1.A voz de comando foi firme. Quer dizer: com armas e apetrechos de guerra o comando da 17ª. Brigada de Infantaria de Selva desencadeou uma operação militar na madrugada de 21 de outubro, domingo, encerrada por uma decisão judicial no dia 24, quarta-feira. Dizendo-se surpreendido com a notícia de uma invasão da área onde está sendo erguido o Teatro Estadual de Porto Velho, o Exército não titubeou, ocupando a área em uma cinematográfica e inédita operação militar, resultando em uma rápida, e por isso mesmo não menos inédita,sentença prolatada pela Justiça Federal Invasão. Este foi o termo empregado. Quem estava invadindo? Segundo o comando da 17ª. Brigada, a empresa Engecon, vencedora de uma licitação estadual, que estaria montando no local uma cerca de alumínio para iniciar as obras do teatro. Mas, sob as ordens de quem uma empreiteira séria invadiria uma área como aquela? Nesse caso, do governo do Estado de Rondônia, o responsável pela obra que, até onde se sabia, tinha o domínio territorial. Não tinha. E o Exército partiu pra cima armando uma operação de guerra para expulsar os invasores e repelir toda e qualquer ação ilegal do Estado de Rondônia na área em tela. Em tela ou em palco?
2.Cabe dizer que o cenário de guerra montado foi convincente. Os atores, vestidos de uniformes de combate, armados até os dentes, exibindo, inclusive, cães de guerra, não estavam em cena pra brincadeira, não senhor. Nem o falecido ator Paulo Autran seria tão perfeito no papel repressor, se o teatro de guerra fosse uma peça em exibição no teatro estadual e não uma tragicomédia. Mas, afinal, o que fazia ali um contingente militar pronto pra guerra, com metralhadora ponto 50 apontada para o Estado de Rondônia? Fazia o que tinha de ser feito. Cumpria ordens e estava, como ficaria provado depois, dentro da lei. Após mostrar armas e bagagens, o Exército impetrou uma ação judicial, na Justiça Federal, e Rondônia, na qualidade de Estado-réu, foi condenado. Virou Estado-turbador. Turbador? Mas, como, se havia um contrato de comodato e um compromisso de compra e venda entre as partes litigantes? Ledo engano. Não havia o tal comodato. Pelo menos não mais. Estava vencido deste 1999, e lá se vão mais de oito anos de descaso, de descompromisso. O Estado de Rondônia foi considerado pela Justiça Federal como um estado invasor, grileiro, turbador.
3.E perdeu a causa. Não foi uma questão de reintegração de posse. Foi manutenção de posse. O Exército requereu a manutenção da posse de uma área que, à luz de vários documentos, lhe pertencia de fato e de direito. São documentos de 1911, 1937, 1966, comprovando a transferência da área pela empresa Madeira-Mamoré ao Patrimônio da União, agora em uso pelo Ministério do Exército, sob a responsabilidade da 17ª. Brigada de Infantaria de Selva. Ao Estado de Rondônia, coube a retórica e apenas isso. Sem nenhuma comprovação legal de que poderia utilizar o terreno para construir o teatro, representou apenas o papel coadjuvante de turbador, invasor, grileiro e, sobretudo, desatento a alguns dos seus compromissos, a este, em particular. Seria o vilão da peça se o teatro não fosse de guerra, ao vivo e a cores. Mas este papel não cabe somente ao governador Ivo Cassol. Outros atores coadjuvantes o interpetraram numa ópra bufa, a exemplo dos ex-governadores Valdir Raupp (que iniciou as tratativas e firmou o comodato, mas não deu continuidade) e José Bianco, que passou em branco no roteiro final da peça e, finalmente Ivo Cassol, em seu segundo governo. Estes mandatários não procuraram verificar a validade do comodato, que era apenas de um ano a contar de 14.01.1998, e, desse modo, renová-lo até chegar o momento da compra da área. Deu no que deu. O governador Ivo Cassol, terá atravessada em sua garganta esta espinha de piraíba, engolida pela força das armas e da Justiça. Muito mais que isso. Pela falta de continuidade administrativa. Até parece que cada governador, ao assumir, implanta um processo de descontinuidade com relação a outros governantes. É como se cada governo começasse na posse do governador de plantão. Como se o Estado fosse privado e não público.
4.Se o Exército ficou surpreendido com a invasão de sua área, mais surpreendida ficou a população de Porto Velho, em particular, e de Rondônia como um todo. Pergunta-se: pra que tanto aparato militar? A resposta foi dada pela sentença do juiz federal substituto Dr. Flávio da Silva Andrade, que dentre outros argumentos legais, escudou-se no artigo 1.210 do Código Civil, cujo parágrafo 1º preconiza: “”o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que faça logo; os atos de defesa ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”. Pois. No caso, o comando da 17ª. Brigada agiu dentro da lei. Mas, fica uma outra pergunta quanto ao uso da própria força por algum proprietário particular: se um fazendeiro tiver suas terras invadidas e aplicar o que preconiza esse artigo do Código Civil, como bem o fez a 17ª. Brigada, o que acontecerá com ele?
Fonte: Francisco Matias - Historiador e analista político
Sexta-feira, 27 de dezembro de 2024 | Porto Velho (RO)