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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CCCXCVIII - Assassinato de Plácido de Castro - I


O Malho, RJ, 10.08.1907, n° 256 - Gente de Opinião
O Malho, RJ, 10.08.1907, n° 256

Bagé, 23.02.2022


O assassinato de José Plácido de Castro foi um assassinato político, um linchamento à brasileira, porque ele ousara em documento público censurar a violência, o assassinato e o roubo praticados no Acre pelas autoridades federais e seus “xerimbabos” ([1]). Foi um assassinato político, uma execução sumária encomendada pelo Governo Federal e por isso prescreveu o crime sem que por decoro da justiça ou por hipocrisia ao menos se fizesse o mais ligeiro inquérito a respeito. Foi o resultado do conluio de uma quadrilha que, revestida de autoridade federal, invadiu o Acre desde que este ficou pertencendo ao Brasil. Compunham-na perigosos assassinos de diversas origens, ladrões de todos os matizes, jogadores e libertinos, na sua grande parte oriundos da falange de degradados sociais que o Governo da União exportara para aquela infeliz terra. (Genesco de Castro)

 

Genesco de Castro no livro “O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos Históricos” editado pela Tipografia São Benedito, em 1930, apresenta-nos uma intrincada conspiração arquitetada por um Governo Federal corrupto, omisso e conivente. Relata Genesco de Castro:

 

O assassino de Manoel Felício e do desgraçado de que fala o Coronel Azcui no seu livro “Campañas del Acre” ([2]), que é o sátiro de que me ocupo em capítulo especial, o ladrão de gado de que fala Plácido em seu relatório e que foi consultor jurídico dos Prefeitos Jesuíno e Besouro; o mansíssimo diplomata e impenitente jogador, o homem da “cagacite crônica” de que falo adiante, o estelionatário que o Cel Besouro teve como Delegado de polícia e na defesa de cuja pureza brigou com autoridades judiciais do Acre – o mesmo que assassinou impunemente Oscar de Hollanda, em Manaus; o homem que escrevia cartas difamatórias para os seus inimigos, passando-as para o copiador e rasgando-as em seguida, somente para que os seus desafetos ficassem difamados depois de sua morte, que é o mesmo indivíduo que em fins do século passado fugiu para o Acre com 24 contos de réis dos Srs. Moraes, Tinoco & C. da praça do Rio de Janeiro; o indivíduo que assassinou o comerciante Teixeira Jumento para roubar, como roubou; e tantos outros que fastidioso seria enumerar – eram os elementos que atuavam junto ao Governo Federal e o do Amazonas e junto da imprensa, insinuando habilmente as maiores infâmias contra Plácido, e que se acercavam dos Prefeitos do Acre, desde a nomeação até chegarem à sede da Prefeitura, bajulando, metendo-lhes mil coisas nos ouvidos contra Plácido, isolando-os de todo o convívio que lhes pudesse ser salutar no desempenho do cargo que iam ocupar.

 

Reforçando esse bando de foragidos da justiça de diversos estados, os prefeitos nomeados levavam sempre uma carga de parentes e de protegidos com o fim único e louvável de fazerem economias, carga que completavam com um grupo de celebridades nos anais do crime, que rebanhavam durante a viagem e que eram chamados os “cabras de confiança do Prefeito”. E tudo isso porque os seus amigos, os seus conselheiros, os bajuladores que os cortejavam convenciam-nos de que iam governar um povo de gente ruim, perversa, que sob a influência de Plácido lhes ameaçava a segurança individual e perturbava a administração pública.

 

Antes mesmo do Acre ser brasileiro, já o primeiro representante do Governo Federal que pisou no seu livre solo, o fez com o coturno gaulês, com a autocracia de um Brennus ([3]), que lançando a sua pesada durindana ([4]) sobre o prato da balança contrária aos interesses acreanos, repetiu o “vae victis” ([5]), que fez tremer o povo romano cerca de quatro séculos antes de Cristo.

 

Desde então o Acre passou a pagar pesado tributo para manter o Exército de ocupação e o povo foi reduzido ao cativeiro.

 

Do momento em que o “Estado Independente do Acre” passou a chamar-se “Território do Acre” até hoje, o povo rebelde, que se levantou contra a soberania boliviana para adotar a brasileira, não teve mais direito a coisa alguma: até a sua opulenta indústria desapareceu com a sua liberdade.

