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Ciro Pinheiro

Dom João: um santo amigo


D. JOÃO BATISTA COSTA era, o que a gente pode dizer, um verdadeiro homem de Deus. Simples, culto, humilde, bondoso, um santo vivo.
Na sua santa humildade andava, a pé, nas ruas de Porto Velho, onde era sempre abordado por qualquer pessoa para pedir a sua benção, para conversar e até para pedir alguma coisa. Algumas vezes, por força de circunstâncias, andei cometendo o pecado, imperdoável, de fugir do nosso querido Bispo, nessas suas andanças. Meus passos largos não combinavam com sua marcha lenta, vagarosa. A minha pressa me obrigava, às vezes, a cometer o pecado de recusar a sua companhia nas suas saídas pelas ruas da cidade.
Tenho clara, na lembrança, ainda, uma dessas “fugas” em um dia de muita pressa. Aconteceu numa das últimas vezes (acho que a última) que encontrei D. João, nas ruas. Ele caminhava, vagarosamente, na rua José do Patrocínio, no rumo da Prefeitura, subindo para a sede da Prelazia (hoje Arquidiocese), onde morava. Parava a cada dez passos, para cumprimentar e abençoar, com um sorriso agradável e permanente, às pessoas que encontrava no seu caminho. Sempre com um velho guarda-chuva (ou guarda-sol) na mão, batina preta já bem surrada, abrindo, de vez em quando, uma latinha de rapé, que conduzia no bolso, junto com um realejo (gaita de boca). Perto de D. João, cada vez ele cheirava o rapé, eu começava a espirrar. Ele perguntava: “tá com gripe?”. E ria sabendo que era o seu rapé. Naquele dia (na José do Patrocínio), ao avistar D. João, andando vagarosamente, alguns metros à frente e, sabendo eu que ao ser visto teria que acompanhar seus passos, como de outras vezes, atravessei a rua, passando para a outra calçada e apressei meus passos. Quase em corrida, à caminho da Prefeitura, onde um compromisso me esperava, fazendo de conta que não estava vendo D. João, o que era impossível. Tentaria fugir do velho e o santo amigo. Pensando que havia “escapado” da sua companhia, fui em frente, e já um pouco distante, ouvi aquela voz inconfundível: “Boooom dia, Ciro, para onde você está indo tão apressaaaado?” – Não teve jeito: dei meia volta e retornei, para acompanhar sua caminhada, ao seu lado. E lá se foram meus planos, porque foi quase meia hora de conversa, ladeira acima, até a catedral.
Eu cometia o pecado de fugir de D. João, porque sabia que toda vez que o encontrava na rua chegava atrasado ao meu destino. Por outro lado, ganhava mil graças ao ouvir sua palavra agradável e bondosa. Dava muita paz ouvir D. João.
D.João gostava muito de contar histórias de seu trabalho em Rondônia, nas vilas da margem do Madeira, principalmente. Sua chegada a Porto Velho em março de 1947, a bordo do “chatão” Fortaleza, era uma das suas histórias engraçadas. Contava sempre rindo. Dizia que ao descer no porto do “Cai N’Água” encontrou pouca gente e muito cachorro. A recepção estava programada para a praça Rondon, onde estavam, estudantes, a banda de música e as autoridades. A saudação foi feita pelo jornalista Carlos Mendonça, diretor do jornal Alto Madeira, que era prefeito de Porto Velho. Fez um discurso bonito e em seguida lhe entregou a chave (simbólica) da cidade. Logo ele soube que e a população de cachorros, na cidade, era maior do que a de gente. Comprovou isto, logo. D. João havia sido nomeado bispo da Prelazia de Porto Velho em 6 de outubro de 46, por Pio XII, o papa que teve muita influência na Segunda Guerra Mundial. A cidade tinha 3 mil habitantes, poucas casas de alvenaria, três caminhões, três automóveis e uma cadeia que prendia algum bêbado, de vez em quando e, o melhor, não havia ladrão, nem de galinha, nem ladrão grande, como hoje.
Durante o longo tempo em que ele esteve à frente da Prelazia participou de muitas atividades alheias ao trabalho pastoral, mas nunca esteve envolvido em assuntos políticos, apesar de dar suas opiniões sobre as coisas que considerava erradas. Foi escoteiro honorário, alfabetizador do Mobral e fez muitas outras atividades na comunidade.
Depois que D. João foi recolhido a um apartamento no Colégio D. Bosco, de onde nunca mais saiu (até porque não descia as escadas), estive com ele poucas vezes. Ele demonstrava muita alegria quando recebia algum amigo. Maria e José Oceano, Vitor Hugo (todos já falecidos), a professora Úrsula Maloney e Ignácio de Loiola Barros Reis eram alguns dos mais freqüentes.
Nas eleições D. João fazia questão de votar, apesar da idade e enxergar pouco. Na última que votou, para governador, dei o meu apoio para que ele cumprisse a sua vontade. Eu estava fazendo cobertura, para o jornal e sabendo do seu desejo de votar tomei as providências. Consegui com o juiz da zona eleitoral que a seção do seu voto, na escola Barão do Solimões, fosse deslocada até o seu apartamento, no colégio D. Bosco, um pouco distante, para receber o seu valioso voto, que era muito disputado por candidatos, pois era considerado um voto abençoado. E lá se foi a urna, acompanhada do presidente da seção, do secretário, de mesários, fiscais de partidos e até do juiz eleitoral. Uma comitiva, completa sem o conhecimento de políticos. Fiz isso sem avisar a ninguém para evitar aglomeração e interferência de candidatos. D. João, sempre simpático, foi até a janela, marcou seu voto (ainda não havia urna eletrônica) e fez pose para os fotógrafos (o Quintela e eu) ao colocar a cédula na urna. Apareceu um repórter da rádio Caiari e ele deu entrevista convocando os jovens para participar do processo eleitoral para que os bons candidatos derrotassem os desonestos. Falou assim, naquele tempo. Mostrava completa lucidez e o entusiasmo por aquilo que defendia. Ainda tenho, guardada, uma fita cassete com a mensagem, na voz dele.
Quando Tomás Correia era prefeito de Porto Velho foi criado, na Prefeitura, um pequeno salário, como forma de ajudá-lo na compra de remédios e de uma melhor alimentação. Uma medida muito justa, porque ele não tinha nenhuma renda para essas despesas, apesar da ajuda da arquidiocese, de religiosos e de pessoas de bom coração. No começo ele ficava um pouco inibido ao receber o “mensalinho” de poucos reais (ou era cruzeiro), mas sempre agradecia e dizia que pagava com orações.
Os sermões de D. João simples, mas cheios de sabedoria, eram sempre ouvidos com muita atenção nas missas dominicais da catedral. Sua voz forte quando pregava e quando cantava enchia de som o templo. Eu gostava muito das missas celebradas por D. João.
D. João Batista Costa renunciou dia 9 de junho de 1982, com 80 anos de idade e quase 50 de sacerdócio. Bispo emérito de Porto Velho, faleceu dia 16 de abril de 1996, há 10 anos, com 94 anos de idade. Entra para a história de Rondônia como um exemplo de fé e de dedicação à palavra de Deus. Cumpria sua missão de evangelizar colocando sempre acima de tudo o amor aos mais humildes. E era um deles.

