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Hiram Reis e Silva

A Terceira Margem – Parte CDLI - Ernesto Mattoso (1898) Parte II


A Terceira Margem – Parte CDLI - Ernesto Mattoso (1898) Parte II - Gente de Opinião

Bagé, 01.07.2022

 

 

As declarações do inglês Henri Melville

Como já noticiámos, a polícia recebera declarações importantes sobre os negócios do Rio Branco.

Abrimos hoje espaço ao documento oficial:

Cópia. – Auto de perguntas feitas a Henri Melville.

Aos nove dias do mês de fevereiro do ano de mil oitocentos noventa e oito, nesta cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas, na Chefatura de Segurança Pública, presente o Desembargador Chefe de Segurança pública do mesmo Estado, Doutor Guido Gomes de Souza, compareceu o cidadão Henri Melville, súdito inglês, de trinta e três anos de idade, fazendeiro na margem do Rio Tacutu e aí residente. Interrogado, disse que, há cinco anos é fazendeiro no Rio Branco, no lugar “Arara”, margem do Tacutu, considerado terreno neutro, e que pagou sempre impostos em Boa Vista e bem assim tem feito todos os moradores da margem do Tacutu; que no dia primeiro do corrente ano um comissário inglês de nome Michael Mac Turk foi até à margem do Tacutu nas casas dos fazendeiros aí estabelecidos e declarou que daquele dia em diante tinham de obedecer à lei britânica e hasteou no lugar o pavilhão da bandeira civil colonial; que o referido comissário da Inglaterra prometeu mandar demarcar e dar direitos sobre as terras que ele declarante ocupa bem como os outros fazendeiros do lugar, e declarou mais que assim procedia o governo a fim de dar proteção aos referidos moradores, que ele declarante, que tem pago até hoje impostos às autoridades Brasileiras, vê-se agora obrigado a pagar ao governo inglês, em vista da intimação feita pelo seu comissário; que no dia primeiro deste ano recebeu ele declarante a nomeação do governo inglês de Post-Holder que lhe foi entregue pelo comissário inglês, que o vice-cônsul do Brasil, Ernesto Mattoso, pode melhor dar esclarecimentos sobre o assunto; que ele declarante é fazendeiro no lugar há cinco anos; e só no dia primeiro do corrente ano foi que viu flutuar no lugar a bandeira inglesa, a qual se acha colocada em um grande mastro mandado ali fincar pelo comissário Michael Mac Turk.

Nada mais disse e nem lhe foi perguntado, pelo que se deu por findo este depoimento que assina com a autoridade e as testemunhas.

Eu, Gentil Augusto Bittencourt, secretário, o escrevi. – Guido Gomes de Souza. – Henri Melville. – Manoel F. Alves, como testemunha que assistiu às declarações. – Manoel Ribeiro de Almeida Braga. – Confere. – Benedicto Bessa, chefe da 2ª.

À vista, pois, do que acabamos de ler, haverá diplomata, por mais hábil que seja, capaz de provar que os poderes públicos da Colônia inglesa não vio­laram o “status quo”, de 1842, com o mais conde­nável desprezo da boa-fé dos contratos? Haverá maior ofensa à nossa soberania?

Entretanto, em 1887, quando o Sr. Pimenta Bueno, Presidente da ex-Província do Amazonas, foi ao Contestado em caráter particular por 48 horas ape­nas, o governo de S. M. Britânica protestou energi­camente, exigindo do Brasil o exato cumprimento do Tratado de 1842, conforme teremos adiante ocasião de referir. No folheto que publicamos em maio do ano passado, sob o título de “Memória justificativa dos direitos do Brasil”, e que na íntegra transcreve­remos nestas colunas, dissemos que mal andou a diplomacia funesta do antigo regímen, quando aceitou, em 1842, o Tratado com a Inglaterra, considerando de “nullius jurisdictionis” o território do Pirara, no Estado do Amazonas.

Consideramos absurdo esse “status quo” provamos a evidência o nosso direito sempre reconhecido sobre esse território, e agora, aos inúmeros documentos citados naquele pequeno livro, temos a acrescentar outros do mais alto valor histórico, em confirmação das conclusões que tiramos. Esses documentos são todos antigos; deviam ser conhecidos pelos estadistas de então, e assim pensando não se compreende como consentiu o Brasil em neutralizar uma zona enorme de território comprovadamente nacional.

Incúria, ignorância e fraqueza foram as causas de tão impatriótico arranjo.

Incúria, porque se houvessem mantido sempre a ocupação constante que os portugueses nunca es­queceram, os ingleses jamais teriam pretensões.

Ignorância, porque se estudassem como cumpria os nossos direitos, não se submeteriam a exigências estrangeiras sobre território cuja propriedade indis­cutível era nossa.

