Quinta-feira, 4 de julho de 2019 - 10h19
Elizeu Braga nasceu em 1985, na comunidade ribeirinha de Tacoã, na beira do Rio Madeira, em Rondônia. Atualmente vive em Porto Velho, capital do estado da região norte do Brasil, onde é poeta, performer, contador de histórias, ator da Beradera Companhia de Teatro e ativista cultural da Casa Arigóca, importante espaço cultural da cidade de Porto Velho, que desde 2013 promove lançamentos de livros, saraus, rodas de conversas, oficinas, dentre outras atividades.
O poeta beradeiro publicou dois livros editados artesanalmente: Cantigas (2015) e Mormaço (2016). Ambos estão ligados à oralidade ribeirinha da Amazônia e transformam-se em performances teatrais, individuais ou coletivas, que conjugam os recursos do próprio corpo, em particular a voz, delineando o perfil de performer contemporâneo com o qual se apresenta Elizeu Braga.
Na entrevista que segue, concedida por e-mail em novembro de 2016 a Vitor Cei (UFES) e Erlândia Ribeiro (UNIR), para o projeto “Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas”, Elizeu reflete a respeito de seu processo criativo e lança um olhar sobre a confecção artesanal de seus livros, discorrendo acerca de autores e aspectos das tradições literárias e culturais com as quais busca dialogar. Comenta, ainda, sobre a crise política no Brasil e compartilha com o leitor outras reflexões de ordem ética e poética.
Ao final, disponibilizamos três poemas do autor.
Esta entrevista foi realizada como atividade do projeto “Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas”, coordenador por Vitor Cei, com a colaboração dos professores André Tessaro Pelinser (UFRN), Letícia Malloy (UERN) e Andréia Delmaschio (IFES). O projeto é um esforço de mapear a produção literária brasileira do início do século XXI a partir da perspectiva dos próprios escritores.
Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer… Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade?
Então, acho que foi quando eu era menino, na vila de Tacoã onde nasci, aqui no Baixo Madeira, o universo das histórias cheias de realismo fantástico que minha vó, minha mãe e minhas tias contavam, os velhos que sabiam versos de cabeça, e faziam desafios no final do dia na beira do rio. Carreguei isso comigo pra cidade, a vida urbana que todos os dias se dedica a endurecer a gente, fui aprendendo a enxergar a poesia na cidade, porque nunca me desfiz dos olhos daquele menino assombrado que ao chegar na cidade teve de negar sua origem, sua memória, porque segundo os entendidos em progresso o ribeirinho é subdesenvolvido. A poesia me atraia porque eu lembrava daqueles poetas que através de seus versos me faziam enxergar o mundo, escrevi meu primeiro poema na sala de aula com 13 anos, eu estava triste, e escrevi como num transe, aquelas palavras que pareciam ferver dentro de mim, pus pra fora, então gostei, senti um alivio, parecia que a tristeza tinha passado ou já não era tão triste, a sessão de sentir que o mundo podia caber dentro de mim, então comecei a escrever como um doido, estudava em um colégio interno, andava com uma pochete cheia de poemas escritos à mão, e vinha uma vontade de mostrar e ao mesmo tempo um medo, mas eu mostrava, lia, e o pessoal gostava, e eu continuava. Um professor de português me aconselhou Manuel Bandeira, eu li, até então eu não era de ler, mas Manuel Bandeira me atravessou. Enfim, acho que essa resposta está muito longa, passei por muita coisa na vida, poesia foi algo que eu sempre pratiquei por teimosia, pensei que ia chegar um momento em que eu ia desencanar, arranjar um emprego e buscar ser alguém na vida, fui bastante aconselhado, mas fui teimando.
Você poderia explicar como foi o processo de criação e edição artesanal da sua obra Mormaço (Edição do autor, 2016)?
Esse processo coletivo, onde houve oficinas de confecções das capas em conjunto com o público, o que representou para você? O que foi mais significativo o resultado ou o processo como um todo?
Então, pra mim tudo é processo sabe, o resultado pode ser o processo de algo que ainda não iniciou e não o fim. Adorei compartilhar o processo do Mormaço, mostrar para as pessoas como é fazer um livro, como é mágico, e também prático. A proposta também vem com a ideia de mostrar para as pessoas, principalmente quem escreve, como elas podem produzir seu próprio livro. A ideia surgiu por conta do primeiro livro, o Cantigas, lançado em 2015. O processo artesanal das capas foi um pouco diferente do Mormaço, e durante a feitura do Cantigas eu pensei “o próximo livro vou lançar dentro de uma proposta onde eu possa convidar as pessoas a verem e participarem do processo”. Acho que compartilhar é uma das coisas boas que a poesia ensina pra gente.
Como você define a sua obra?
Em processo, caminhando, de essência inquieta, ligada na minha alma, minha memória, com indignação e amor-coragem.