                       TUDO PASSA SOBRE A TERRA...

O meu ilustre conterrâneo José de Alencar, que os cearenses chamam, com muita intimidade, Zé de Alencar, termina seu romance “Iracema – Lenda do Ceará”, com uma citação bíblica: “Tudo passa sobre a terra”. E passa mesmo! Os homens é que, devido a razões explicadas por Freud, iludem-se com a eternidade e perdem uma das poucas coisas irrecuperáveis durante a curta vida humana: o tempo.
Se nos Estados Unidos “time is money”, no Brasil perda de tempo significa a morte para milhões, pela miséria, pela violência, pela falta de alimentos, como acontece lá nos cafundós do meu Nordeste e na periferia das grandes cidades como São Paulo e Rio, apesar do “Fome Zero” que não zerou nem o ronco da barriga do pobre, do miserável.
A referência de José de Alencar (não confundir com o outro. O menos famoso, nosso vice, não tem o “de”) - a Bíblia pode ser tomada em função de outra citação que diz que o tempo cura tudo. Pois é: a realidade aí está, em todos os lugares. Tudo passa e tudo é facilmente esquecido pelo povo, principalmente as coisas ruins, a mentira e a corrupção, por exemplo. Corruptos e corruptores, mentirosos contumazes, logo todos viram santos e recebem a consagração, a beatificação, pelo nosso voto. O voto de todos nós, eleitores desonestos e abestados.
O povo esquece tudo rapidinho e a marcha prossegue como se nada tivesse acontecido. E a vida continua, bela e florida, para alguns, dura e cruel para a maioria. Afinal, tudo passa sobre a terra.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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