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Francisco Matias

MADEIRA-MAMORÉ – ETERNOS CONFLITOS (I)


1. Manhã de quinta-feira, 06 de junho 2007, feriado nacional de Corpus Christi. 9 horas. Cidade de porto velho, capital do estado de Rondônia, Estação Inicial Madeira, da ferrovia Madeira-Mamoré. A poucos dias de se comemorar os 100 anos do início de sua construção efetiva e 35 anos depois de sua erradicação. Eu estava ali, esperando uma equipe da TV Rondônia para uma entrevista e, de repente, me sinto transportado ao passado madeiro-mamoreano, coisa que a própria estrutura física atual do empreendimento ferroviário não permite, mas que pode acontecer por um detalhe qualquer. E aconteceu. Aquele senhor de cabelos brancos, estatura mediana, cor clara, aproximava-se da estação madeira como se a conhecesse muito bem. Não olhava para lado nenhum. Seu olhar estava fixo em algum ponto distante de sua memória. Eu o reconheci. Mas ele não me reconheceu. Não queria reconhecer nada do presente. Estava olhando o passado. O seu passado.
- Onde eu compro uma passagem para Guajará-Mirim? Surpreendeu-me com essa indagação vaga e precisa. Distante no tempo e presente no agora.
- O que o senhor quer? Retruquei.
- Comprar uma passagem para Guajará-Mirim. E me olhou pela primeira vez. E eu sorri. Ele sorriu.
- Bons tempos, não?
- Você se lembra? Perguntou-me.
- Não. Não é do meu tempo.
- Pois é. Respondeu e, como que procurando algum elo vital para sua própria história, seguiu em frente, sem me olhar de novo.
- Hei, senhor. Chamei-o em voz alta. Ele se virou pra mim. E eu lhe perguntei.
- O senhor não é de Guajará-Mirim? Um dos gregos?
- Grego, não. Libanês. E ali ele revelou o pensamento da Madeira-Mamoré. Cada um é de uma nacionalidade. Com muito orgulho. Grego é grego. Libanês é libanês.
- Sou José Jorge Badra.
- Posso tirar uma foto com o senhor?
- Pois não, consentiu, indiferente. Eu insistia em enquadrá-lo no momento presente.

2. Mas ele insistia em procurar, no passado, um bilhete para Guajará-Mirim. Não queria estar ali no presente. Sua mente remota estava no passado. No fervilhar da estação Madeira, a mais importante da ferrovia. Seu Jorge Badra não queria conversar com nenhum historiador. Ele é a história. Passageiro contumaz do trem-horário. Sua vida está ligada àquela estação, ao trem do horário que partia de Porto Velho, estado do Amazonas, às nove da manhã, o conduzia até Abunã e, na manhã seguinte seguia destino a estação terminal Mamoré, em Guajará-Mirim, no estado de Mato Grosso.

3. Seu Jorge Badra é um desses rondonienses que descendem da grande migração promovida pelas oportunidades de trabalho que o complexo Madeira-Mamoré proporcionava no entorno de suas estações. A de Guajará-Mirim, na fronteira boliviana, era uma dessas estações estratégicas que atraíam gregos, libaneses, italianos, portugueses, nordestinos e matogrossenses, além de outros povos, ferroviários ou comerciantes, no caso dos libaneses ancestrais do senhor José Jorge Badra. São as famílias da Madeira-Mamoré.

4. E ali eu estava. Na feliz coincidência histórica. Tentando compreender o abandono e os conflitos eternos desta ferrovia de concepção norte-americana e boliviana, mas brasileira e esquecida, abandonada, com suas estruturas caindo aos pedaços. Uma ruína total. Mas rica em lembranças emocionais, como as do seu Jorge Badra, que chegou com o olhar fixo no guichê imaginário da estação paralisada, erradicada da Madeira-Mamoré. Queria uma passagem para Guajará-Mirim. Pode ter sido uma brincadeira. Mas, ele sintetizou, como muitos outros que vivenciaram a época da ferrovia, os sentimentos de amor e de necessidade, conflitantes, por certo, como tudo o que cerca da chamada “Ferrovia do Diabo”. Por que não, “Ferrovia de Deus”. Talvez pelos eternos conflitos.

5. Seu Jorge Badra desapareceu da minha vista por quase uma hora. Depois eu o vi de novo. Mas ele não me olhou. Não queria me notar. Não queria estar no presente que eu representava ali, mas no seu passado. E subiu a avenida 7 de Setembro, sem olhar para trás, até atravessar o portão que separa o complexo da Madeira-Mamoré do início da cidade de Porto Velho. Não olhou para trás. Estava sem a passagem para Guajará-Mirim. Quem sabe na próxima estação, seu Jorge. Quem sabe.

Fonte: Francisco Matias
Historiador e Analista

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