Sábado, 11 de junho de 2016 - 07h17
De cara pintada contra Collor, aos 17, de cara limpa contra Temer, aos 41.
Por por Eliane Trindade
A História bateu mais uma vez à porta de Cecília Lotufo, 41. Musa dos “caras-pintadas” que ajudaram a apear Fernando Collor da presidência em 1992, a administradora de empresas paulistana virou uma pedra no sapato de Michel Temer.
Ela se juntou a um grupo de vizinhos do bairro de Alto de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, para uma série de protestos na praça Conde de Barcelos, endereço paulistano do presidente interino.
Vinte e quatro anos depois de ir às ruas contra o “Caçador de Marajás”, lá estava a versão adulta da ex-aluna do colégio Oswald de Andrade na praça dançando a “Quadrilha do Temer”, no domingo, 29 de maio.
Cecília era uma das dezenas de moradores da região que entoavam uma paródia da canção “Pedro, Antônio e João”: “Com seu amigo Jucá/Temer resolveu tramar/Vamos fugir da Lava Jato/Dando golpe parlamentar”.
A mobilização da vizinhança começou uma semana antes, quando, em 23 de maio, um grupo menor fez uma serenata no local com cartazes de “o golpe mora ao lado”.
Cecília puxava a valsa endereçada à mulher de Temer: “Marcela, abre ao menos a janela/hoje a noite está tão bela/Sem o Temer por aqui/ És bela, recatada e do lar/Estamos aqui pra te falar/Que o golpe vai rachar…
Na madrugada fria, Cecília vestiu um pulôver lilás para protestar pelo fato de na noite anterior policiais terem dispersado a jatos d’água manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto acampados nos arredores.
O ato foi uma reação também a posts na página Alto de Pinheiros Quer Paz no Facebook, quando moradores do bairro de elite se mostraram indignados com a invasão de “vândalos”.
“Olha, o que tá chegando aqui!”, “Tomara que a polícia tenha muito estoque de bala”; “Bala de borracha é pouco” eram alguns dos comentários que levaram Cecília e outros vizinhos para a linha de frente.
“Nosso bairro também tem uma outra cara. Tem um lado reacionário, mas tem outro que acha Temer um golpista e que os movimentos sociais podem se manifestar”, diz a ex-cara-pintada, que lidera outros movimentos em Alto de Pinheiros.
O grupo planeja uma cerimônia para rebatizar a área verde em torno da casa do presidente interino de “Praça do Golpista”. O local está cercado de grades e tem policiamento 24 horas para garantir a segurança da família do presidente interino.
A ex-cara-pintada que entrou para os livros de história com a face escrita de batom agora se coloca de cara limpa na fileira dos que são contra o impeachment de Dilma.
A seguir, trechos de uma entrevista em que Cecília fala sobre as manifestações do passado e de hoje, a decepção com Lula e a constatação de que não será apenas tirando presidentes do poder, na base do “Fora esse ou aquele”, que o Brasil se transformará de fato.
DE VOLTA ÀS RUAS
“Resolvi ir para as ruas em 2013 quando comecei a ver a polícia agindo com truculência contra os manifestantes.
Também fui a manifestações pró-Dilma mesmo não tendo votado nela. Temos uma realidade diferente daquela do Collor. Não há de fato denúncia contra Dilma. Esse impeachment de agora fere a nossa democracia.
Por mais que eu esteja brigando para a presidente voltar ao poder, ela não representa o que eu penso. Dilma fez alianças com o PMDB e nem assim tinha força para modificar nada.
Pessoalmente, eu sinto um grau de desespero: pra onde vamos? Vejo conquistas sociais indo para o buraco de forma autoritária.
VIZINHO X VIZINHO
Na primeira vez que fomos para a frente da casa do Temer, éramos uns 50. Na segunda, umas 200 pessoas.
São manifestações pacíficas. A polícia fica lá assistindo, afinal não pode nos expulsar. Somos moradores.
