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Gente de Opinião

Luciana Oliveira

Comamos galinha no réveillon!


 
O título contraria uma das simpatias de virada de ano que o brasileiro acumulou na convivência com vários povos e tradições e que tornaram nosso país multicultural. Não é só um costume que marca o dia 31 de dezembro por mero aspecto cronológico, mas por uma tradição que se repete no tempo histórico. 

Na ceia de réveillon a orientação é comer peixe, pois esse não dá ré. A superstição de se evitar comer galinha, bicho que cisca pra trás, mau presságio, sinal de retrocesso na vida pessoal ou profissional, correu de boca em boca e ocupa o imaginário até dos mais incrédulos. A penosa escapa da ceia não por mera superstição, mas por hábito e, hábito muitas vezes a gente simplesmente segue quando uma maioria pratica simultaneamente. 
 
No réveillon que passei em Madri comi 12 uvas, uma a cada baladada, crente que a doçura de cada uva indicaria como seria cada mês. Todo mundo estava comendo, então comi. Nesses séculos todos de babaquice de simpatia de fim de ano devia ter evitado a lentilha que sugere fartura já que aumenta de tamanho quando cozida. Como gosto de farofa de lentilha, sempre viro o ano mais inchada, mas só fisicamente.
 
O branco, uso pra transmitir paz e me purificar mesmo cercada de quem passa a noite falando da vida alheia e naturalmente, fazendo o mesmo. Perder a cor nunca me blindou de chatos e desiludidos e pelo jeito num ano de crise política é que não escapo mesmo.
 
Por que então comer galinha na ceia? É a simpatia que sinceramente gostaria que desse certo nessa virada de ano. Um evento sobrenatural que fizesse todo mundo regredir no tempo só pra corrigir na cabeça coisas que não imaginei ver num ano marcado por intolerância e apologia ao ódio e à violência.
 
Nesse aspecto desejo que todos retrocedam, porque sentimentos bons que nos uniam num gradual e lento avanço democrático foram corrompidos numa guerra estimulada, midiática e partidária. Quem foi pra rua pedir intervenção militar, coma galinha! Quem praticou racismo, xenofobia, homofobia, discriminação social e intolerância religiosa nas redes sociais, coma galinha! 
 
Nesse ano insanamente marcado pela disseminação do ódio coletivo, pelo sadismo virtual de propagar ofensas por cor, credo ou religião, pelo avanço de uma turba parlamentar fanática que usa a religião como imã, gostaria que todos retrocedessem ao estado mais puro de convivência que experimentaram antes de 2015.   
 
Se é pra apostar em simpatia, comamos galinha pra retroceder a um ano em que se propagou a estupidez da violência como forma de diálogo e pra impedir a banalização do mal a que Hannah Arendet tanto se referiu quando escreveu sobre o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, em 1963. Imagine uma judia alemã escrever qualquer coisa que insinuasse compreensão a um funcionário público que alegava somente ter cumprido ordens nazistas. Hannah fez isso numa série de cinco artigos para a The New Yorker e foi golpeada duramente, para o que chamou de assassinato de caráter de quem ousa pensar e dizer o que pensa. Protejam-se! Assumam o compromisso de pensar pra não serem contaminados pela banalização do mal.
 
Em seu famoso discurso numa universidade, Hannah pontuou com o cigarro na mão que “tentar entender não significa perdoar”. Segundo ela, o mal não estaria na pessoa, mas num sistema dominado por pessoas que banalizam o mal, que deixam de pensar para cumprir ordens de um grupo social ou do sistema como um todo.
 
Então meus caros, comamos galinha para em 2016 dar passos em ré e recuperar o que perdemos de pureza sob a influência maligna do sistema que nos mandou odiar quem pensa diferente do que pensamos.
 
Não nos recusemos a ser pessoas que pensam, sob pena de cooperarmos com o mal, como Arendt ousou alertar no auge do colapso nazista.
 
“Desde Sócrates e Platão, que geralmente se referiam ao pensar como o diálogo silencioso travado consigo mesmo. Ao recusar-se a ser uma pessoa, Eichmann abdicou totalmente da característica que mais define o homem como tal: a de ser capaz de pensar”.
 
Sobre o mal que Eichmann praticou, foi enfática ao afirmar que sob o domínio de mentes maldosas, naturalmente ele também foi mau. “Consequentemente, ele se tornou incapaz de fazer juízos morais.”
 
 
Luciana Oliveira 
Empresária e jornalista

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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