Fraqueza, porque foram assinando um Tratado de “nullius jurisdictionis”, sem que os nossos vizinhos houvessem mostrado sequer um único documento que legitimasse a insólita pretensão. Se a funesta diplomacia daqueles tempos não fosse descuidada, imprevidente e fraca, quantos benefícios não apro­veitariam hoje ao Brasil?

Se ao invés de aceitar esse “status quo” de 1842, houvesse o Brasil entrado logo em ajuste de limites definitivos, se houvesse naquela época demarcado logo a linha divisória entre o Império e a Guiana Inglesa, de certo não poderia existir no Tratado com a França, ultimamente firmado para a arbitragem do Amapá, a célebre linha pelo Araguari.

Essa ao menos estaria reconhecida como fora de dú­vida; a própria Inglaterra a defenderia como indiscu­tivelmente nossa. Uma vez, porém; efetuado o erro, deveriam as duas nações, Brasil e Grã-Bretanha, conservar o Contes­tado na mais severa neutralidade. De nossa parte temos cumprido o Tratado com a mais ampla serie­dade; os nossos vizinhos entretanto dele se esque­cem a todo momento. Vejamos:

Em 19.04.1888, o Sr. Hugh Gough, encarregado de negócios da Inglaterra, por uma nota dirigida ao nosso governo, protestou contra a presença, no território neutralizado pelo Tratado de 1842, do Sr. Pimenta Bueno, Presidente da ex-Província do Ama­zonas.

O governo Brasileiro apressou-se em responder e em nota datada de 21.05.1888, depois das satisfações dadas, assim se exprime:

Aquele senhor conhece o mencionado ajuste, ainda há pouco lembrado ao seu sucessor imediato; vou entretanto oficiar-lhe recomendando-lhe que não volte ao Território do Pirara, se lá foi. Como, porém, pode haver equívoco a respeito dos limites da neutralização, rogo ao Sr. Gough que se sirva dizer-me quais são eles, no entender do seu governo.

Neste pequeno trecho aí temos os três grandes pecados diplomáticos da chancelaria do Sr. D. Pedro.

Fraqueza, porque deu satisfações humildes sobre a ida de Pimenta Bueno, que lá foi como particular, demorando-se apenas menos de 48 horas;

Ignorância, porque admite equívocos nos limites da neutralização, quando eles estão especificados clara­mente no Tratado, que se refere ao Território do Pi­rara, isto é, Território onde existem missões Brasileiras, onde houve forças Brasileiras e inglesas;

Incúria, finalmente e incúria criminosa, porque, na dúvida, pede ao contendor que lhe indique qual pensa ser esse limite!!!

Em nota de 23 de Maio, como que para emendar a mão, disse o governo do Sr. D. Pedro:

Já respondi à nota que o honrado Sr. Hugh Gough, encarregado de negócios da Grã-Bretanha, me dirigiu em 19 do mês próximo passado, relativamente à presença do Presidente da Província do Amazonas no Território em litígio entre o Brasil e a Guiana Inglesa. Pouco depois pedi pelo telégrafo àquele delegado do Governo Imperial informações sobre o fato denunciado pelo Governo de S. M. Britânica.

Recebi-as também pelo telégrafo, e por isto não são circunstanciadas; mas brevemente as terei por escrito e completas, e então acrescentarei o que for necessário. Agora direi o que já é possível.

O Sr. Pimenta Bueno esteve com efeito no território neutralizado, não como Presidente, como particular, sem nenhum aparato ou distintivo oficial, somente por 48 horas, e não praticou nem pretendeu praticar ato de jurisdição.

Apesar destas circunstancias que, no seu entender, tiram ao seu procedimento todo caráter censurável, confirmo o que declarei ao Sr. Gough: o Presidente da Província do Amazonas, ou, para melhor dizer, a pessoa que exercer esse cargo não irá, salvo acordo em contrário, ao território litigioso. Feita esta declaração, que espero satisfará ao Governo Britânico, peço licença para entrar em algumas considerações sugeridas pelos termos de ajuste de 1842, e pelos fatos subsequentes.

..........................................................................

Segundo a cláusula final deste ajuste, devia ele ser desenvolvido em negociação regular por meio de plenipotenciários. Esta negociação nunca foi tentada, e a de um Tratado de Limites, promovida, em 1843, pelo Governo Imperial, foi interrompida por ato do Governo Britânico.

Subsistem, pois, há mais de 40 anos as condições esboçadas em 1842 sem a necessária clareza.

O Governo Imperial, longe de ampliá-las por meio de interpretação liberal, tem-lhes dado exato cumpri­mento. Assim, porém, parece não ter procedido o Governo de Demerara. Depois do ajuste estabele­ceu-se na margem esquerda do Rupununi o súbdito inglês William de Roy com casas de comércio, fábrica de redes de algodão e depósitos de madeiras extraídas da Serra de Cuano-Cuano.

