O teólogo, escritor e professor brasileiro Leonardo Boff, referência internacional quando se fala em Teologia da Libertação e progressismo teológico, define o anúncio da renúncia do papa Bento XVI como "digna" e conta que ambos já compartilharam uma amizade. Ao ressalvar o respeito à pessoa de Joseph Ratzinger, porém, ele enumera críticas ao governante da fé católica, classificando o pontífice que anunciou sua renúncia como "um papa rígido", que provocou um atraso de 700 anos na Igreja, voltando-a a ideias próprias da Idade Média. Confira a entrevista concedida por telefone a Zero Hora:
Zero Hora — Como o senhor define o pontificado de Bento XVI?
Frei Leonardo Boff — Bento XVI prolonga a linha de João Paulo II, que era uma linha de reforçar a hierarquia da Igreja, reforçar a figura do Papa, reforçar a figura do bispo, do padre. E isso de manifestava com todos andando de hábito por aí e mostrando o poder. Ratzinger continuou nessa linha, mas ainda radicalizando, fechando mais ainda a Igreja. João Paulo II era um pastor, que, quando se encontrava com as pessoas, esquecia as doutrinas, se era muçulmano, se era africano, se era judeu, se era homossexual. Não importava, ele acolhia todo mundo. Por isso, era um pastor carismático, embora doutrinariamente não fosse brilhante, a tal ponto que a tese de doutorado dele em Roma foi rejeitada. Ratzinger é fundamentalmente um teólogo, e de teólogo foi guindado diretamente a cardeal sem ter passado pelos postos de bispo, arcebispo. Foi guindado a cardeal para presidir a ex-inquisição. E aí ele mudou totalmente, assumiu a doutrina como uma arma para enquadrar os teólogos. Durante os anos em que esteve à frente, ele condenou mais de cem teólogos, silenciando, proibindo de falar. Dois deles chegaram a pensar em se suicidar, tão desesperados que estavam, porque nem as razões das condenações eram dadas.
ZH — E a figura do Papa, como o senhor define?
Boff — Foi um papa rígido, que entendeu a Igreja como uma fortaleza cercada de inimigos que querem atacá-la pelo secularismo e pelo relativismo, e que ele tem de defendê-la de todas as formas. A forma de fazer essa defesa foi cortar o diálogo com toda a modernidade, com a filosofia, com a cultura moderna. Fez uma grande regressão na Igreja, fez com que a Igreja não fosse mais o lar espiritual das pessoas. Fez dela uma instituição patriarcal, machista, reacionária, que tem uma relação profundamente negativa face às mulheres, face aos homossexuais, face a toda a moral sexual, ao ponto de chegar ao extremo de obrigar os bispos africanos a pregar o não-uso da camisinha nas relações sexuais. Isso é criminoso, porque há países na África que não tiveram a diminuição da população. Então, pregar isso é ser inimigo da humanidade.
ZH — Houve, então, um retrocesso?
Boff — Ele ressuscitou uma velha tese medieval de que fora da Igreja não há salvação, em um famoso documento do ano 2000. Até escrevi três artigos no Jornal do Brasil o definindo como demo0lidor do futuro da Igreja. Ele ressuscitou essa ideia de que fora da Igreja não há salvação e que ela tem a exclusividade da revelação e que todas as demais Igrejas não são Igrejas, só têm elementos eclesiais — o que foi altamente ofensivo às igrejas. E os participantes das demais religiões da humanidade correm riscos, porque não são católicos. Agora, afirmar isso no mundo aberto, globalizado, é ofender as pessoas, atacar sua dignidade e a das suas religiões. E isso põe nele uma visão congelada da doutrina. O Cristianismo como uma fonte de águas mortas, e não uma fonte de águas vivas, que corta o diálogo com a realidade, que não suscita a esperança, que acompanha a humanidade sofredora. Ele quis construir a Igreja como um bastião de machismo, patriarcalismo, doutrinarismo, dogmatismo. Essa visão da Igreja levou a uma profunda crise e o esvaziamento. Muitas pessoas migraram da Igreja. Não deixaram de ser cristãs, mas não se identificam com a Igreja. Lamento que a Igreja, no mundo aberto de hoje, tenha chegado a tal situação.
ZH — O retrocesso iria até a Idade Média?
Boff — É, ele ressuscitou a ideia de que fora da Igreja não há salvação, é uma tese lá de 1.300. Portanto, são 700 anos de atraso. Isso é inadmissível teologicamente. Ressuscitou essas velhas teses, de uma Igreja fechada.
ZH — O que o senhor espera do novo Papa?
Boff — A esperança, agora, é que venha um papa que refaça a atmosfera fraterna da Igreja, que foi rompida, em uma Igreja cheia de tensões, brigas e acusações. Que se refaça o ambiente humano e cristão, que os cristãos possam sentir alegria da sua fé, que conviva com os demais, porque a mensagem de Jesus não é criar uma nova religião, é criar um homem novo, uma mulher nova.
ZH — O senhor conhecer o Papa. Vocês chegaram a ter uma relação de amizade?
Boff — Fui amigo dele a ponto de ele publicar minha tese em alemão. Durante cinco anos, trabalhamos juntos na preparação da revista Concilium, que saía 10 vezes ao ano em 11 línguas diferentes. Então nos reuníamos. E nos aproximamos. Em vez de fazer festa, como todos faziam, ele me convidava para uma caminhada. Conversávamos muito, trocávamos livros, ele apreciava muito a minha teologia. Depois, como cardeal, mudou. Ele me chama, ainda hoje, de "teólogo piedoso".
ZH — O senhor não o vê há quanto tempo?
Boff — Desde 1984.
Quinta-feira, 28 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)