Segunda-feira, 1 de maio de 2017 - 13h55
No Cafezinho
Por Grijalbo Coutinho, desembargador do TRT 10
Os tempos difíceis nos arrebentam. Os nossos cumprimentos formais que afirmam estar tudo bem ao encontramos amigos e conhecidos é sempre precedido de inúmeras ressalvas. Afinal, como verdadeiramente declarar tranquilidade em uma época de contrarrevolução política em curso promovida pela classe dominante para tornar os ricos cada vez mais opulentos e os pobres dessa sociedade rasgadamente desigual ainda mais miseráveis? Ninguém vai calar o grito de que
“ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente eu grito em português”.
2016 foi o ano um do golpe, quando tudo ficou mais claro sobre os naturais ímpetos dessa gente ávida pela insaciável acumulação de riquezas. Estamos em 2017. Não podem continuar nos matando. 2016 precisa acabar, pois
“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”.
A classe dominante, por intermédio de seus prepostos e capatazes alojados nos três poderes e em outras instituições da República, sob o falso e tendencioso discurso moralista de conserto da corrupta engrenagem do sistema capitalista, especialmente na relação entre o público e o privado, usa e abusa de truques midiáticos para proteger corruptos golpistas e aniquilar conquistas históricas da classe trabalhadora brasileira.
Para tanto, vale tudo, incluindo o direito penal do inimigo e as presunções ou ilações contra os adversários, permanentes ou momentâneos, da “casta pura” protegida pela velha mídia amiga e sustentáculo de longa data da ditadura civil-militar de 1964-1985.
A história, contudo, não termina hoje. A história há de condenar os puritanos burgueses, clássicos falsos moralistas lacerdistas os quais não resistiriam a quaisquer investigações com métodos ou premissas semelhantes àquelas por eles utilizadas contra os seus inimigos. Na verdade, apenas como figura de linguagem e não como ato de violência,
“eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês”.
Realmente, são tempos de depressão política para quem guarda qualquer sentimento humanista ou humanitário, de golpes escancarados voltados para liquidar os direitos dos trabalhadores , aposentados, desempregados, servidores públicos, índios, negros, mulheres de luta e de tantos outras minorias políticas, bem como para entregar as riquezas nacionais.
Por outro lado, começa a despertar a consciência coletiva no sentido de que a tragédia brasileira iniciada em 2016 tem os seus reais propósitos cada vez mais evidentes. E isso posso concluir porque tenho
“Conversado com pessoas
Caminhado meu caminho
Papo, som, dentro da noite
E não tenho um amigo sequer
Que ainda acredite nisso não
Tudo muda!
E com toda razão”.
Além disso,
Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era novo jovem
Hoje é antigo, e precisamos todos
rejuvenescer”.
Não virá, contudo, a legítima reação sem destemor e sem contundente enfrentamento à antiutopia em curso no Brasil. É fundamental lutar, considerando que
“O que transforma o velho no novo
bendito fruto do povo será.
E a única forma que pode ser norma
é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer.
Nunca reverenciar”.
Como se a depressão política pudesse não ter fim, depois dos desatinos dos últimos meses, responsáveis pela tentativa de dilaceramento dos direitos humanos da imensa maioria do povo brasileiro, com o apoio ou omissão daqueles para os quais o Estado Democrático de Direito somente vale para o capital, nos chega hoje a notícia do falecimento ocorrido ontem, dia 29 de abril de 2017, de irrequieto poeta e destacado músico da MPB, do filósofo cearense Belchior, tragado pelos efeitos do modo de vida da sociedade burguesa em sua fase ainda mais individualista, consumista, de reduzida solidariedade humana ou de pouca sociabilidade, da descartabilidade humana, da valorização do fútil e do inútil e da sacralização do mundo “do ter” e das aparências globalizadas .
Belchior, mais talentoso cantor cearense de todos os tempos e um dos maiores do Brasil, uma espécie de filósofo nietzschiano da música popular brasileira, por que nos deixastes tão cedo ou por que desaparecestes do cenário há quase uma década? Havia prometido que irias ao teu primeiro show em qualquer lugar do mundo, quando desse um chega para lá na maldita depressão.
Por isso, hoje, dia 30 de abril de 2017, deprimido politicamente, chorei ainda mais ouvindo as tuas lindas canções. Choro a tua morte precoce, bem como assim chora o meu filho que é aprendiz de músico, que tem 23 anos de idade, admirador de sua qualidade musical desde criança.
Nesse momento de dor de uma comunidade valorizadora da música como instrumento da arte de rebeldia das minorias políticas, especialmente por parte dos jovens cearenses de outrora que protestaram, enfrentaram a ditadura, namoraram e amaram ouvindo e cantando Belchior, nos anos 1970 e 1980, somente nos resta agora ouvir ainda mais o filósofo de Sobral, lutar contra o golpe e pelo restabelecimento do Estado Democrático de Direito, fazendo uso de seus versos, tal como consta das estrofes antes destacadas e do término da presente mensagem, texto para além de piegas, senão expressão de sentimento verdadeiro do autor de melancólica homenagem quando um de seus ídolos musicais se vai:
“Não cante vitória muito cedo, não.
Nem leve flores para a cova do inimigo,
que as lágrimas do jovem
são fortes como um segredo:
podem fazer renascer um mal antigo”.
É hora do luto por Belchior. É hora de luta contra o golpe e os golpistas!
* Grijalbo Coutinho, cearense, desembargador do trabalho do TRT 10 (DF e TO).
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