Sexta-feira, 1 de julho de 2022 - 06h10
Bagé, 01.07.2022
As declarações do inglês
Henri Melville
Como
já noticiámos, a polícia recebera declarações importantes sobre os negócios do
Rio Branco.
Abrimos
hoje espaço ao documento oficial:
Cópia.
– Auto de perguntas feitas a Henri Melville.
Aos
nove dias do mês de fevereiro do ano de mil oitocentos noventa e oito, nesta
cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, na Chefatura de Segurança
Pública, presente o Desembargador Chefe de Segurança pública do mesmo Estado,
Doutor Guido Gomes de Souza, compareceu o cidadão Henri Melville, súdito
inglês, de trinta e três anos de idade, fazendeiro na margem do Rio Tacutu e aí
residente. Interrogado, disse que, há cinco anos é fazendeiro no Rio Branco, no
lugar “Arara”, margem do Tacutu,
considerado terreno neutro, e que pagou sempre impostos em Boa Vista e bem
assim tem feito todos os moradores da margem do Tacutu; que no dia primeiro do
corrente ano um comissário inglês de nome Michael Mac Turk foi até à margem do
Tacutu nas casas dos fazendeiros aí estabelecidos e declarou que daquele dia em diante tinham de
obedecer à lei britânica e hasteou no lugar
o pavilhão da bandeira civil colonial; que o
referido comissário da Inglaterra prometeu mandar demarcar e dar direitos sobre as
terras que ele declarante ocupa bem como os outros fazendeiros do lugar, e declarou
mais que assim procedia o governo a fim de dar proteção aos
referidos moradores, que ele declarante, que tem pago até hoje impostos
às autoridades Brasileiras, vê-se agora obrigado a pagar ao governo inglês, em
vista da intimação feita pelo seu comissário; que no dia primeiro deste ano recebeu ele declarante a nomeação do governo
inglês de Post-Holder que lhe foi entregue pelo
comissário inglês, que o
vice-cônsul do Brasil, Ernesto Mattoso, pode melhor dar esclarecimentos sobre o
assunto; que ele declarante é fazendeiro no lugar há cinco anos; e só no dia primeiro do corrente ano foi que viu flutuar no lugar a bandeira inglesa, a qual se acha colocada em um grande mastro mandado ali fincar pelo comissário Michael Mac Turk.
Nada
mais disse e nem lhe foi perguntado, pelo que se deu por findo este depoimento
que assina com a autoridade e as testemunhas.
Eu, Gentil Augusto Bittencourt, secretário, o
escrevi. – Guido Gomes de Souza. – Henri Melville. – Manoel F. Alves, como
testemunha que assistiu às declarações. – Manoel Ribeiro de Almeida Braga. –
Confere. – Benedicto Bessa, chefe da 2ª.
À vista, pois, do que acabamos de ler, haverá diplomata, por
mais hábil que seja, capaz de provar que os poderes públicos da Colônia inglesa
não violaram o “status quo”, de
1842, com o mais condenável desprezo da boa-fé dos contratos? Haverá maior
ofensa à nossa soberania?
Entretanto, em 1887, quando o
Sr. Pimenta Bueno, Presidente da ex-Província do Amazonas, foi ao Contestado em
caráter particular por 48 horas apenas, o governo de S. M. Britânica protestou
energicamente, exigindo do Brasil o exato cumprimento do Tratado de 1842,
conforme teremos adiante ocasião de referir. No folheto que publicamos em maio
do ano passado, sob o título de “Memória
justificativa dos direitos do Brasil”,
e que na íntegra transcreveremos nestas colunas, dissemos que mal andou a
diplomacia funesta do antigo regímen, quando aceitou, em 1842, o Tratado com a
Inglaterra, considerando de “nullius
jurisdictionis” o território do Pirara, no Estado do Amazonas.
Consideramos absurdo esse “status quo” provamos a evidência o nosso
direito sempre reconhecido sobre esse território, e agora, aos inúmeros
documentos citados naquele pequeno livro, temos a acrescentar outros do mais
alto valor histórico, em confirmação das conclusões que tiramos. Esses
documentos são todos antigos; deviam ser conhecidos pelos estadistas de então,
e assim pensando não se compreende como consentiu o Brasil em neutralizar uma
zona enorme de território comprovadamente nacional.
Incúria, ignorância e fraqueza foram as causas de tão impatriótico
arranjo.
Incúria, porque se houvessem
mantido sempre a ocupação constante que os portugueses nunca esqueceram, os
ingleses jamais teriam pretensões.
Ignorância, porque se
estudassem como cumpria os nossos direitos, não se submeteriam a exigências
estrangeiras sobre território cuja propriedade indiscutível era nossa.