 

Tratados como beligerantes enquanto era necessário disfarçar a conquista territorial, os acreanos passaram bruscamente a viver sob um férreo governo militar conducente a miséria que hoje campeia naquela região, porque os prepostos do Governo Federal iam pobres para o Acre rico e voltavam ricos do Acre devastado. (CASTRO) 

 

A cada dia, numa faina sutil, solerte e eficiente, os adversários de Plácido teceram as tramas intrincáveis de que existia uma arregimentação de homens, para os lados de “Capatará” com o objetivo de convencer as autoridades de que ele representava um perigo iminente à ordem e à administração pública. Criaram boatos de que o herói acreano estava estocando material de guerra no seu Seringal onde na surdina arquitetava uma futura rebelião. Acusaram-no até de estar planejando uma operação insurgente que permitiria uma invasão destinada a restaurar a soberania boliviana na região. Genesco de Castro, no capítulo “Provocações” de sua obra, conta-nos: 

 

A 14.07.1908 fui à sede da Prefeitura do Alto Acre alterar, por escritura pública, uma das cláusulas do contrato social que tínhamos com Daniel Ferreira Lima, sobre o Seringal “Bagaço”. Cheguei à Vila à tardinha e fui hospedar-me em casa do Dr. Leorne Menescal.

 

O Coronel Gabino estava à janela, em companhia de Augusto Bacurau, e me viu chegar, mas não o cumprimentei, porque, duas vezes que, por insinuação de Plácido, tentei aproximar-me de sua pessoa, recebeu-me de tal modo que me obrigou a retirar-me quase que imediatamente; e porque, nesse tempo já as hostilidades contra Plácido eram tão ostensivas que não deixavam margem para fingir que não as compreendíamos. Eu andava só, e assim que me livrei da poeira de uma viagem de muitas horas de bom trotar, fui ao Cartório dar ao Tabelião Cardoso a nota da alteração a fazer no contrato, porque desejava regressar no dia seguinte, o mais cedo possível.

 

Ao deixar o Tabelionato, fui ao hotel “24 de Janeiro” tomar uma refeição e voltei para a casa do Dr. Leorne, que regurgitava de hóspedes. Armei minha rede de viagem junto à porta dos fundos, atrapalhando a passagem, porque não havia mais espaço adequado. Tive algumas visitas e fiquei palestrando até tarde da noite. Por volta das 23h30, tornou à minha presença o nosso dedicado amigo Antônio Rebello, copro­prietário do hotel onde jantei hoje, Tabelião de Notas de Rio Branco, para prevenir-me que alguma coisa de grave se tramava contra mim àquela hora da noite, na Prefeitura, aconselhando-me a abandonar imediata­mente a Vila.

 

Afirmou-me que um seu empregado de confiança surpreendera o Tenente Luiz Sombra ordenando a minha prisão e que ele em pessoa verificara ser isso verdade, se bem que não tivesse ouvido pronunciar o meu nome. Tão absurdo julguei o emprego de qualquer violência do Prefeito contra mim, que não houve argumento do meu dedicado amigo que eu não refutasse. E tão sincero lhe estava sendo que, quando desanimado pelo insucesso da entrevista comigo, retirou-se, não procurei, sequer, saber onde havia deixado minha Winchester.

 

Pouco depois de meia noite, chegou o Sr. José Corrêa de Mello, também interessado pela minha pessoa, e que, por não sermos íntimos, procurou o seu coestaduano ([6]) Dr. Leorne, pedindo-lhe que, sem perda de tempo, me prevenisse que eu ia ser preso, havendo grande reboliço contra mim na Prefeitura, chefiado pelo Tenente Sombra.

 

Conversavam ainda do lado de fora, poucos passos afastados da porta onde eu estava, quando um estranho tropel dominou o silêncio da noite, pelos quatro pontos cardeais. Era um troço ([7]) de homens armados, composto de soldados do Exército, remado­res de embarcações surtas ([8]) no porto, violentamente recrutados, e de bandidos ao serviço de Alexandrino José da Silva, subdelegado de polícia, sustentados pela Prefeitura. O alarido que fizeram, as grosseiras chalaças que se misturavam ao retinir dos ferrolhos de algumas dezenas de carabinas que recebiam carga ‒ me fizeram reconhecer a gravidade do momento que atravessava, justamente por não ter crime algum que me fizesse acreditar no emprego de qualquer violência contra mim por parte da primeira autoridade daquela tão vasta quão infeliz região. A casa foi posta em apertado cerco e os palavrões da soldadesca desenfreada me fizeram supor que forçariam a entrada. Saltei sobre uma adaga curta que me acompanhava e um pequeno revólver que estavam no chão, ao lado da rede, e esperei o assalto. Este não se realizou.

