Quinta-feira, 26 de novembro de 2020 - 06h02
Bagé, 26.11.2020
Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LXV
Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ XVII
Ano de 1909
Em janeiro de 1910, o Ministro da Viação e
Obras Públicas, apresentou ao Sr. Presidente da República um Relatório sobre a
construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em que faz uma contundente
defesa dos empreiteiros afirmando que os mesmos estavam tendo prejuízos na
empreitada. Elaborado por um Engenheiro, funcionário do Governo Brasileiro,
encarregado de fiscalizar a construção e cuja função deveria ser de defender os
interesses do Estado e não dos Concessionários. Erram o funcionário e o
Ministro ao mencionar no relatório custos que ultrapassavam os de Contrato,
propondo que o Governo tome a iniciativa de socorrer os empreiteiros:
Os serviços de construção não
tiveram, como era de se esperar, um andamento regular durante o ano de 1909. O
mau estado sanitário de toda a zona fazendo baixar ao hospital um número
considerável de operários; a grande vazante do Rio Madeira dificultando
sobremaneira o transporte dos materiais vindos do estrangeiro e descarregados
em Itacoatiara; a má qualidade das terras em geral, demorando
extraordinariamente a solidez dos aterros, principalmente na estação chuvosa,
e, consequentemente, a pouca segurança da linha assentada, motivando
continuadas interrupções nas viagens dos trens de mercadorias, de materiais e
lastro, foram as causas principais da irregularidade do serviço de construção. Embora
a companhia tivesse conseguido por em trabalho, no meado do ano, cerca de 4.000
operários, o serviço por eles executado foi relativamente insignificante, não
correspondendo às grandes despesas efetuadas para transportá-los até Porto Velho,
porque, para tanto, houve necessidade de ser mantida uma corrente ininterrupta
de gente que subia contratada, a fim de ser compensada a deserção cada vez mais
acentuada do mesmo pessoal que, acossado pela moléstia e contristado pelo ermo
da mata, descia incessantemente em busca de outras paragens, onde a saúde
tivesse garantia e melhor aplicação os lucros auferidos em poucos meses de
trabalho.
Permanecendo assim por tão pouco
tempo em Porto Velho ou nas turmas acampadas ao longo da linha, esse pessoal,
alheio, na maioria, aos serviços de construção de estradas, não pode
absolutamente habilitar-se nos trabalhos que lhes foram confiados. Daí obras
morosas e imperfeitas e, por conseguinte, maiores prejuízos para a companhia. Raras
vezes terá sido construída uma estrada nas condições desta; felizmente, apesar
de tantos reveses, os seus construtores não desanimaram ainda, sentindo-se bem
fortes nessa luta contínua contra todos os elementos naturais. O terreno em
geral não é, como já disse, favorável à construção de estradas, por muito pouco
consistente. As grandes chuvas, por sua vez, atrasam extraordinariamente o
prosseguimento dos trabalhos, abatendo ou arrastando grandes aterros. O
escavador mecânico empregado pelos empreiteiros tem prestado reais serviços,
principalmente nos últimos meses do ano, quando a falta de braços se tornou bem
sensível.
A linha, que devia chegar em
setembro ao Jaci-Paraná, a 86 km do ponto inicial [Ponto Velho], só o atingirá
talvez em fins de fevereiro do corrente ano [1910], pelos motivos já expostos e
também pela falta de dormentes, que obrigou a companhia a contratá-los no Rio
de Janeiro e na Austrália, de onde espera um fornecimento de cem mil. Todas as
pontes têm sido construídas de madeira, de caráter provisório, devendo este ano
serem substituídas por metálicas.
A ponta dos trilhos já se
achava, em 31 de dezembro do ano passado [1909], no quilômetro 74, estando
nessa mesma época o leito concluído na extensão de muitos quilômetros além. Do
outro lado do Jaci-Paraná a linha está pronta em mais de 15 quilômetros,
devendo elevar-se a extensão concluída até o fim do corrente ano [1909] a 174
quilômetros, atingindo-se o Rio Mutum-paraná. Foram construídas durante o ano,
em Porto Velho, muitas casas para o pessoal superior que é numeroso.