Fraqueza,
porque foram assinando um Tratado de “nullius
jurisdictionis”, sem que os nossos vizinhos houvessem mostrado sequer um
único documento que legitimasse a insólita pretensão. Se a funesta diplomacia
daqueles tempos não fosse descuidada, imprevidente e fraca, quantos benefícios
não aproveitariam hoje ao Brasil?
Se ao invés de aceitar esse “status quo” de 1842, houvesse o Brasil entrado logo em ajuste de
limites definitivos, se houvesse naquela época demarcado logo a linha divisória
entre o Império e a Guiana Inglesa, de certo não poderia existir no Tratado com
a França, ultimamente firmado para a arbitragem do Amapá, a célebre linha pelo
Araguari.
Essa ao menos estaria reconhecida como fora de dúvida; a
própria Inglaterra a defenderia como indiscutivelmente nossa. Uma vez, porém;
efetuado o erro, deveriam as duas nações, Brasil e Grã-Bretanha, conservar o
Contestado na mais severa neutralidade. De nossa parte temos cumprido o
Tratado com a mais ampla seriedade; os nossos vizinhos entretanto dele se
esquecem a todo momento. Vejamos:
Em 19.04.1888, o Sr. Hugh Gough, encarregado de negócios da
Inglaterra, por uma nota dirigida ao nosso governo, protestou contra a
presença, no território neutralizado pelo Tratado de 1842, do Sr. Pimenta
Bueno, Presidente da ex-Província do Amazonas.
O governo Brasileiro apressou-se em responder e em nota
datada de 21.05.1888, depois das satisfações dadas, assim se exprime:
Aquele senhor conhece o mencionado ajuste, ainda há pouco
lembrado ao seu sucessor imediato; vou entretanto oficiar-lhe recomendando-lhe
que não volte ao Território do Pirara, se lá foi. Como, porém, pode haver
equívoco a respeito dos limites da neutralização, rogo ao Sr. Gough que se
sirva dizer-me quais são eles, no entender do seu governo.
Neste pequeno trecho aí temos
os três grandes pecados diplomáticos da chancelaria do Sr. D. Pedro.
Fraqueza, porque deu satisfações humildes sobre a ida
de Pimenta Bueno, que lá foi como particular, demorando-se apenas menos de 48
horas;
Ignorância, porque admite equívocos nos limites da
neutralização, quando eles estão especificados claramente no Tratado, que se
refere ao Território do Pirara, isto é, Território onde existem missões Brasileiras,
onde houve forças Brasileiras e inglesas;
Incúria, finalmente e incúria criminosa, porque, na dúvida,
pede ao contendor que lhe indique qual pensa ser esse limite!!!
Em nota de 23 de Maio, como que
para emendar a mão, disse o governo do Sr. D. Pedro:
Já respondi à nota que o honrado Sr. Hugh
Gough, encarregado de negócios da Grã-Bretanha, me dirigiu em 19 do mês próximo
passado, relativamente à presença do Presidente da Província do Amazonas no
Território em litígio entre o Brasil e a Guiana Inglesa. Pouco depois pedi pelo
telégrafo àquele delegado do Governo Imperial informações sobre o fato
denunciado pelo Governo de S. M. Britânica.
Recebi-as também pelo telégrafo, e por
isto não são circunstanciadas; mas brevemente as terei por escrito e completas,
e então acrescentarei o que for necessário. Agora direi o que já é possível.
O Sr. Pimenta Bueno esteve com efeito no
território neutralizado, não como Presidente, como particular, sem nenhum
aparato ou distintivo oficial, somente por 48 horas, e não praticou nem
pretendeu praticar ato de jurisdição.
Apesar destas circunstancias que, no seu
entender, tiram ao seu procedimento todo caráter censurável, confirmo o que
declarei ao Sr. Gough: o Presidente da Província do Amazonas, ou, para melhor
dizer, a pessoa que exercer esse cargo não irá, salvo acordo em contrário, ao
território litigioso. Feita esta declaração, que espero satisfará ao Governo
Britânico, peço licença para entrar em algumas considerações sugeridas pelos
termos de ajuste de 1842, e pelos fatos subsequentes.
..........................................................................
Segundo a cláusula final deste ajuste,
devia ele ser desenvolvido em negociação regular por meio de plenipotenciários.
Esta negociação nunca foi tentada, e a de um Tratado de Limites, promovida, em
1843, pelo Governo Imperial, foi interrompida por ato do Governo Britânico.
Subsistem, pois, há mais de 40 anos as
condições esboçadas em 1842 sem a necessária clareza.
O Governo Imperial, longe de ampliá-las
por meio de interpretação liberal, tem-lhes dado exato cumprimento. Assim,
porém, parece não ter procedido o Governo de Demerara. Depois do ajuste
estabeleceu-se na margem esquerda do Rupununi o súbdito inglês William de Roy
com casas de comércio, fábrica de redes de algodão e depósitos de madeiras
extraídas da Serra de Cuano-Cuano.