 

Convencido de que me queriam assassinar, como um preâmbulo do assassinato de Plácido, resolvi forçar a saída, quebrando à bala os elos daquela cadeia humana. Eu era exímio atirador e me parecia impossível perder um tiro sobre os meus agressores. Levei a arma ao rosto para arrebentar a cabeça de um dos que mais próximos estavam da porta, três ou quatro metros de mim, mas tive repugnância de abater um ser humano, completamente irresponsável, com o mesmo sangue-frio com que abateria uma onça; e como tivesse ouvido pronunciarem o nome de um chefe, resolvi começar a caçada por este.

 

Foi nessa ocasião que um dos hóspedes, percebendo a minha disposição, agarrou-se comigo, pedindo que não atirasse sobre os assaltantes, porque poria em sério perigo a vida de todos que se encontravam dentro do prédio, todo de madeira. Ele tinha razão e outros o secundaram ([9]).

 

Nesse momento angustioso, entrou o Dr. Leorne Menescal, que, em companhia de José Correa de Mello foram detidos do lado de fora, e me disse que se tratava da minha prisão por ordem do Coronel Gabino Besouro. Respondi-lhe que não me entregava àquela gente, mas que me entregaria ao Tenente Álvaro Conrado Niemeyer, que fora meu colega na Escola de Guerra.

 

O Dr. Leorne saiu e, logo depois, voltava acompa­nhado do Tenente Niemeyer, que parecia fazer parte do grupo e que, imediatamente, fez cessar o aparato bélico que me cercava, concordando que eu deixasse apenas a Winchester e levasse comigo as armas de cintura que me acompanhavam.

 

Fui conduzido por ele à casa onde funcionava a Secretaria da Prefeitura, que regurgitava de gente valente e dos intrigantes que viviam apegados às ilhargas ([10]) do Prefeito, a quem fui apresentado. Contrafeito, desempenhando mal o seu papel de farsante, o digno preposto do Dr. Afonso Pena me perguntou gaguejadamente o que eu ia fazer na Prefeitura àquela hora da noite! Ao que lhe respondi:

 

  Então o senhor não sabe que, por sua ordem, acabo de ser arrancado violentamente de casa por uma força de armas embaladas?!...

 

  Mas o senhor entrou disfarçado [vestido de roupa de azulão, como sempre andei no Acre], à noite, aqui na Vila...

 

  Disfarçado, Coronel? Porque visto esta roupa! [E, agarrando com a destra o punho da manga esquer­da, levei-o até junto do rosto do meu interlocutor]. Isto é roupa de quem trabalha, de quem não lhe vem incomodar com pedidos de emprego, Coronel!

 

O Prefeito recuou dois ou três passos, dirigindo-me algumas palavras de elogio com referência ao meu tempo de Escola Militar, desaparecendo em seguida.

 

Na madrugada de 17 de julho de 1908, atracou em “Riozinho” uma lancha fretada pela Prefeitura, desembarcando um forte contingente de homens armados, composto, em sua maioria, de soldados do Exército, sob o comando do célebre Tenente Figueiredo Aranha, reforçado por troços de facínoras que a Prefeitura sustentava, conhecidos como “os cabras do Coronel Alexandrino” que estavam sob as ordens imediatas de seu digno chefe, nessa memorável noite de horror. E todos estavam à disposição de Josias Lima, Delegado de Polícia do Sr. Besouro, estelionatário refugiado no Acre, e pronunciado pelo crime de tentativa de homicídio contra a pessoa que ele tinha, essa noite, licença ou ordem para assassinar oficialmente, servindo-se da Força Pública e até de um oficial do Exército Nacional. [...]

 

A sinistra quadrilha galgou as barrancas, venceu o declive e, chegando ao barracão, arrombou a porta do armazém, sem ser pressentida, e foi concentrar-se debaixo do quarto que supunham ser o da vítima escolhida, mas que de fato era o simétrico ao desejado, com frente para o Acre, onde pernoitava apenas uma criança de cinco anos, de nome Patrício.

