Segunda-feira, 11 de maio de 2020 - 09h47
Bagé, 13.05.2020
Semanário Maranhense n° 23
São Luís, MA – Domingo, 02.02.1868
Jovita
(Continuação do n° 21, Páginas 03 a 05 )
III
Jovita, remetendo seu
filho a Alfredo d’Almada, conduzira tudo quanto possuía, e guiando sua mãe, no
estado em que estava, fugiu do lugar sem que se soubesse para onde!
Andara toda noite e no
dia seguinte quando ela e sua mãe chegaram a um povoado aí descansaram alguns
dias para seguirem só, no caminho da vida berrante! Nesse lugar a mãe de Jovita
fora atacada de febres que aumentaram de dia para dia em sua intensidade,
levando-a a sepultura.
Jovita ficara isolada
no mundo. No enterro de sua mãe ouviu falar em voluntários que iam bater os
inimigos da Pátria. Os paraguaios invadiam o território do Brazil e
barbaramente assassinavam as famílias que encontravam, provocando o povo à
vingança justa, e a punição merecida.
O espírito de
Jovita, abalado pelas diversas desgraças, que na mocidade surgiram-lhe,
inclinou-se para a Pátria, e seu coração, como que despertando no meio de seu
peito gelado, erguia-se alteroso pulsando animado pela Pátria ultrajada, que
invocava de seus filhos à mais santa das vinganças.
Como se o dedo de Deus
a tivesse indigitado, a mulher fez-se heroína; despiu os hábitos do seu sexo, e
envergou as roupas de soldado, que deviam levá-la à glória ou à morte.
Foi assim que Jovita
apresentou-se ao governo, disfarçada, com arte, em “Voluntário da Pátria”.
Com os cabelos
cortados, e não tendo as orelhas furadas, comprimindo os seios e disfarçando as
formas de mulher, soube iludir os recrutadores, e marcharia como homem, se, no
mercado, as mulheres curiosas, não desconfiassem que, os contornos do
voluntário eram arredondados e cheios como não são os dos homens, e esta
suspeita cresceu, tomou vulto e chegou ao Palácio.
Ali a verdade foi
patente, mas a mulher já era “Voluntária
da Pátria”! Tendo sido Jovita alistada no Corpo de Voluntários, o
Presidente, que acabou por aceder aos rogos da mulher-soldado, deixou-a seguir
como ela ambicionava.
Jovita andava de calças
brancas, botinas de couro preto, saiote de lã escarlate com corpete de pano
azul, finalizando com gravata de polimento. Um talim sustentando uma espada e a
patrona ([1]),
com destino aos cartuxos, era o correame que lhe apertava a cintura e
completava o uniforme.
Com este fardamento
misto, marchou a nova Joanna d’Arc, sendo no Maranhão muito festejada, em sua
passagem para o Rio de Janeiro. Jovita recebera aplausos e mimos, e à tudo ela
mostrava-se indiferente, como se maiores glórias a esperasse.
Em Pernambuco foi laureada,
apresentada como heroína e assim festejada chegou ao Rio de Janeiro, aonde a
sua fama a havia precedido, para preparar-lhe uma recepção condigna dela.
Jovita era disputada
pelos fotógrafos, como um fruto de perene riqueza, porque a sua celebridade garantia
a pronta venda de retratos da “Voluntaria
da Pátria”, da heroína brasileira. Por onde Jovita passava atraía a atenção
pública. A tudo era ela indiferente! De quando em vez, seus olhos lagrimavam de
saudade do filho, que enjeitara do seu coração de mãe!
A Junta Militar julgou
Jovita incapaz para o serviço da Guerra, mas no caso de prestar relevantes
serviços nos hospitais de sangue. Jovita empenhou-se para marchar e ir bater-se
com os inimigos da Pátria, atestou robustez, agilidade no jogo das armas e
coragem no momento do perigo, porém não conseguia abrir exemplas de mulheres
tomarem parte nas lutas dos homens. Desatendida pelo Governo Imperial, a pobre
mulher obteve a baixa, e reassumiram os vestidos e as saias o lugar que as
calças haviam usurpado por algum tempo.
O público de tudo
informado mostrou-se pródigo com a ex-Voluntária; benefícios nos teatros,
grandes e valiosos mimos, enriqueceram a pobre Jovita, que, reunindo algum
pecúlio, regressou ao Piauí, para trazer ao filho o fruto de sua gloriosa
resolução. A sorte de seu filho a incomodava, depois que vira Alfredo d’Almada
perdido para ela.
Jovita voltou ao Norte.
No Piauí indagou pelo Sr. Roberto d’Almada e foi ter com ele. Sem ser conhecida
pelo velho foi ela recebida:
‒ O Sr. Almada?
Disse Jovita.
‒ Sou eu mesmo, senhora, o que determina de
mim?
‒ Trago notícias de seu filho.
‒ Veio da corte?
‒ Vim do Maranhão, mas cheguei ali a pouco
tempo, de tornar viagem do Rio de Janeiro.
‒ Ah! viu meu filho? Ele estava bom, não é verdade?