Na primeira vez, a gente recebeu a sogra do Temer. Ela veio dizer que o neto estava doente e precisavam comprar remédio. Deu no jornal que choraram. Não foi nada disso.
DECEPÇÃO COM O PT
Meu primeiro voto para presidente foi para o Lula em 1994. Mas ele foi uma decepção, embora não tenha sido ruim como presidente.
Foi que mais fez coisas boas pelo país, mas também fez conchavos desde a campanha. Se não fosse assim não seria presidente.
Depois de 13 anos de PT no governo, a sensação é de perder tudo [as conquistas sociais]. Adiantou fazer tantas alianças? Não tem governabilidade possível quando se alia a um inimigo.
SEMPRE MILITANTE
Estou na minha vidinha, mas faço muita coisa em prol da sociedade. Fundei uma ONG, o Instituto Kairós, e o Movimento Boa Praça, no Alto de Pinheiro e Lapa.
Faço parte do Conselho Participativo Municipal na gestão Haddad. Somos eleitos para um trabalho voluntário. Aposto sempre nesse diálogo poder público e sociedade civil, sem CNPJ no meio.
Tenho essa coisas de “startar”, depois vira coletivo. Foi o que aconteceu com o Instituto Kairós.
No ano passado, me posicionei contra o “Fora Dilma” e um blog chamado Coturno Noturno me acusou de ter recebido dinheiro de editais do Governo Federal.
Uma mentira deslavada, pois há dez anos não faço mais parte da ONG, que tem um trabalho muito legal. O MBL [Movimento Brasil Livre] compartilhou: “Cecília Lotufo embolsando dinheiro e falando bem da Dilma”. A coisa viralizou, recebi ameaças. Foi surreal.
CORRUPÇÃO
A Lava Jato está fazendo o seu papel. É fenomenal que as apurações tenham colocado os corruptos das construtoras em cana. Os intocáveis estão atrás das grades.
Não sou petista e não questiono que existam culpados dentro do partido. Mas a sociedade perde com esse propósito de acabar com o PT. E os outros partidos? Foi um jogo de poder. Eles [a oposição] foram bem inteligentes e voltaram ao poder.
NA POLÍTICA
Já pensei em me candidatar, mas desisti. Não sou filiada a nenhum partido.
Sou eleitora do PSOL, mas não me sinto acolhida a ponto de me lançar candidata. A gente está carente de lideranças. Tem a Rede, o Raiz [lançado por Luiza Erundina]. São interessantes.
O QUE ESPERA
É difícil estar sempre lutando para tirar alguém do poder. É necessário fazer algo acontecer a partir dessa briga de “Fora esse ou Fora aquele”, o que não vai trazer necessariamente o que o país precisa.
Precisamos abrir um ciclo propositivo, realizar reformas estruturais. São tantas: a política, a do judiciário, a tributária. Temos que mexer em muita coisa.
ACABOU EM PIZZA
Estou com 41 anos, sou casada e tenho dois filhos. Virei empresária há quatro anos quando abri uma pizzaria.
Na época dos caras-pintadas, com 17 anos eu não tinha muito noção da dimensão que aquilo ia tomar. A gente sempre tem condição de fazer parte da História. Só precisa se inserir no mundo e se posicionar.
IMAGEM HISTÓRICA
Éramos uma junção de vozes, mas uma gritou mais alto. A imagem virou ícone. Um dia, Linete, que trabalhava na casa da minha mãe, me disse que a filha tinha me visto em um livro da escola.
Fui percebendo a responsabilidade ao longo do processo. Lutava com o propósito de tirar um presidente do poder e me questionava: Quem eu represento? Nunca me vinculei ao movimento estudantil. Não me sentia representada. Já tinha muita briga política, de poder.
SER OU NÃO SER MUSA
Eu negava o título de musa. Até que meu pai me deu um toque: “Aceite, são as pessoas que estão te colocando nesse lugar”. Demorou um tempo para eu assumir que tinha um papel, com esse nome meio besta, de musa.
O mundo precisa de ícones, mas eu questiono isso. O que vai transformar é o coletivo, é o indivíduo conectado.”
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