 

Os comandantes e o médico que os acompanhava, com a respectiva carteira cirúrgica ([11]), ficaram do lado de fora, e assim que tiveram comunicação de que a força já havia tomado disposição de combate, isto é, já estava em baixo do quarto de Dias Pereira, o Delegado Josias Lima deu sinal de fogo, que foi um tiro da sua perigosa “matadeira”. As armas foram voltadas para o teto, que era também o assoalho do pavimento superior, e a fuzilaria quebrou o silêncio da noite, numa cerrada descarga que se prolongou depois por alguns minutos.

 

O assoalho do pavimento superior ficou crivado de balas que, na sua maioria, transpuseram os obstáculos, fizeram percurso através das telhas de zinco e fugiram do bando sanguinário. As mercadorias ficaram pesadas de chumbo e a parede comum à cozinha, bordada de orifícios. Essa parede, do lado da cozinha, era munida de pregos onde penduravam utensílios culinários que ficaram inutilizados, na sua maior parte, sendo que alguns receberam mais de um ferimento. Neste quarto, ao lado das mercadorias, no canto interno dos fundos, pendia uma pequena rede, onde pernoitava o menino Patrício de cinco anos de idade. Dormia “decubitus dorsal” ([12]), quando foi despertado por um projétil que, penetrando na região lombar, foi sair do lado oposto, abrindo um tal rombo que deu franca passagem às vísceras abdominais.

 

A esse preâmbulo, seguiu o assalto geral, a invasão do andar superior, onde pernoitavam alguns empregados da casa, quatro ou cinco mulheres e alguns enfermos, em estado grave, um dos quais, português de origem, foi barbaramente espancado, morrendo dias depois.

 

Foi no momento em que os chefes invadiram o quarto de Dias Pereira, então ocupado pelas mulheres que se achavam no estabelecimento ‒ que o inocente Patrício deu entrada por entre eles, com as mãozinhas ensanguentadas, sopesando os próprios intestinos e dizendo:

 

  Mamãe, estou ferido. Olha as minhas tripas, mamãe...

 

E, quando a desventurada mãe fitou o desgraçado filhinho, reduzido a frangalhos, voltou-se para o médico que fazia parte dos assaltantes ‒ o célebre Dr. Freire Cavalo ‒ e gritou:

 

  Salve meu filhinho, pelo amor de Deus, doutor!

 

Este se limitou a dizer:

 

  Isto não tem importância...

 

O saque ao estabelecimento completou a obra dos representantes do Governo Federal. (CASTRO)

 

 

Bibliografia

 

CASTRO, Genesco de Oliveira. O Estado Independente do Acre e J. Plácido de Castro: Excertos Históricos – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia São Benedicto, 1930.

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

·       Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·       Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·       Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·       Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·       Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·       Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·       Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·       Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·       Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·       Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·       Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·       Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·       Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·       E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   Xerimbabo: animal selvagem que se apanha novo e cria desde pequeno.

[2]   Coronel Benjamín Azcui: Resumen Histórico de las Campañas del Acre (1899-1903) ‒ La Paz ‒ Intendencia de Guerra, 1925.

[3]   Brennus: chefe celta, que habitava a costa do Adriático, na Itália. Em 387 a.C., ele liderou o exército gaulês que capturou e saqueou a cidade de Roma.

[4]   Durindana: espada de Rolando, herói da “Chanson de Roland”.

[5]   “Vae victis” (ai dos vencidos): o derrotado está à mercê do vencedor. Palavras de Brennus, ao atirar a espada ao prato da balança onde deveriam ser colocados os pesos com que se deveria pesar o ouro do resgate romano.

[6]   Coestaduano: do mesmo estado.

[7]   Troço: bando.

[8]   Surtas: ancoradas.

[9]   Secundaram: apoiaram.

[10]  Às ilhargas: à proteção.

[11]  Carteira cirúrgica: Kit de instrumentos cirúrgicos.

[12]  “Decubitus dorsal”: de barriga para cima.

Galeria de Imagens

  • O Malho, RJ, 25.05.1912, n° 506
    O Malho, RJ, 25.05.1912, n° 506
  • O Malho, RJ, 01.11.1913, n° 581
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