Os trabalhos realizados até 31
de dezembro do ano próximo findo [1909] montam a quantia de 11.212:250$156,
sendo 7.516:086$172 de serviços executados e 3.696:163$984 de materiais
recebidos do estrangeiro.
Pensa o Engenheiro fiscal que os
primeiros 100 quilômetros desta estrada, contando como despesa deste trecho
todo o material rodante já recebido, o custo das instalações em Porto Velho, em
Candelária e no Jaci-Paraná, trilhos e outros materiais empregados no serviço
médico hospitalar desde o começo dos trabalhos, ficarão talvez em
15.000:000$000, à razão de 150:000$000 o preço quilométrico, devendo o preço
médio geral reduzir-se no final da construção a cento e poucos contos, não se
elevando o total da estrada a mais de 35.000:000$000, de acordo com o cálculo
aproximado apresentado pelo mesmo Engenheiro. (FERREIRA, 1959)
Ora o vencedor da concorrência levara em
conta, como determinara o Edital, o cálculo dos custos especificados pela
Comissão Pinkas cujo custo total atingira cifra de 8.736:716$312, (um quarto do
preço da empreiteira) e de 26:507$020 por quilômetro (menos de um quinto do
preço da construtora) e concordara com esses termos. Ontem como hoje, técnicos
e/ou políticos corruptos, aliciados ([1]) por
empresas, conseguem, através de artifícios de todos os tipos, aditivos ao
contrato que oneram os cofres públicos e o bolso do contribuinte.
Sendo assim, proporcionalmente
ao salário do operário que, em outra parte do país, não vai além de 3$500, e
ali nunca é inferior a 10$000, levando-se em conta as despesas de transporte e
prejuízos, esta será relativamente, a estrada de custo menos elevado construída
no Brasil. (FERREIRA, 1959)
O custo do operário era assunto interno da
construtora e que não cabia, absolutamente, ao Governo considerar em seu
relatório. Não era da alçada do Ministro e muito menos ao Engenheiro que
fiscalizava as obras da construtora sair em defesa destes.
O custo do quilômetro tem sido
de 3:100$000 para a exploração e projeto e 8:800$000 para locação, tais são as
dificuldades de transporte e manutenção de pessoal. (FERREIRA, 1959)
O contrato previa que o quilômetro de
exploração e projeto seria pago à razão de 1:500$000, metade do declarado pelo
Ministro, e o de locação 2:020$000, um quarto do declarado pelo representante
do Governo brasileiro.
Ano de 1910
Quando tratarmos da profilaxia quinínica, veremos que aqui também a praxes habituais não cabem na região do Madeira. É a formação da raça de hematozoário resistente à quinina. Daí a necessidade do emprego de altas doses no tratamento e profilaxia. (Osvaldo Cruz)
A construtora trouxe para região uma média
de 508 operários por mês de todas as partes do mundo. No dia 23.04.1910, um
funcionário do alto escalão do Ministério da Viação, enviou à Madeira-Mamoré
Railway uma autorização para o lastramento ([2]) da
linha. O lastramento não estava previsto no contrato e, portanto, não havia um
preço prévio contratado. A ordem não especificava o preço, caracterizando uma
grave irregularidade que resultaria, mais tarde, como não poderia deixar de
ser, em um grave escândalo patrocinado por agentes públicos.
No dia 31.05.1910, foi inaugurado o primeiro
trecho da Ferrovia, entre Santo Antônio e Jaci-Paraná, numa extensão de 90
quilômetros.
No dia 09.07.1910, chegam a Porto Velho os
doutores Osvaldo Cruz e Belizário Pena. Os sanitaristas permaneceram na região
por 28 dias onde tiveram a oportunidade de percorrer a linha férrea até o
quilômetro 113. Partiram, no dia 07.08.1910, para a Capital Federal, onde redigiram
um extenso relatório propondo diversas medidas que deveriam ser adotadas para
melhorar o estado sanitário da região onde estava sendo construída a Ferrovia.