A um Brasileiro, que o visitou não há muito tempo, disse ele que se estabelecera naquele lugar por lhe dizer o Governador da Colônia que era território bri­tânico. Desta maneira entre Demerara e o Território neutralizado formaram-se relações comerciais, que exigem constante movimento de pessoas.

Ainda há um fato mais importante. Na sua visita ao Pirara verificou o Sr. Pimenta Bueno que o Governo da Colônia tem ali dois agentes.

Não me disse que funções exercem, mas eu não ne­cessito saber de que natureza são para me persuadir de que contrariam o ajuste de 1842; e a ação daquele Governo parece ir mais longe, porque um professor inglês, que se evadiu ao ser descoberto, tinha estabelecido escola, em que ensinava a sua língua aos índios Brasileiros, não no Território neutralizado, o que já não seria regular, mas em terreno da fazenda de São Marcos, pertencente ao Governo Imperial e fora de todo litígio.

Se o Governador da Colônia Britânica tem podido praticar esses atos sem violar o ajuste, não seria justo estranhar que o Presidente da Província do Amazonas visitasse o Território de Pirara como particular e apenas por 48 horas. A reclamação feita pelo Sr. Gough, de ordem do seu Governo, origina uma questão de alguma importância, que não foi prevista.

O ajuste de 1842 pode ser violado sem autorização nem ciência das partes contratantes, e esta possi­bilidade faz precisa alguma vigilância.

Neste momento há de ambos os lados denuncia de atos irregulares. Cada um dos dois governos, pois, deve ter a faculdade de empregar algum meio de certificar-se de que os delegados do outro cumprem o que se convencionou. O Governador de Demerara, prescindindo dos seus dois agentes, conta com informações oportunas dos seus compatriotas estabelecidos no Pirara e dos índios que eles têm disciplinado. Mas como procederá o Governo Imperial, que ali não tem Brasileiro nem índios em iguais condições? A desigualdade é notável.

Peço ao Sr. Gough que se sirva recomendar estas considerações à atenção do seu Governo. Estou certo de que ele as há de apreciar com seu conhecido espírito de justiça. Tenho a honra de reiterar, etc.

A esta importante nota, altiva e justa como deviam ser todas as que se referissem a abusos de qualquer nação poderosa ou fraca, que desrespeitasse a fé dos contratos, o Governo Inglês respondeu mais ou me­nos com o chavão de que usa:

O Governo de Sua Majestade Britânica tomará em consideração o que lhe foi observado, com espírito de justiça e boa amizade que sempre soube dispensar ao governo tal, etc., etc.

Por esse jeitoso modo conseguiu acalmar a justa indignação do Brasil, que foi acreditando nos cantos da sereia”, e eles, certos de que ninguém mais os espreitava, foram povoando o Contestado, estabele­ceram núcleos onde ensinaram o protestantismo e a língua inglesa; e agora levam a audácia ao ponto de nomear autoridades [Post-holders] em vários pontos do território em litígio e não em litígio, isto é, em zona nunca disputada, mas que a julgar pelo que fizeram à Venezuela-lo-á amanhã.

É contra isso que clamam todos os Brasileiros que conhecem os seus direitos e em tempo ainda de to­mar-se as precauções precisas.

É contra isso que protesta o Estado do Amazonas e o Brasil inteiro, vendo a Pátria ameaçada em sua integridade, que deve ser a patriótica preocupação dos nossos gover­nos e a qual nós todos Brasileiros saberemos defen­der; custe o que custar. Desgraçadamente, porém, o nosso território já está invadido, e quer no Contes­tado, quer em zona positivamente nossa, residem e continuam a estabelecerem-se muitos e muitos súdi­tos britânicos, tais como os Srs. De Roy, Montagas Flint, Henrique Melville, Bently, Mackley, Carlos Meeban, H. Buckey, John Packer, Ricardo Ritchy e outros, sem contar um tal Pedro Level, vulgo Pedro Espanhol, D. Francisco e talvez outros venezuelanos, não mencionando as inúmeras expedições inglesas feitas oficialmente por conta e ordem do Governo de Demerara, tais como as de B. Brown, Mc. Connell, J. J. Quetch, Mac Turck e quejandos ([1]), todos no intuito de distribuir gramáticas da língua inglesa, seduzir os índios, ensinar-lhes obediência às leis inglesas, incutindo-lhes no espírito a ideia de que se preferirem viver como Brasileiros o pagamento que estes lhes darão será o de fazê-los cativos, forçá-los-ão a trabalhos os mais penosos, surrando-os a todo o momento, etc. (MATTOSO, 1898) (Continua...)

Bibliografia:

 

MATTOSO, Ernesto. Limites da República com a Guiana Inglesa – Memória Justificativa do Direitos do Brasil – Brasil – Manaus – Tipografia Leuzinger, 1898.

 

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   Quejandos: da mesma natureza. (Hiram Reis)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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