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Francisco Matias

UMA VIAGEM PELA MADEIRA-MAMORÉ


          UMA VIAGEM PELA MADEIRA-MAMORÉ  - Gente de Opinião
O trem cruza a ponte sobre o rio Arara, região de Guajará Mirim, 1950


1.Este ano, no dia 4 de julho,  PortoVelho e a ferrovia Madeira-Mamoré completam 108 anos de fundação, considerando a pedra fundamental lançada no dia 4 de julho de 1907 que marcou o início das obras no marco zero e a inauguração da povoação ferroviária denominada Porto Velho of the Madeira River, esta coluna convida a você para uma viagem pela ferrovia do diabo. Aproveite para pensar nos dramas vivenciados pelas pessoas envolvidas no projeto, nas mortes, nos terríveis acidentes de trabalho, nas revoltas de negros, brancos, judeus e islâmicos. Pense na saga dos nordestinos e em tudo aquilo que faz desta via férrea famosa por representar na história os exageros, os mitos, os fantasmas, muito mais do que aquilo que realmente foi.

2.Vamos embarcar. Estamos na estação Madeira, o km zero dos 366 km de sua extensão. É abril de 1950 e uma chuva forte está caindo sobre a pequena e movimentada cidade de Porto Velho, capital do Território Federal do Guaporé. São sete horas da manhã e o trem horário vai partir. O maquinista é um negro barbadiano, cujo sobrenome pode ser Shockness, Holder, Mendes, Deny, Johnson, Knnight, ou Challender, não se sabe ao certo. Mas pode-se ver que ele está agitado. É alto, magro e orgulhoso do que faz. Vai ver ele é barbadiano, tobaguense ou jamaicano A estação está lotada.  Passageiros se misturam aos comerciantes que estão em busca de mercadorias, e aos transeuntes que vieram se despedir de parentes e amigos. Além disso, tem vendedores de tudo o que se pode comprar para a viagem. Até tartarugas se vende por aqui. Alguns adolescentes se divertem riscando fósforos nos focinhos desses bichos só para os verem morrer lentamente. O destino final é a estação Mamoré, em Guajará Mirim, na fronteira com a Bolívia.

3.Por isso pode-se observar váriosbolivianos embarcando, mas também alguns gregos, árabes e nordestinos tomando seus lugares nos assentos algo desconfortáveis. A maioria dos passageiros é formada por homens, por isso os cigarros, charutos e cachimbos parecem fazer concorrência com a Maria Fumaça, que está “soltando brasa” pelas ventas. É a locomotiva 12, a “Church” que vai puxar os vagões. “O trem vai partir”, anuncia o funcionário que cuida do embarque. O trem começa a mover-se. A fumaça invade os vagões. Aos poucos, a estação vai ficando para trás. A cidade também. É só olhar à direita que se poderá ver o contraponto do rio Madeira que desce imponente enquanto o trem sobe desafiador. São antagônicos entre si. Afinal, a Madeira-Mamoré foi construída para vencer o trecho encachoeirado dos rios Madeira e Mamoré. Serão vinte os acidentes hidrográficos a superar: quinze no Madeira e cinco no Mamoré. Desses, são três saltos, sete corredeiras e dez cachoeiras. A primeira é a cachoeira de Santo Antonio, a última é a cachoeira Guajará-Mirim.

4.E vamos lá.  Apenas três km depois,avistamos as rochas que formam a cachoeira Santo Antonio. O trem havia cruzado o bairro do Triângulo e estava na vila Candelária. Depois na vila de Santo Antonio, aonde faz a primeira parada na estação do mesmo nome. Santo Antonio já foi a cidade proibida, o início deste sonho e pesadelo da Madeira-Mamoré. E o trem parte mais uma vez. O apito é o sinal. Vez ou outra as árvores frondosas da Amazônia encobrem a visão que se tem das águas caudalosas do rio Madeira. O apito do trem anuncia a próxima parada: Teotônio. A demora é pouca. O trem segue destino, afinal, serão vinte e quatro horas de viagem de Porto Velho a Guajará Mirim. Tem muito trilho a percorrer. Muitos dormentes a contar, afinal cada um deles representa uma vida. Surge depois da curva a parada de Luzitânia, antes de chegar à estação Jacy-Paraná, onde o trem passa no meio da ponte metálica. O barulho é ensurdecedor. Quase não se pode conversar, mas todos falam ao mesmo tempo. Parecem felizes.