No relatório entregue à Madeira-Mamoré
Railway, no dia 06.09.1910, constava:
Naturalmente o regime das águas
do Rio inundam as margens baixas do alto Madeira, formando os pântanos donde se
originam as aluviões de mosquitos que se vão encarregar de alastrar a endemia
malárica que é em função dessas precipitações aquosas. O Madeira atinge o máximo
da cheia em meados de março, alcançando as águas a altura de 96 metros, isto é,
14 metros acima do nível mínimo de 82 metros que é atingido na última quinzena
de setembro.
Como regra, se verifica que a
insalubridade da região começa pouco depois da vazante, quando as águas,
abandonando a terra, ficam em parte depositadas nas depressões dos terrenos,
onde se formam, então, pântanos que se estendem por quilômetros de extensão e
permitem a criação em massa dos anofelinos que se vão infectar nos impaludados crônicos
que habitam a região e vão disseminar extensa e intensamente a malária. [...]
Dominam na nosologia da região
as seguintes moléstias: o impaludismo, a febre hemoglobinúrica, o beribéri, a
disenteria, a ancilostomíase, a pneumonia, além de outras entidades mórbidas de
menor frequência e a que adiante aludiremos; acompanhando tudo o alcoolismo.
[...]
Dos anofelinos transmissores do
impaludismo só nos foi dado, na época que estudamos [julho e agosto], colher
duas espécies de Cellia, a alcimana e a argyrotarsis, sendo esta predominante.
Não encontramos outras espécies em Candelária, Santo Antônio, Jaci-Paraná, e em
outros pontos da linha em construção.
Mas se não avultam pela
variedade de espécies, assoberbam pelo número: no Jaci-Paraná, em um rancho de
palha onde havia quatro doentes, logramos fazer colher numa só noite para mais
de 100 exemplares de Cellia argyrotarsis. [...]
Naturalmente, à vista do que
vimos relativamente à topografia da região, não se pode em cogitar fazer já,
para facilitar a construção da estrada, os trabalhos de profilaxia regional que
quase custaria tanto, senão mais que a própria construção. Só podem ser tomados
em consideração os processos do método da profilaxia individual. [...]
Assim, se tivéssemos de fazer
profilaxia quinínica, teríamos de avaliar qual a dose mínima de quinina
suficiente para preservar o indivíduo dos parasitos inoculados pelos mosquitos.
Observações que fizemos, na região, mostram que esta dose, para ser profícua,
não deve ser inferior a 75 centigramas ou 1 [um] grama diário. Pessoas que
tomaram doses inferiores foram infectadas. Resta saber se essa prática de
profilaxia química exclusiva caberia à região. ”A priori” podemos dizer que não, e não porque em breve a raça de
parasitas já em via de imunização contra
a quinina estaria resistente a 1 [um] grama diário de quinina profilática,
o que levaria à necessidade de se elevar a dose profilática aos poucos até
atingir os limites da dose manejável. Ora, atingido esse limite, a dose
terapêutica estaria dentro da dose tóxica e ficariam os doentes no dilema de: morte por moléstia ou intoxicação pelo
medicamento.
Essas medidas precisam ser
postas em prática, já quanto antes
porque, em breve, ter-se-á formado uma raça de hematozoário resistente às doses
manejáveis de quinina e então a solução do problema quase que atingirá os
limites do insolúvel.
A procrastinação das medidas
será um crime de lesa-humanidade, permitindo maiores sacrifícios que os de
hoje: uma vida, e talvez dez inutilizadas por dia, e de lesa-pátria porque
transformará em zona inabitável um dos mais ricos sítios do planeta. (FERREIRA,
1959)
Bibliografia
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo
– Brasil – São Paulo, SP – Edições Melhoramentos, 1959.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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