A um Brasileiro, que o visitou não há
muito tempo, disse ele que se estabelecera naquele lugar por lhe dizer o
Governador da Colônia que era território britânico. Desta maneira entre Demerara
e o Território neutralizado formaram-se relações comerciais, que exigem
constante movimento de pessoas.
Ainda há um fato mais importante. Na sua
visita ao Pirara verificou o Sr. Pimenta Bueno que o Governo da Colônia tem ali
dois agentes.
Não me disse que funções exercem, mas eu
não necessito saber de que natureza são para me persuadir de que contrariam o
ajuste de 1842; e a ação daquele Governo parece ir mais longe, porque um
professor inglês, que se evadiu ao ser descoberto, tinha estabelecido escola,
em que ensinava a sua língua aos índios Brasileiros, não no Território
neutralizado, o que já não seria regular, mas em terreno da fazenda de São
Marcos, pertencente ao Governo Imperial e fora de todo litígio.
Se o Governador da Colônia Britânica tem
podido praticar esses atos sem violar o ajuste, não seria justo estranhar que o
Presidente da Província do Amazonas visitasse o Território de Pirara como
particular e apenas por 48 horas. A reclamação feita pelo Sr. Gough, de ordem
do seu Governo, origina uma questão de alguma importância, que não foi
prevista.
O ajuste de 1842 pode ser violado sem
autorização nem ciência das partes contratantes, e esta possibilidade faz
precisa alguma vigilância.
Neste momento há de ambos os lados
denuncia de atos irregulares. Cada um dos dois governos, pois, deve ter a
faculdade de empregar algum meio de certificar-se de que os delegados do outro
cumprem o que se convencionou. O Governador de Demerara, prescindindo dos seus
dois agentes, conta com informações oportunas dos seus compatriotas
estabelecidos no Pirara e dos índios que eles têm disciplinado. Mas como
procederá o Governo Imperial, que ali não tem Brasileiro nem índios em iguais
condições? A desigualdade é notável.
Peço ao Sr. Gough que se sirva recomendar
estas considerações à atenção do seu Governo. Estou certo de que ele as há de
apreciar com seu conhecido espírito de justiça. Tenho a honra de reiterar, etc.
A esta importante nota, altiva
e justa como deviam ser todas as que se referissem a abusos de qualquer nação
poderosa ou fraca, que desrespeitasse a fé dos contratos, o Governo Inglês
respondeu mais ou menos com o chavão de que usa:
O Governo de Sua
Majestade Britânica tomará em consideração o que lhe foi observado, com
espírito de justiça e boa amizade que sempre soube dispensar ao governo tal,
etc., etc.
Por esse jeitoso modo conseguiu acalmar a justa indignação
do Brasil, que foi acreditando nos “cantos da
sereia”, e eles, certos de que ninguém mais os espreitava, foram povoando
o Contestado, estabeleceram núcleos onde ensinaram o protestantismo e a língua inglesa; e agora levam a audácia ao ponto de nomear autoridades [Post-holders] em vários pontos
do território em litígio e não em litígio, isto é, em zona
nunca disputada, mas que a julgar pelo que fizeram à Venezuela
sê-lo-á
amanhã.
É contra isso que clamam todos os Brasileiros que conhecem
os seus direitos e em tempo ainda de tomar-se as precauções precisas.
É contra isso que protesta o Estado do Amazonas e o Brasil
inteiro, vendo a Pátria ameaçada em sua integridade, que deve ser a patriótica
preocupação dos nossos governos e a qual nós todos Brasileiros saberemos defender;
custe o que custar. Desgraçadamente, porém, o nosso território já está
invadido, e quer no Contestado, quer em zona positivamente nossa, residem e
continuam a estabelecerem-se muitos e muitos súditos britânicos, tais como os
Srs. De Roy, Montagas Flint, Henrique Melville, Bently, Mackley, Carlos Meeban,
H. Buckey, John Packer, Ricardo Ritchy e outros, sem contar um tal Pedro Level,
vulgo Pedro Espanhol, D. Francisco e talvez outros venezuelanos, não
mencionando as inúmeras expedições inglesas feitas oficialmente por conta e
ordem do Governo de Demerara, tais como as de B. Brown, Mc. Connell, J. J.
Quetch, Mac Turck e quejandos ([1]), todos
no intuito de distribuir gramáticas da língua inglesa, seduzir os índios,
ensinar-lhes obediência às leis inglesas, incutindo-lhes no espírito a ideia de
que se preferirem viver como Brasileiros o pagamento que estes lhes darão será
o de fazê-los cativos, forçá-los-ão a trabalhos os mais penosos, surrando-os a
todo o momento, etc. (MATTOSO, 1898) (Continua...)
Bibliografia:
MATTOSO,
Ernesto. Limites da República com a
Guiana Inglesa – Memória Justificativa do Direitos do Brasil – Brasil –
Manaus – Tipografia Leuzinger, 1898.
(*)
Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H