Quarta-feira, 16 de março de 2022 - 07h01
Bagé, 16.03.2022
O Cruzeiro do Sul, n° 35
Cruzeiro do Sul, AC – Domingo, 10.03.1907
O
Território do Acre
Resumo Histórico da Questão
Por
esse processo S. Exª não resolveu o assunto: agravou-o, ao contrário. Desde que
não queria ou não podia, por já ser tarde entrar em negócios com o Governo do Bolívia
para a reaquisição do Acre ‒ e esta política devia ser tentada com habilidade e
firmada antes de um passo extremo como o que agora foi dado ‒ o que lhe
competia era falar franco ao Congresso, expor-lhe a situação e aguardar que ele
o autorizasse a defender pelas armas, se todos os recursos tivessem falhado, a
integridade do Brasil ameaçada pelos sindicateiros acreanos.
Isto
ao menos era nobre e digno de nossas tradições de seriedade internacional. O
Governo, ao declarar que considerava nacional a produção do Acre, quis
naturalmente levar a Bolívia a um ato de desforço ([1]),
obrigá-la a agredir-nos, provocando-nos à luta na defesa da nossa honra. A
Bolívia continuará a considerar boliviana a borracha que nós reputamos
brasileira e a cobrar em Porto Alonso direitos do exportação, exatamente como
nós, passamos a fazer em Manaus. E o seu raciocínio será este: o Brasil
declarando-se soberano no Acre ‒ e a sua soberania afirma-se pela cobrança de
impostos ‒ não pode permitir que uma outra nação taxe como sua, para os efeitos
da exportação, a borracha que nessa zona se produz.
É
ao Brasil, realmente, que compete fazer valer agora, pela força, a sua
autoridade, impedindo que agentes fiscais bolivianos tributem produtos
nacionais dentro do nosso território e desalojando-os pelas armas dos lugares
em que usurparem os nossos direitos e afrontarem a nossa soberania.
Isto
será a guerra, guerra que terá de ser por nós declarada, em circunstâncias
desagradáveis para o nosso nome, sempre aureolado de estima e respeito pelas
provas constantes de circunspecção, de lealdade, do inalterável sentimento de
justiça nas nossas negociações internacionais. Decerto sobra a todos os
brasileiros, na hipótese de uma campanha, o valor para defender a Pátria, mas as espadas
têm outro fulgor quando as fazem saltar das bainhas a razão e o direito.
Distinto
brasileiro que neste regime ocupou as mais altas posições e sustentou na
imprensa diária viva discussão a respeito dos acontecimentos do Acre, assim
analisou a situação naqueles dias agitados:
É
realmente das mais melindrosas a situação atual, nesta questão do Acre! Não é
tanto pela perda de uma vasta extensão territorial explorada e habitada quase
que exclusivamente por brasileiros, que sempre se reputaram em solo pátrio,
quanto pela responsabilidade que vai pesar sobre o Governo de ter sido
indiretamente quem franqueou aos Americanos do Norte a invasão da América do
Sul; com o estabelecimento de um poderoso centro de influência política,
geográfica e comercial, cuja expansão mais se poderá calcular, atendendo à
riqueza da região e às tendências imperialistas do poderoso país...
Parece
que começa a empalidecer a nossa boa estrela, que com tanto brilho nos levou a
resolver as questões da Trindade, das Missões, do Amapá. A Questão do Acre,
qualquer que seja o aspecto em que a queiram encarar, é uma questão gravíssima.
É a morte comercial de dois Estados importantes; é a invasão norte-americana na
América do Sul, é o maior domínio fluvial do mundo que se escapa de nossas mãos
para cair em poder de um povo poderosíssimo, com o qual dificilmente nos
sentimos aparelhados para concorrer ou lutar. Eis ao que nos levou a nossa
improvidência.
Os
demais povos sul-americanos não nos perdoarão essa falta que os ameaça mais
tarde ou mais cedo: falta que é mais nossa que dos Bolivianos. Desde o decurso
de 1900, quando corriam vagas notícias de um plano esboçado de arrendamento
daquele território, o sentimento nacional se lhe mostrava hostil e alarmava-se
com a eventualidade daquele ato da Bolívia.
Já na “Imprensa”, sob a redação luminosa do Sr.
Ruy Barbosa, a previsão desse temeroso perigo suscitava o seguinte protesto em
1900:
Quando
aqui, há algum tempo, ventilávamos de espaço a Questão do Acre chamamos a
atenção do País e do Governo para a possibilidade, talvez bem provável, de
recorrer a Bolívia à intervenção de alguma potência estrangeira, associando-a
aos seus interesses no território controverso. A indigitada pelas suas
tradições no continente, pelas aspirações de sua política expansionista e pelos
cálculos de sua ambição mercantil, era naturalmente os Estados Unidos.
