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Francisco Matias

Eu sou filha de D. Xavier Rey...


Por trás dos óculos, os olhos de dona Estela Madeira Casara brilham. A voz é embargada pela emoção. “Dom Rey era meu pai”, afirma com a convicção que toda a experiência dos seus 72 anos lhe permitem ter. A gentil senhora de quem estamos falando é uma mulher que teve três naturalidades sem sair do seu torrão natal: mato-grossense, guaporeana e rondoniense. – Onde a senhora nasceu? Ela prontamente responde: “Nasci em Santa Fé, no vale do Guaporé”. – Santa Fé? E ela afirma: “Sim. É um lugar entre Costa Marques, em Rondônia, e Campo Verde, na Bolívia”. Tá explicado. Pelo menos nesse aspecto, encontramos rápida explicação.

Quando Dona Estela nasceu, no ano de 1923, o espaço rondoniense ainda era uma confusão geopolítica total. O vale do Guaporé ainda era Mato Grosso. Não havia nenhuma relação entre Santa Fé e Porto Velho. Assim, ela é mato-grossense de nascimento. Em 1943, aos vinte anos de idade, ela se tornou guaporeana de direito, porque já o era de fato. Naquele ano, fora criado o Território Federal do Guaporé e a agora professora Estela estava morando no Barranco Alto, um seringal tocado por seu sogro, o engenheiro italiano radicado no Guaporé, Américo Casara. Como se pode ver, Dona Estela era nora desse pioneiro. Era casada com o senhor Giácomo Casara, um dos pioneiros naturais do vale do Guaporé.

- Mas, e o nome Madeira, tem algo a ver com o rio Madeira? “Não. É com a ilha da Madeira, em Portugal”, apressa-se a esclarecer a origem de um dos nomes familiares mais tradicionais do nosso Estado. “Meu pai”, diz ela, “era nordestino, filho de portugueses”. “Ele veio do Piauí para trabalhar como guarda-livros de seringal”. – Seu pai? Mas a senhora disse, emocionada, que era filha de D. Xavier Rey, o pioneiro bispo de Guajará-Mirim! “Filha de criação”. “Foi ele quem me criou e educou”. – Como? Explique isso melhor. E aí, dona Estela nos faz revelações importantíssimas sobre sua vida e a trajetória de D. Xavier Rey. Vamos voltar um pouco no tempo e na vida de Dona Estela Madeira Casara.

Ela diz que ficou órfã de pai e mãe e passou a viver com sua madrinha, quando tinha 10 anos de idade. A madrinha era Dona Eulália Tourinho, esposa do pioneiro Homero de Castro Tourinho, poderoso delegado na região, patriarca da família Tourinho, de Porto Velho. Nesse período, D. Xavier Rey estava fundando um colégio em Guajará-Mirim. “Era o Colégio Santa Terezinha”, nos fala a convicta senhora D. Estela. E diz mais. “Todas as escolas fundadas por D. Rey no vale do Guaporé eram denominadas Santa Terezinha, pois ele era devoto dessa santa”. Mas, as alunas eram especiais. “Tinham de ser meninas negras”. – Por que D. Rey fazia essa escolha por meninas negras? “Porque no vale do Guaporé só tinha negros descendentes de escravos fugidos”. Dona Estela, mais uma vez é esclarecedora. Foi então que sua madrinha, pessoa bastante influente na nova sociedade guaporeana que se formava, recebeu D. Rey em sua casa e lhe pediu para que levasse a menina Estela para estudar em Guajará-Mirim. – Sim, mas a senhora não era uma menina negra, ponderei.

Mas ela foi aceita. O ano? 1933. O bispo D, Xavier Rey tinha um jeito muito próprio de praticar ações voltadas para o social e uma ampla visão de futuro para a região. Ele era um homem à frente do seu tempo. Mas, o que pretendia escolarizando meninas negras do vale do Guaporé, quando bem poderia chamar apenas meninas brancas? “Ele queria que as meninas negras estudassem, se formassem e voltassem para suas comunidades como professoras, catequistas e enfermeiras”, diz Dona Estela, uma das primeiras professoras, catequistas e enfermeiras do vale guaporeano.

Foi no primeiro dos centros educacionais fundados por D. Rey, que a menina Estela e mais 32 outras garotas tiveram a sorte de dar a volta por cima do próprio destino histórico, amparadas pelas mãos do bispo D. Rey, e conquistarem uma educação “britânica” como ela mesma diz, e despertarem para a vocação de professoras, evangelizadoras e enfermeiras. O curso em Guajará-Mirim durava cinco anos. Eram cinco anos de internamento. “Era somente estudar e rezar. Rezar e estudar”. Diz ela.

Em 1937, Dona Estela lecionava em Pedras Negras. Lecionava, aplicava injeções e trabalhava para aumentar o rebanho fiel a D. Xavier Rey como catequista. Junto com ela, suas três melhores amigas do internato: Eremita Saldanha e Antonia Quintão. “A Eremita Saldanha era a outra menina branca que se formou naquela turma” Explica Dona Estela. Só pra esclarecer, a professorinha Eremita Saldanha, de Pedras Negras, viria a ser a matriarca da família Saldanha, de Guajará-Mirim, e a professora Antonia Quintão, uma das meninas negras de Rolim de Moura do Guaporé, levada por D. Rey, a matriarca da família Quintão, também de Guajará-Mirim.

Dona Estela casou com Giácomo Casara, ele também um dos estudantes da prelazia de Guajará-Mirim, e foi morar no seringal Barranco Alto, lá no Corumbiara. Mas a desvalorização da borracha, depois da segunda guerra, obrigou o seringalista Américo Casara a abandonar o Barranco Alto e se instalar no Barranco Laranjeiras, no Guaporé. “Foi um ano de crise, mas vencemos”, conta a orgulhosa professora aposentada Estela Madeira Casara.

Dona Estela revela um fato histórico. O presidente Getulio Vargas, em 1940, não esteve apenas em Porto Velho. “Ele foi a Guajará”, afirma a professora. – Como? Isto não consta em nenhum livro ou documento histórico. “Mas foi”, reafirma. “Nós fomos entregar flores, mas um homem negro e forte, que estava na comitiva, nos impediu”. “Ele pegou as flores e não nos deixou chegar perto do presidente”. O testemunho de D. Estela Madeira Casara requer um olhar mais acurado sobre alguns detalhes da história política de Rondônia. Com a palavra pesquisadores, historiadores e professores. Eu acredito.

Dona Estela é dessas pessoas privilegiadas em todos os aspectos. É uma mulher cônscia do seu dever cumprido profissional, familiar e pessoalmente. Teve filhos e filhas, educou centenas de meninos e meninas, ajudou a curar muitos soldados da borracha e rezou pelos que não conseguiram sobreviver à malária e ao beribéri. Ocupou seu lugar no tempo e no espaço rondoniense. Fez história da melhor espécie. É personagem do fato e do tempo. É história e sabe disso. Sua grande preocupação é morrer e com ela morrer sua história, sem ninguém para contá-la. Por isso contou para seu filho e conta para quem acredita que irá preservar e divulgar com isenção a vida de uma rondoniense, matogrossense e guaporeana, que se orgulha de dizer: Sou filha do bispo D. Francisco Xavier Rey. 

Entrevista realizada na casa de Dona Estela no dia 9 de abril 2005. Artigo escrito em 11 de abril 2005, ás 17 horas.

Fonte: Francisco - Historiador e analista político

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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