Segunda-feira, 31 de julho de 2017 - 05h21
Das noites de serestas, dos vesperais de carnaval, dos românticos, boêmios e seresteiros, das paqueras e dos babados fortes
Por: Altair Santos (Tatá)
Antes da metade dos anos 70, a esquina das ruas José de Alencar e Almirante Barroso exibia erigido e sombrio em cinza opaco, quase tez do umbral, um casarão de madeira sobre palafitas num terreno sazonalmente seco e molhado, era o Clube Imperial. Sem pintura, com enormes janelões quase sempre fechados, e de aparência tristonha até, quem viu e viveu sob a tênue luz do salão real da plebe portovelhense, bem sabe que aquela silenciosa quietude era só de dia porque à noite, nos fins de semana e, a priori, na ebulição do carnaval em pleno frenesi da quadra de momo, era exatamente ali que o cão chupava manga!
O proprietário do Imperial era o pacato senhor Geraldo Siqueira, o conhecido “Alumínio,” trabalhador da EFMM, pai da Olga (dona do Bar da Olga na Campos Sales) e também do Eliezer e do Silva, jogadores do Botafogo local e do caçula da família o “bem comportado” Arlindo que colecionava os cândidos apelidos de “sócio” e “bem-te-vi.” Aos sábados de manhã cedo, Seu Alumínio levava a reboque mais de dez garotos do Triângulo que ao sabor de guaraná, bolacha e doce e recebendo alguns trocados, faziam a faxina do clube.
Varrer, passar pano, encerar e polir as largas e espessas tábuas do assoalho, lustrar mesas com óleo de peroba e perfumar os banheiros com dúzias de bolinhas de naftalina, era parte do ritual sagrado da lavagem do Imperial para deixá-lo nos trinques afinal, mais tarde, casais de notívagos lá deslizariam performáticos em macios rodopios, fosse num bolero, valsa, foxtrot ou samba-canção até quase o sol nascer, isso se a paz reinasse intacta, o que nem sempre era possível.
O Imperial era tido como a antítese, o avesso da etiqueta social cuja grife ou padrão refinado e luxuoso tinha representatividade no glamour do Bancrévea Clube e outros de igual padrão na região nobre da cidade onde desfilava a classe média alta local, às vezes, plagiada no vestir, no falar e outros hábitos copiados por emergentes enxeridos (os bicões) que davam “baroas” nos homens da portaria e, disfarçadamente, se infiltravam “pra tirar onda” no meio magnata.
Talvez por sua instigante proposta de ser e existir, no Imperial se revezava um público heterogêneo, inclusive alguns quase infalíveis “bancreveanos” também ávidos pelo inebriante e sedutor aroma da vida noturna. Para esses irrefreáveis do sereno o relógio, os ponteiros e as horas de nada importavam pois suas bússolas de orientação eram o anoitecer e o amanhecer. No clube do Alumínio predominava a casta de baixa renda, apartada do formalismo e da exegese aristocrática. Esse público ali transitava feliz da vida, se divertia com a música, as paqueras, a dança, a bebida e até com os costumeiros sambas de pau que começavam no salão e tinham desfechos na parte externa do clube, num charco que em dias de chuva ensopava os pés das palafitas e deixava fétido e lambuzado quem, por azar, no calor das pelejas, ali fosse atirado.
Nas rodas de fofocas esses “sapecas iaiás” eram resenha pra semana toda já que, após o “grand finale,” alguém era gentil e elegantemente transportado na “manduquinha” até a central de polícia, isso quando não ia direto ao Hospital São José fazer reparos emergenciais, ou seja, lanternagem e pintura nas fuças e outras partes da sofrida carcaça física, avariada pela surra.
Nesses entreveros sobressaía o “macaco velho” nas vestes e matéria do malandro experimentado quando, em vias de apuros, debulhava com maestria a sua “expertise” de exímio brigador de rua, hábil e desenvolto em desferir pernadas e socos certeiros, além de esquivar-se com a leveza de um mestre-sala ante a contraofensiva dum oponente que se valia do recurso sempre surpreso e traiçoeiro do golpe de peixeira ou navalha. Essa proeza se dava sem o malandro, sequer, ter o linho amarrotado (os que usavam linho), ou mesmo deixar o cigarro lhe escapar o canto da boca ou empoeirar o bico fino do “passo double” e seu brilho impecável, dado por engraxates do centro da capital.