Como você vê a recepção de sua obra?
Bom, estou bem feliz. Ano passado lancei o Cantigas, foram feitos trezentos livros. Já estão todos circulando, lancei na Arigoca, depois no Peru dentro do Colóquio de Literaturas Amazônicas, então fui para Balada Literária em SP e o livro foi indicado pelo site Livre Opinião entre os vinte e cinco melhores lançamentos de 2015. O Mormaço lançado esse ano [2016], foram feitos cento e cinquenta livros, que já saíram todos, preciso fazer mais. Estou feliz com a saída dos livros, a demanda de pedidos, mas ainda rola uma inquietação, eu preciso me organizar, produzir mais livros, distribuir, fazer parcerias, apresentar dizendo os poemas. Enfim, sou minha própria editora, isso me dá liberdade e também responsabilidade.
Como você vive o ato de recitar?
Pra mim é como um ritual sabe, como se eu pudesse evocar, chamar para fora o que está dentro de mim. A poesia é uma força imaterial que atravessa o tempo, quanto mais você se alimenta, mais ela pode mexer com você. O poema é uma maneira de registrar essa força imaterial, então tem o processo de colocar o poema dentro da gente, tem vezes que o poema atravessa a gente de uma vez só e parece que quer ficar morando no peito, ardendo como uma chama, e quando você declama, ele queima, acende, espanta, então tem todo um outro processo, de voz, corpo, olhos, é a força tomando conta, e o corpo vira um instrumento.
No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão?
Acho que são leituras, a poesia escrita, literária, sim, está distante do público, os livros, os autores contemporâneos, a literatura na escola virou uma matéria chata e o livro é muitas vezes um objeto de tortura para castigar o aluno e na academia parece que o povo se ocupa de cultuar os últimos pavões vivos. Mas eu acredito que a poesia é uma força que está na rua e também dentro de nós, o poeta tem de ser mais do que um escritor de poemas tem de ser um praticante da poesia e praticar poesia é propor maneiras, ações, é burlar o sistema engessado e propor medidas que se desloquem e dialogue com a realidade e saiba enxergar com sensibilidade onde é possível incendiar ou contribuir com uma mudança porque uma coisa é certa, tem de mudar o sistema educacional, tem de parar de ser um recrutador de zumbis, que vivem repetindo a ladainha da desesperança, as bibliotecas nas escolas tem de funcionar como um espaço de cultura, com oficinas de livros, rodas de leitura, conversa com autores, rodas de conversa sobre temas tabus, a literatura e as outras artes em geral servem para dar autonomia de pensamento ao indivíduo, porque mexe na sensibilidade, e esse sistema coloca a gente em um estado anestésico, para que possamos aceitar a tragédia como fatalidade e o convívio social como um campo de disputa, com isso não podemos ser omissos, e a arte não pode ter o mesmo papel de uma igreja, que é contribuir para o estado anestésico de alienação, a arte tem que ser questionadora e a poesia sem anestesia.
O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: O que você vê?
Tem muitos, né? Os que eu conheço, eu acho incríveis, inspiradores, pessoas com o discurso poético dentro da realidade. Vale a pena citar Marcelino Freire, Mel Duarte, Maria Rezende, Mariana Felix, Emerson Alcaide, Bob Baq, Eliaquim Rufino, Samuel Borges, Luna Vitrolira, Pedro Bomba, Allan Jones, Debora Arruda, Nicolas Nardi, Diego Moraes, Carlos Moreira, Alberto Lins, Joezer Alvarez, Binho, Dom Lauro, Angelica Freitas, Aline Bei, Carolina Rodrigues e muitos mais. Galera que tem uma pegada de alma na escrita e com isso acaba mexendo com o tempo, com esse, com o que passou e com o que vai chegar. E também vejo a galera muito na correria, produzindo o próprio trabalho, circulando, e propondo, participando das ocupações nas escolas levantando movimentos em periferia, não posso deixar de citar o Sergio Vaz e a Eliza Lucinda, verdadeiros guerrilheiros dos livros, da literatura, da poesia, poesia na prática.
O que mudou na (e para a) literatura depois da internet?
A distância, ficaram menores, o tempo parece que deu uma acelerada, acho que rola uma independência maior, os contatos entre os que escrevem, as pontes entre os estados, a internet é uma ferramenta revolucionária, olha essa nossa conversa, por exemplo. A internet é uma ferramenta, ainda estamos aprendendo como nos movimentar por ela, é importante aprender como potencializar a literatura e a leitura e a escrita através dela e as práticas poéticas.
A internet é uma ferramenta que conecta utopias, mas também difunde o ódio. E já tem um tempo que a internet pauta a televisão. Mas ainda rolam os embates das narrativas.
Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade?
