Sábado, 17 de setembro de 2016 - 11h54
(artigo originalmente publicado na Carta Maior)
Existem frases que dispensam comentários e rechaçam desmentidos. Nesta quarta-feira (14/9), quando os jovens promotores da equipe do Ministério Público Federal, responsáveis pela Operação Lava-Jato, disseram que não há provas contra o ex-presidente Lula da Silva, mas sim convicção, ficou claro que o processo contra o político brasileiro está muito mais próximo da Santa Inquisição que da Justiça.
Os abusos e inconsistências apresentadas ao público pelo fiscal encarregado da Lava-Jato, o predicador evangélico Deltan Dallagnol tiveram o efeito de um bumerangue na opinião pública.
Fascinado e ofuscado pelas luzes da glória, o jovem e messiânico promotor cometeu erros jurídicos dignos de um menino pedante que não sabe sequer o endereço da escola de direito. O mais evidente e escandaloso desses erros primários foi ter dedicado a maior parte do tempo de sua exposição a apontar Lula como chefe de uma organização criminosa, o centro de um universo solar de corrupção, segundo ele.
Provas? Não há, nenhuma. Mas há convicção, como sentenciou um de seus também jovens assistentes. Baseadas em que? Em dados e indícios. Sendo assim, por que não denunciá-lo por formação de quadrilha? Silêncio.
A reação negativa foi imediata. Da conservadora Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a diários claramente comprometidos com o golpe institucional que destituiu a presidenta Dilma Rousseff (também sem provas e sem crime) e instalou o usurpador Michel Temer na cadeira presidencial, surgiram diversas críticas, com mais ou menos ênfase ao espetáculo circense oferecido pelo irresponsável e vaidoso promotor Deltan Dallagnol, que tenta projetar uma imagem de salvador da pátria, ao estilo do que a imprensa vem comprando ultimamente, mas que até gora vem mostrando um desempenho bastante desastrado.
Foi ele o autor, por certo, da mais grave e extensa de todas as ações cujo objetivo claríssimo é eliminar do cenário político brasileiro o mais popular dos dirigentes das últimas seis ou sete décadas. Entregou em bandeja de prata, aos detratores de Lula da Silva, um arsenal estrondoso.
Porém, ao mesmo tempo, sua oferta se mostrou uma faca de dois gumes. Era claro que Lula reagiria. Ao transformar seu discurso num feroz pronunciamento político, o pobre Deltan entrou num campo de batalha no qual ele é um torpe e risível amador, e onde Lula é insuperável.
É verdade que ele conseguiu fornecer munição aos que não podem superar Lula nas urnas eleitorais. Alguns, sem limites para a sua hipocrisia, usaram essas mesmas ferramentas para reforçar o discurso violento contra o líder petista. O senador Aécio Neves, por exemplo, um dos cabeças da manobra que resultou no golpe contra Dilma, foi um dos primeiros: logo após ouvir a emotiva defesa pessoal apresentada por Lula da Silva, reclamou da falta de algum tipo de confissão, de mea-culpa por parte dele.
Aécio se esquece que é ele, precisamente, um dos políticos mais denunciados nas delações dentro da Operação Lava-Jato. Claro que ele sabe que jamais deixará de contar com o manto protetor de um sistema judiciário absolutamente politizado, que o vem protegendo de ter que testemunhar, evadindo assim qualquer necessidade de confessar o que seja – e assim continuará sendo.
Dallagnol, em sua caminhada rumo ao trono de Torquemada, abriu as largas avenidas para que Lula pratique uma de suas especialidades mais conhecidas: o discurso da indignação. Ao denunciar também a esposa do ex-presidente, dona Marisa Letícia, o triste promotor permitiu que Lula se dirigisse ao seu público se apresentando não como um ex-presidente vítima de uma injustiça cósmica, ou como um dirigente político que tem que ser derrotado por seus adversários por qualquer método – já que no jogo eleitoral ele continua sendo favorito, como indicam as pesquisas.
Permitiu a ele falar como cidadão indignado. Lula contou as humilhações que vem sofrendo com as ações ilegais e abusivas da Polícia Federal, que atuou sob as ordens de outro membro da Santa Inquisição de Curitiba, o provinciano juiz de primeira instância Sérgio Moro. "Chegaram a revisar debaixo do meu colchão", contou Lula. "O que buscavam ali? O ouro de Moscou?". O ex-presidente também contou que se levaram os celulares de suas netas. "Eles não tem o direito de humilhar a minha família", gritou um Lula emocionado, que chorou um mais de um momento.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, outro dos cabeças do golpe, insinuou que a iniciativa do promotor Dallagnol talvez não tenha sido uma ideia brilhante: "é preciso analisar tudo com muita cautela". Talvez recomendando, com suas palavras, que se a Justiça tenha a mesma cautela com as denúncias contra o seu partido o PSDB, especialmente as que ocorreram em seus mandatos presidenciais, entre 1995 e 2002 – as que são muitas, e que, diferente das do PT e de Lula, vem sendo tratadas com cautela excessiva.
A hipocrisia chega a níveis olímpicos quando se recorda algo que Lula da Silva destacou em seu discurso de quinta-feira (15/9). Há dois anos, a Polícia Federal encontrou um helicóptero carregado com 400 quilos de cocaína. O veículo pertence ao senador Zezé Perrella, amigo pessoal de Aécio Neves, e seu aliado no golpe e em outros negócios não exatamente republicanos. O fato ocorreu meses antes das eleições de 2014, quando Aécio era o principal candidato da oposição contra Dilma Rousseff, e a total omissão do fato na mídia, além da não investigação do Ministério Público, que levou definitivamente a que terminasse em impunidade, ajudou a candidatura do tucano a chegar ao segundo turno, e ameaçar a vitória petista.
"Comigo, dizem não ter provas, apenas convicção. No caso do helicóptero havia provas, pegaram ele lá cheio de cocaína, o que não havia era convicção", fulminou um Lula da Silva em estado puro, com certa ironia ressaltando a diferença de tratamento por parte das investigações de um caso de outro.
O mesmo Lula, com a mesma indignação, advertiu os golpistas do Poder Judiciário: "se acreditam que esta história está chegando ao final, se preparem, porque está apenas começando". Tradução: Victor Farinelli
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