‒ Não vi seu filho... Mas sou portadora de
uma carta.
A carta era de um amigo
de Roberto d’Almada, que trêmulo e sôfrego leu o seguinte:
Amigo Almada. É com
pesar que lhe comunico um triste sucesso. Vítima de uma congestão pulmonar,
faleceu no hospital de Corrientes seu filho Alfredo que...
O velho deixou cair a
carta e seus olhos eram duas torrentes de lágrimas, enquanto Jovita, de pé, com
os braços cruzados sobre o peito, parecia a estátua do aniquilamento! O velho
Almada caiu em sua poltrona e Jovita o consolou com palavras misericordiosas e
cheias de religião.
‒ Seu filho morreu, mas legou-vos um filhinho
não é assim?
‒ Sim, ele já havia partido quando recebi uma
criança, que, dizia-me sua mãe ser filho de meu filho.
‒ E aonde está essa criança?
O velho esgueirou-se e
apontou para o céu:
‒ Ali!
Jovita deu um grito
agudo e doloroso e caiu de joelhos aos pés do velho, que ela há pouco
consolava.
‒ E quem és tu que assim gemes, soluças e
choras de joelhos a meus pés?
‒ Quem sou eu? Já não vos disse esta dor que
sofro? Sou...
‒ Acaba!
‒ Jovita?
‒ Jovita!
Repetiu o velho, caindo
de novo na poltrona, enquanto a desventurada mãe fugia como um raio, levando a
dor e a desesperação no coração.
IV
Já não era Jovita a “Voluntaria da Pátria”, a heroína
brasileira, que regressou do Piauí ao Maranhão e do Maranhão seguia com destino
à Corte do Império, não; era a mulher cansada de sofrer, já sem esperança, sem
alento, sem amor enfim! Era a mulher entregue a vida reprovada, descrendo de
tudo e só tratando de disfarçar, por entre o rebuliço do mundo, as mágoas que
carpia no recanto de sua triste habitação! Ela afagava nas delícias da volúpia
seus infortúnios do passado. Sem pai, mãe e filho e possuindo meios que a
beneficência da Corte lhe proporcionavam, facilmente encontrou amigas do que
era seu, que com ela gastavam largamente.
O luxo fez, parte de
sua vaidade feminina, e os meios de o sustentar eram dispendiosos. Jovita
maquinalmente gastava o que tinha! Seu coração não batia no peito, alterado
pelo prazer de gozar deliciosos momentos, invejados de suas companheiras de
erro!
Fraca e tímida como
mulher, embora corajosa e audaz como “Voluntaria
da Pátria”, ela era como essas flores que vivem ao ardor do Sol, mas que no
fim da noite murcham e morrem.
Entrou Jovita na Corte
mais pobre do que havia saído, e abatida pela vida irregular que escolhera e
adotara. Na Corte, foi a Voluntária de outrora, morar em um prédio à rua das
Mangueiras, e sua casa enchia-se de admiradores e apaixonados.
Entre eles um inglês de
nome Guilherme Noot, engenheiro da Companhia “City Improvements”, que morava com seus companheiros na casa da
Praia do Russell, maiores provas lhe dava de amor!
Os não equívocos sinais
de amor britânico, que o filho de Albion dava a ex-Voluntária, despertou no
coração de Jovita esse sentimento divino, que pela primeira vez ela
experimentou no peito!
Foi Noot quem soube
tocar na corda sensível daquela alma, incompreensível para as paixões amorosas,
que só para sofrer e chorar tinha sido formada!
O amor por Noot
cresceu, no coração de Jovita, e, como primeiro amor, ele era cheio de
encantos, e de inexplicável doçura! A paixão acendida no peito da mulher
heroína, era ateada todos os dias com cartas amorosas, que Noot dirigia à sua
amada, ou com as expressões de ternura que em sua companhia prodigalizava-lhe.
Guilherme Noot, se não
amava a Jovita, queria possuir a mulher célebre. Os gozos de uma paixão não
sancionada pelas leis do himeneu, são a mais das vezes efêmeros, se não falsos.
Contudo, Jovita fruía as delícias do amor, que em seu coração germinara, e ela
erguera altares no peito para eterna devoção. Sem importar-se do futuro,
esquecendo-se do passado, ela só curava do presente, risonho o feliz, que Deus lhe
estava concedendo...
Quem nasceu para a
desgraça debalde luta com o destino, para escapar ao rigor terrível de sua
sorte! Jovita nascera predestinada por Deus para o infortúnio!
Um belo dia,
06.10.1867, Jovita recebeu de Noot, um bilhete em inglês, e não o sabendo
traduzir, julgou ser mais um, igual aos muitos, que dele sempre recebia, cheios
de protestos de amor, e dando-lhe esperanças de eterna felicidade.
‒ Ele me há de traduzir o que escreveu.
Dizia Jovita a uma
companheira, que morava com ela, e esperou pelo amante sem que nesse dia ele
aparecesse.
No dia seguinte Noot
ainda faltara a ir à casa de Jovita, e no dia 9, uma amiga da ex-Voluntária
entrou-lhe em casa:
‒ Então, minha amiga, ele deixou-te?