Muito discurso de ódio não resiste ao vento da varanda de casa. Penso e tenho a esperança numa coisa, o movimento, a certeza que as coisas se movem me dão esperança de viver. E se existe uma certeza, é essa, estamos nos movendo. Mesmo parados, sentados, o planeta se movimenta, a luz muda, a gente sente e se mexe. Acredito que esse avanço do movimento fascista é uma reação ao avanço do movimento de descolonização. É o patriarcado rachando e o machismo ficando nu. A reação de um monstro se sentindo acuado é gritar e atacar.
Precisamos ver o livro como um objeto mágico, não como uma ferramenta de tortura. A poesia deve ser encarada como atitude. E a rua se pauta nas experiências revolucionárias. As batalhas de rima, as oficinas, os Slams, os grafites, o Hip Hop, os saraus e casas coletivas, a galera que se junta e ocupa as praças. Que estão propondo na prática o exercício de uma sociedade que se relacione bem melhor.
*
mormaço na flor na pele
no suor dos olhos o corre
daquela senhora que anda
pra cima e pra baixo
com aquela menina escanchada no ombro
com a cara aberta num sorriso
mormaço na fila dobrando a esquina da caixa econômica
o olhar que se perde numa lembrança de não sei o que
aqui pro rumo do norte é bem forte o troço
dizem que somos terceiro mundo mal educados
mal falados esquentados criadores de caso e sem memória
dizem que a cidade é de todos
só pra gente acreditar que ela é de ninguém
mormaço no pneu da bike encostando no asfalto quente
mormaço naquele tempo fora do ar do escritório
pra pegar a marmita e um suco de graviola
mormaço no rosto do pedreiro velho
que conhece a cidade como as marcas da mão
mormaço no suor escorrendo evaporando
um horizonte quente subindo do chão
quem escuta a voz da cidade
quem ainda acredita nas lendas dos deuses colonizadores
quem se senta pra escutar os contadores do desenvolvimento
demolidores que confundem lucro com sustento
eles que nem vivem aqui que nem moram aqui
ficam de longe porque não aguentam o nosso mormaço
tomando vinho as nossas custas olha já
escuta aqui tá me ouvindo
esse corpo aguenta é cachaça
minha coragem não fica de ressaca
esse calor me leva pra água
meus olhos enxergam o rio
os ouvidos escutam os pássaros
sou bem daqui onde minha memória costura
como essa gente acolhedora e cheia de esperança
que quando precisa sabe enfrentar o sol
*
Me chama de gay
pensando que tá
me humilhando
Pra que eu tome
um jeito de homem
Pra querer sujar
meu nome
quando me chama de gay
como quem vem debochando
olho nos teus olhos
com sorriso de que tô gostando
porque tô gostando
só tenho pena de você
assim se afirmando
ser chamado de gay
não me envergonha
me sinto mais humano
E fico forte, elegante
corajoso, bailarino
cozinheiro andarilho
feiticeiro trapezista
poeta mulher
flor sem nome
*
a cidade não tem rima mas tem muro
tem promessa de progresso mas nenhuma de futuro
a cidade é perna aberta pra quem chega de outros mundos
a cidade obedece a moda da roda dos imundos
que só faz ela apodrecer
esconde o que de mais bonito tem
potência no agronegócio arrebentando com a terra
e com quem nela se mantém
cidade empresarial
corta as árvores nativas
planta palmeira imperial
trucida os povos indígenas, trata o pobre como marginal
até ai tudo bem, nada de novo no fronte
a situação aqui é exemplo pra Belo Monte
região norte periferia do brasil
a amazônia do teu cartão postal já se destruiu
felizmente por aqui ainda existem guerreiros
e guerreiras que lutam
e são tantos quantos os dançarinos de boi bumbar
balas lhes perseguem na floresta mas só viram pauta
na imprensa popular
foi por isso que fiz essa toada pra poder na base da palavra
a força desses guerreiros chamar
e grita lá em corumbiara e no hugo chaves
a resistência e a luta
guerra contra os latifundiários
notícia que os grandes meios de comunicação
e o cacique do pmdb oculta
porque assim como um marighela
um professor do movimento camponês lutou
e assim como chico mendes uma bala em seu peito estourou
e gritam as comunidades na beira do rio madeira
que mantiveram sua fé e a tradição da cultura beradeira
ficaram em suas casas quando veio a grande alagação
os outros prejuízos trazidos pela destruição
das irresponsabilidades de projetos que produzem energia
pra outra região
a cidade segue explorada colonizada anestesiada
mas sonha sonha sonha com seus filhos que virão
não aqueles que buscam dela a riqueza
mas aqueles que por ela lutarão
[1] Doutor em Estudos Literários (UFMG). Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo e do Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal de Rondônia.
[2] Mestranda em Estudos Literários na Universidade Federal de Rondônia, escritora e autora de Superfícies Irregulares (Kotter, 2019).
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