Quando “a luz ia embora” (blackout) em meio ao baile, era a senha para os rapazes afoitos “acochar” as meninas e proporem acordos que iam de pedidos de namoro aos enxerimentos mais ousados nas madrugadas. Certa noite, num baile romântico, apareceu um “abirobado” que “não comia nem morcego…” Ele passou a metade da noite esperando a luz apagar rodando o salão só de olho, “mancuricando” uma moça da qual ficara “a fim.”
Quando se fez a treva o leso de libido em alta investiu mas errou o pescoço da moça e, carinhosamente, se atracou ao Geraldo Paquinha um “maluco beleza” da época que, estava umas duas léguas além de “lombrado” e acabara de chegar das afamadas e misteriosas vielas do Mocambo. Resultado: mesmo acima das nuvens, em viagem interplanetária e apesar do breu ambiente, o Paquinha desceu o cepo no tarado da escuridão, prostrando-o, em meio a gritos e faniquitos do povo assustado com o babado forte e omisso aos olhares.
Assim que “a luz voltou” a vítima ainda estendida no chão fora identificada: era um inexperiente recruta do 5º BEC que provou do traquejo e manha do descolado “moleque atrevido, mais que bandido, criado no areal e coisa e tal,” como melodiosamente professado no samba do poeta Dadá (o amigo Adaídes Batista).
Tão logo soube da sova no jovem soldado raso, um pelotão que estava à paisana zanzando pela Praça Rondon se deslocou até o Imperial decidida a, impiedosamente, destroçar o Paquinha. Esperto e conhecedor da geografia, segredos e mistérios da região o agressor “vazou” indo entrincheirar-se sob a proteção das almas detrás das sepulturas do Cemitério dos Inocentes, tendo à mão não um terço e um cotoco de vela, e sim, uma “meiota de cachaça Januária” e uma manga verde colhida ali mesmo. Com o tempo lá fora em densas nuvens, o Geraldo Paquinha pernoitou no Campo Santo recostado ao mármore da sepultura do dentista kaiser de Melo, ouvindo a orquestra tocar ao longe. Ali ele adormeceu e só saiu quando uma sentida família em alaridos, bem cedo, chegou pra enterrar um ente querido.
Nossas primeiras incursões ao Imperial, o palácio festivo, se deram quando o clube minguava seus eventos. Na época já havíamos sido aprovados com louvor, na arte de beber cerveja nos botecos do eixo Triângulo-Mocambo-Areal. Ainda “de menor,” contávamos com o quebra-galho e vistas grossas dos porteiros que nos fraqueavam o acesso ao salão junto a outros rapazotes, como nós, debutantes e curiosos da boemia alta patente já notável e transbordante nos ases da noite, dentre estes, Bainha, Cabeleira, Leônidas O´Carol Chester, Eliezer Santos (o Bola Sete), Osires Lobo, Câmara Leme e outros mestres de tão nobre arte.
Eram doces e alegres os vesperais de carnaval, eram inesquecíveis as danças de rosto colado e as paqueras, as noites de serestas guardavam o incrível efeito da luz negra, novidade tecnológica que fazia o milagre de embelezar feios e afear bonitos e claro, era impagável assistir os boêmios incorrigíveis e malandros de moral na professoral prática da “boemias operandi.”
O Imperial é uma dentre as tantas poesias locais, cuja rima tem o tempero da portovelhice plural e miscigenada mas que aos poucos some aos olhos e à lembrança quando dobramos a esquina do futuro e deixamos para trás, solta e trêmula a mão da história. Este legado é partícula de um temário e inspiração que vinha da franca movimentação de um povo que vivia a cidade, seus valores e suas coisas, feliz do melhor jeito e maneira.
No Imperial grandes cantores, exímios e sensíveis músicos, desfilaram seus dons escrevendo no pentagrama do tempo e borrifando no véu das noites o embriagante éter musical de uma história que guarda mais, muito mais fragmentos desse ouro cultural a ser garimpado para a cena e registro memorial.
tatadeportovelho@gmail.com
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