Ora,
no Amazonas, o Acre é por excelência a região da borracha. Porque motivo não
haverão de os Estados Unidos absorvê-la agora, se agora para absorver-lhe
bastaria um ajuste, uma transação pecuniária? É a borracha do Acre. Mas o Acre
é o Amazonas e o Amazonas é o Brasil...
Se a
notícia que nos chega ainda não é realidade, bem perto dela deve estar. E
quando a for teremos a cunha americana cravada
no coração da América do Sul, no seio
do Brasil... A situação criada pelos atos recentes do Governo do Brasil,
decorrente de nova atitude no Acre, depois do arrendamento ao “Bolivian Syndicate”, era assim apreciada
na “Prensa”, do dia 06.08.1902:
Persiste o boato de que o Governo do Brasil fez
insinuações ao Argentino no sentido de sondar a sua opinião a respeito da
Questão do Acre. As versões correntes são vagas e incompletas; a própria
negativa de sua veracidade faz supor que alguma coisa realmente existe. O que
parece fora de dúvida e pode ser aceito como certo é que a diplomacia
brasileira está em campo para impedir a execução do contrato celebrado pelo
Governo da Bolívia com um poderoso sindicato norte-americano para exploração
dos valiosos produtos naturais do Acre, principalmente da borracha. Não só
não é improvável como lógico que o Brasil invoque o princípio solidariedade
sul-americana contra o perigo que parece de absorção, do potente Norte.
O Brasil não faz mistério da sua oposição ao mencionado
contrato desde que se principiou a falar nele. Em termos bem claros deu a
conhecer à Bolívia o seu desagrado, assim como o propósito em que está do
impedir a realização do negócio, alegando direitos ao território em questão e
principalmente invocando o risco que corre com o estabelecimento de uma
semissoberania em sua vizinhança.
Sabe-se que
ainda não está delimitada a fronteira do Brasil com a Bolívia nas regiões
aludidas; a questão, porém, é mais do trabalho geodésico do que de títulos de
posse. Assim, pelo menos, o demonstrou o General Cerqueira, profundo conhecedor
do assunto, em um notável discurso que pronunciou, há poucos anos, no Congresso
Federal.
O Brasil reconhece a soberania boliviana no
território que o contrato abrange, sem prejuízo das retificações da linha
limítrofe definitiva. Em virtude desse reconhecimento foi que o Governo da
Bolívia lutou contra a insurreição que se assenhoreara da comarca, dominou-a e
estabeleceu as suas próprias autoridades, que são as que a governam. “De meritis” ([2]) é lógico supor que se o Governo Boliviano não tivesse celebrado o
Contrato com o sindicato norte-americano e preferisse explorar por si mesmo a
borracha hipotecada, não teria formulado o protesto com que hoje preocupa o
mundo diplomático e que está destinado a causar, talvez, complicações
internacionais de extraordinária gravidade.
Tanto quanto possível temos acompanhado a viva
discussão travada, no último mês, na imprensa brasileira e boliviana. A
argumentação da primeira nos deixou a impressão que o fundamento principal da
sua oposição é o perigo que resulta da influência política dos Estados Unidos
no Amazonas, no coração de uma grande parte dos seus domínios territoriais.
O “Bolivian
Syndicate” adquire direitos semissoberanos que lhe dão faculdades de
Governo na extensa zona entregue à sua exploração comercial. Os seus
interesses, como é natural, ficarão sob a égide protetora, do caráter
diplomático, dos Estados Unidos da América.
Eis aí o perigo entrevisto pelos governantes do
Rio de Janeiro. O Brasil se entendia, sem embaraços, com a Bolívia, no debate
da demarcação da fronteira, mas teme que a presença do mencionado interesse,
com tão poderoso patrocínio, lhe crie dificuldades que deseja previdentemente
eliminar. A imprensa boliviana está dividida: uma parte da referida imprensa
defende o Contrato e outra parte o impugna com calor, chegando ‒ até a acusar
de alta traição aqueles que o sustentam, porquanto ele importa na abdicação da
soberania nacional em favor de um Sindicato estrangeiro. É preciso, porém,
ouvir serenamente a defesa do negócio; não se pode desconhecer que promete
argumentos dignos de consideração.