‒ Ele! Quem? disse Jovita espantada.
‒ O Senhor Noot.
‒ Talvez.
Respondeu Jovita já
incomodada.
‒ Mas porque me dizes isto?
‒ Porque ele seguiu para Inglaterra, no vapor
que saiu anteontem.
‒ Não é possível. Anteontem escreveu-me
ele... aqui tens o seu bilhete. É verdade que está escrito em inglês e eu não
sei ler o inglês...
‒ Pois, minha cara, o senhor Noot partiu no
vapor “Oneida”, e este bilhete é o de
sua despedida.
Jovita estava alterada
bastante, e os sinais de sua dor estampavam-se-lhe nas faces.
‒ Talvez não seja verdade.
Tornou a mensageira da
má nova, vendo o estado aflitivo em que Jovita se achava.
‒ Eu saberei tudo, tudo...
Jovita mandou chamar um
carro de aluguel, e vestida com todo o esmero, meteu-se no carro e disse ao
cocheiro:
‒ A praia do Russell casa n° 43.
O carro partiu, e parou
à porta da casa indicada por Jovita.
V
Jovita entrou na casa
que Noot habitara e encontrou a criada dos companheiros de Guilherme:
‒ O Sr. Noot?
Interrogou ela.
‒ O Sr. Noot, respondeu a criada, partiu.
‒ Partiu! Repetiu a infeliz Jovita.
‒ Findou o seu contrato com a Companhia “City Improvements”, e ele seguiu no
vapor “Oneida” para Southampton.
‒ E os seus amigos, aonde estão?
‒ Saíram.
‒ O quarto de Noot está ocupado?
‒ Pode entrar, deixou-o como estava.
Jovita entrou naquele
quarto, onde tantas vezes se julgou feliz. Tudo estava como no tempo de Noot, a
cama guarnecida com o mosquiteiro de cambraia cor de rosa, caído da cúpula que
estava suspensa no teto, a mesa de escrita no meio do quarto, e tudo ali deserto
e triste para ela!
Jovita escreveu uma
carta e tirou do bolso os bilhetes amorosos de Noot, meteu tudo em um envelope,
chamou a criada e disse:
‒ Esta carta farás seguir a seu destino. É
para o Sr. Guilherme Noot, como o subscrito indica, e que tu deves remeter para
Inglaterra.
‒ Sim, pode coutar que ela será enviada pelo
primeiro paquete.
A criada saiu com a
carta, e Jovita escreveu uma outra, guardou-a no bolso e depois meteu-se na
cama que foi do inglês... A criada quando voltou ao quarto reparou nas cortinas
do leito cerradas e foi a ele, abriu-as, vendo a amante de Noot deitada tendo a
mão direita sobre o peito esquerdo, ficou tremula.
‒ Grande Deus!
Exclamou a criada indo
buscar água de cheiro e aplicando-a ao nariz da ex-Voluntária. Quis levantá-la
e não podendo conseguir, correu a pedir socorro que de pronto chegou.
A autoridade e o médico
compareceram no lugar e encontraram a infeliz heroína completamente morta.
Jovita tinha enterrado no coração um punhal da aço fino! Verificou-se que a
lâmina, passando entre 4ª e 5ª costela, ferira ligeiramente o pulmão, indo
penetrar na cavidade esquerda do coração, dando a morte desejada! No bolso de
Jovita a autoridade achou a carta que ela guardara e um retrato de Noot. A
carta rezava assim:
Declaro que ninguém me
ofendeu, mato-me por motivos que só de mim e de Deus são conhecidos. Jovita
Feitosa.
A criada entregou a
justiça a carta que Jovita lhe dera para remeter a Guilherme Noot. Jovita
restituía a Noot seus bilhetes amorosos, e em sua carta desejava-lhe não
interrompida série de venturas e felicidades, enquanto que ela nada mais tinha
a esperar na terra.
A companheira da
habitação da infeliz Jovita depôs tudo quanto se passara em sua casa e declarou
que a suicida, antes do meter-se no carro, lhe dissera:
‒ Adeus até mais nunca!
Por estas palavras
irreligiosas vê-se que Jovita descrera antes de matar-se até da Vida Eterna! Os
sofrimentos desvairaram aquela desgraçada, digna e merecedora de melhor sorte.
O que resta agora da
Jovita infeliz? Da Voluntária admirada? Da mulher amante? Nada!
Em modesta sepultura
dorme Jovita o sono dos justos; e quando, porventura eu visitar aquela moradia
dos mortos, e deparar com a fria lousa que encobre os gloriosos restos da
heroína brasileira, descoberto e respeitoso contemplarei o seu nome inscrito no
mármore mortuário, dirigindo a Deus uma fervida oração pela alma de Jovita.
Maranhão, 1868. Sanas
da Costa. (SEMANÁRIO MARANHENSE N° 23)
Bibliografia:
SEMANÁRIO
MARANHENSE N° 23. Jovita – I –
Brasil – São Luís, MA – Semanário Maranhense n° 23, 02.02.1868.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H