5.Após o almoço na vila de Jacy-Paraná, otrem segue viagem para a próxima parada: Caldeirão do Inferno. Em seguida vai parar no Girau. Em ambas as paradas dá para ver a força desses dois acidentes hidrográficos. O Girau é salto e o Caldeirão é cachoeira, também chamada Cachoeira dos Perdidos. As águas são revoltas. Não tinha mesmo como fazer navegação. A ferrovia foi a alternativa mais acertada. O rio Madeira, em alguns trechos, parece  aproximar-se da linha férrea. Ali em frente está a ponte metálica do Mutum-Paraná. Todos olham. Por um momento o silêncio se faz sentir. Só o barulho da locomotiva. O trem para. A bomba d’agua de Mutum é acionada. O trem segue viagem e vamos entrar na reta do Abunã, dizem que é a maior reta ferroviária do mundo. São mais de 40 km. O por do sol anuncia: Abunã está próxima. Vamos dormir no hotel da ferrovia. Só seguiremos viagem pela manhã. Aqui encontramos o trem que veio de Guajará Mirim. O pernoite é para todos em Abunã, região aonde o rio Madeira recebe o rio Abunã. É o início da fronteira Brasil-Bolívia.

6.Quando amanhece, o trem parte. O apitoé às seis da manhã. Vamos para Penha Colorada, depois Taquara. Em cada uma dessas paradas ou sobe ou desce alguém. Mais à frente tem a ponte metálica sobre o rio Araras e, depois, Periquitos. A viagem está tranquila não fosse pela fuligem que teima em cobrir com sua nuvem negra os caríssimos paletós de linho branco que alguns comerciantes e seringalistas costumam usar. Chegamos a Chocolatal. A parada é de trinta minutos. O trem parte para Ribeirão, depois vai parar em Misericórdia, a última parada do rio Madeira. A próxima é a estação de Vila Murtinho, no rio Mamoré. Do outro lado é Vila Bela, na Bolívia. No meio, as nascentes do rio Madeira. Nesse ponto, o trem deixa o rio Madeira para margear um dos seus dois formadores: o rio Mamoré. O outro é o Beni. Vamos passar em mais duas paradas: Iatinha e Iata, esta é uma colônia agrícola de fronteira recém implantada pelo governo, formada em sua maioria por cearenses, cuja produção de grãos e hortifrutigranjeiros abastece a cidade de Guajará Mirim.

7.De longe vislumbramos a cachoeiraGuajará Mirim, depois de o trem margear as cachoeiras de Pau Grande, Lajes, Bananeiras e Guajará Açu. Ao por do sol chegamos à estação Mamoré. Estamos em Guajará Mirim. Do outro lado é Porto Sucre, cidade boliviana que será denominada Guayaramerin. A estação Mamoré não é grande como a estação Madeira, em Porto Velho. Mas é muito movimentada. Dessa estação muitos passageiros irão cruzar o rio para a Bolívia. Outros subirão em direção aos seringais onde trabalham. Mas, uma boa parte vai ficar em Guajará Mirim, uma pequena cidade no ponto final da ferrovia Madeira-Mamoré. O cansaço toma conta de todos. A viagem foi longa e lenta. Mas chegamos. Segundo dizem, a gente parte mas não sabe quando chega. Pois é. “Você precisa ver como é que é andar no trem da Madeira-Mamoré”. “O trem que parte do oeste do Brasil, de Porto Velho até Guajará Mirim”.

Historiador e analista político(*)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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