As razões invocadas para justificar as enormes
concessões que explicam a delegação e imolação da soberania do Estado em uma
parte do seu território, são equivalentes à força maior. O Acre é boliviano,
mas a sua posição o coloca fora do raio de ação administrativa ordinária do
país. As autoridades e tropas que para lá se destinam devem seguir pelo
Atlântico até a embocadura do Amazonas. Na própria região é preciso lutar
tenazmente contra toda a sorte de dificuldades, entre as quais figuram as do
mortífero clima. Os habitantes dos Estados brasileiros limítrofes são talvez os
que opõem maiores embaraços, porque tem na ausência do dono, aproveitado a
riqueza da borracha.
Como prova da riqueza que representa a produção
da borracha se invoca uma informação publicada no “L'Économiste Français”, da qual se verifica que 1901 entraram nos
mercados europeus 47.000 toneladas de borracha avaliadas em 18.000:000 de
libras, e em que sustenta que pelo menos metade dessa quantidade provém do
território boliviano, sub-repticiamente extraída com prejuízo da sua
administração. Não se pode desconhecer a força dessas observações. Bastaria que
tivessem algum fundamento para suster o juízo definitivo dos neutros e também
para ter conta do Brasil poderá ser inspirado por uma conveniência econômica,
fora das considerações de outra natureza publicamente expostas.
“El Tiempo”, em sua edição da mesma data,
aludindo à possível consulta do Brasil ao Governo Argentino no intuito de
interessá-lo na oposição ao “Bolivian
Syndicate”, não dissimula a sua opinião, assim manifestada:
Qual seria a resposta do nosso Governo no caso de
serem exatas as notícias, ainda não desmentidas, relativas às consultas por
parte do Brasil? Tendo em vista a política internacional claramente definida
nos últimos pactos celebrados com o Chile, poderíamos predizer que o Governo se
limitaria a expender as suas ideias de respeito a todas as soberanias e de
abstenção nos atos praticados pelos Estados no livre exercício dessas mesmas
soberanias.
E máxime ([3]) neste caso, em que, nas regiões diplomáticas, se apresenta como
concluído o Contrato realizado pela Bolívia com o Sindicato norte-americano,
agindo a referida República em cumprimento de uma política do expansão
comercial, procurando garantir uma saída fácil e permanente para o Atlântico,
pelo Amazonas. O Território do Acre, tão rico em borracha, está isolado do
resto da Bolívia. Para vencer a insurreição que ali se deu, o Governo teve que
mandar, por via terrestre, as suas tropas, as quais, foram antes da luta, quase
todas dizimadas pelas febres palustres, que são mortais nas pessoas mal afeitas
ao clima. O Amazonas, que sonha a vida de comunicação mais rápida, pelo
Atlântico, não é acessível ao trânsito de forças militares, porque o Brasil não
consente.
Nada mais natural, por conseguinte, do que
procurar a Bolívia, dentro de suas conveniências, arrendar esses territórios a
quem possa se interessar por eles tanto ou mais do que ela, e conseguir franca
saída para o Atlântico por esse Rio Amazonas de tão complicada navegação. Não
cremos que o conflito tenha maior transcendência; não é difícil que acabe por
um Tratado Comercial. Como quer que seja, porém, repugnam sempre essas
concessões que trazem consigo o perigo da intervenção de poderosas nações
estrangeiras.
O tom da
imprensa americana afirmava-se por este editorial da “New York Tribune” de 25.06.1902:
Acre ‒ A controvérsia sobre uma concessão
mercantil americana no Acre envolve uma das regiões menos conhecidas do
Hemisfério Ocidental. Mesmo nos mais modernos mapas os Estados ou departamentos
do Amazonas, no Brasil, de Loreto e Cuzco, no Peru e de La Paz e Beni, na
Bolívia, estão marcados, em grande extensão, como “inexplorados” e as linhas dos limites e cursos dos Rios estão
indicados muito variada e vagamente.
As divisas das três Repúblicas encontram-se na
nascente do Rio Javari. Em rumo do Norte o Rio forma o limite natural do Peru
com o Brasil, mas nos rumos de Sul e Leste as duas linhas, entre o Peru e a
Bolívia e entre a Bolívia e o Brasil, não seguem acidentes naturais e são, ao
contrário, traçadas arbitrariamente.
Esta última, entre a Bolívia e o Brasil, corre
conforme o Tratado, em linha reta, da nascente do Javari até o ponto em que o
Beni e o Mamoré confluem para formar o Rio Madeira.
A este respeito parece que há motivo para disputa.
(OCS, n° 035)
Bibliografia
OCS, n° 35. O Território do Acre – Resumo
Histórico da Questão – Brasil – Cruzeiro do Sul, AC – O Cruzeiro do Sul, n°
35, 10.03.1907.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
·
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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