dos floridos aguapés, se atracaram mais uma vez, agora com
muito mais violência e disposição quase canina.
Envoltos numa guerra insana do fim do
mundo, os dois homens já estropiados, dilacerados pelo ódio e com as vestes em
frangalhos, rodopiaram pelo pátio da delegacia, passaram por cima
de um tirirical e um imenso formigueiro de saúvas e caíram mais uma
vez nas águas do Mamoré, provocando uma imensa pororoca que
balançou as embarcações atracadas no porto e afundou as velhas canoas dos
ribeirinhos e pescadores.
Não se teve mais notícias de ambos,
os mais antigos contam que morreram abraçados no fundo do rio e foram engolidos
pela sucuri gigante que morava nos arredores do porto. No local onde era a
delegacia, ficou de pé apenas a cela do “Trem das Almas”, a cadeira de cipó
quase intacta, poucos apetrechos do delegado e sobre a mesa, o cachimbo ainda
fumegando e as velhas botinas com suas solas despregadas e grandes furos nas
pontas e nos calcanhares.
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