Quarta-feira, 1 de novembro de 2017 - 08h02
Crítico da chamada economia do compartilhamento, autor britânico-canadense destrincha em livro o lado ruim de empresas como Uber e Airbnb
Na Carta Capital – Um dos maiores estudiosos (e críticos) dos problemas causados por empresas baseadas no Vale do Silício, o britânico-canadense Tom Slee tem dedicado especial atenção àquelas da chamada “economia do compartilhamento”, como Uber e Airbnb.
No Brasil, após protagonizarem diversos duelos jurídicos e retóricos contra taxistas, a atuação da Uber e da Cabify serão analisadas pelo Senado Federal, cujo objetivo é regulamentar os polêmicos aplicativos de transporte individual pago. Entre as mudanças propostas estão o estabelecimento de vistorias periódicas nos veículos e a adoção de uma licença específica para o veículo rodar.
No Brasil, estima-se que existam 500 mil motoristas de Uber em atividade, dez vezes mais do que o número registrado em outubro do ano passado. Ao menos 17 milhões de brasileiros utilizam o app mensamente.
No recém-publicado no Brasil Uberização: a nova onda do trabalho precarizado (Editora Elefante), Slee explora como a bilionária plataforma de “caronas” evita o pagamento de impostos e sua contraparte de aluguéis de temporada atua na gentrificação de algumas cidades, tornando mais rentável para os proprietários cederem casas e quartos para turistas do que para residentes, encarecendo o aluguel de forma geral.
Com uma longa carreira na indústria de softwares, Slee tem PhD em química teórica e pós-doutorados pelas universidades de Oxford e Waterloo. Confira a entrevista:
CartaCapital: A chamada “economia do compartilhamento” começou com grandes promessas, como uma maior equidade e sustentabilidade. Por outro lado, seu livro explora uma outra face de empresas como Uber ou Airbnb. Na sua visão, quais são as principais limitações das empresas que atuam na economia do compartilhamento?
Tom Slee: Sim, as promessas pareciam ótimas. Usar a Internet para promover o serviço peer-to-peer – pessoas colaborando umas com as outras, como uma alternativa a confiar em corporações para que elas cuidem de nossas necessidades – soava como uma proposta interessante para pessoas como eu, que se identificam com a esquerda. E a promessa de sustentabilidade por meio do uso de ativos sub-utilizados (como carros) também é emocionante.
Mas, a cada sucesso da indústria da economia do compartilhamento, (principalmente taxis e aluguel de quartos desocupados) vemos a ascensão à proeminência de uma nova empresa global (Uber e Airbnb). Elas utilizaram suas plataformas na internet, mas também as utilizaram para evitar serem responsabilizadas e para empurrar os custos do negócio para os usuários da plataforma e para a comunidade onde operam, evitando o pagamento de impostos.
Em vez de promover a igualdade, muitas empresas da economia compartilhada estão promovendo uma forma desprotegida e vulnerável de trabalho mal remunerado, e as promessas de sustentabilidade acabaram se revelando vazias.
CC: Você escreveu que a economia compartilhada prosperou ao desregular áreas de nossa vida cotidiana antes protegidas pela legislação. Por que é tão difícil para os governos locais barrarem o avanço sem limites de empresas como a Uber e o Airbnb?
TS: No mundo das ideias, Uber e Airbnb foram muito bem-sucedidas em se auto-promoverem como uma quebra com o passado: elas são o futuro inevitável, então, governos que tentam restringi-las estão tapando o sol com a peneira, como se diz.
Do ponto de vista prático, é difícil barrar o Airbnb quando você não sabe onde os anfitriões vivem, ou, no caso da Uber, quem são os motoristas – neste caso, isso se torna ainda mais difícil quando a Uber usa o seu programa “Greyball” para evitar que autoridades usem o aplicativo, como foi feito em algumas cidades.
Por fim, a economia compartilhada tem utilizado suas plataformas para arregimentar uma sólida base de apoio onde operam, e tem gastado bastante dinheiro no bom e velho lobby, então ela é também politicamente eficaz.
Apesar desses desafios, acredito que muitas cidades e governos estão se tornando mais confiantes para desafiar as empresas da economia compartilhada. Eles estão aprendendo um com o outro, e observando o que acontece no resto do mundo.
Muitas cidades estão se empoderando para dizer: “temos leis trabalhistas, de zoneamento comunitário, leis antidiscriminação, leis antidumping e regras fiscais: se você quiser fazer negócios aqui, você precisa segui-las. Você está em uma plataforma online, mas as regras ainda se aplicam”.
CC: No Brasil, assim como em outros países, a chegada da Uber causou muita ansiedade e protestos por parte dos taxistas. O serviço foi banido em algumas cidades, mas, na maioria dos casos, os motoristas simplesmente continuaram dirigindo, apesar da legislação. Agora, o Brasil está atravessando uma crise econômica e há milhões de desempregados. Assim, muitos passaram a trabalhar como Uber para ganhar algum dinheiro, mas muitos precisam passar por uma jornada exaustiva apenas para cobrir os custos e são obrigadas a aceitar as exigências feitas pela empresa. Ao mesmo tempo, muitos clientes estão satisfeitos com a Uber e consideram as reclamações dos taxistas como uma resistência à mudança. O que você diria a elas?
TS: Não conheço bem a situação brasileira e não gostaria de falar sobre essa situação específica: deixo as análises para os brasileiros.
Mas esses argumentos remontam ao início do movimento trabalhista: claro que as pessoas vão fazer o que precisam fazer quando estão em dificuldade, mas isso não torna aceitável o desmonte das proteções ao trabalhador. Acredito que a economia compartilhada seja semelhante ao trabalho feminino no passado, antes da equidade salarial: em muitos países havia uma leitura de que empregos femininos não eram empregos de verdade e que muitas mulheres estavam satisfeitas em trabalhar por baixos salários.
Com o tempo, porém, homens e mulheres venceram a discussão de que todos os empregos devem ter padrões básicos de igualdade, e que esses direitos precisam ser obtidos pela sociedade como um todo, e não apenas individualmente. Algumas empresas da economia compartilhada tentam dizer que os empregos disponibilizados em suas plataformas são casuais – não um emprego de verdade – mas estão sendo criticadas por isso.
Quando a Uber utiliza programas de aluguel de carros para afundar seus motoristas em dívidas, ou quando a Airbnb destroi comunidades ao expulsar residentes e tornar seus lares em vagas para hospedagem, torna-se uma questão de justiça combater essas companhias.
Uber no Brasil: 500 mil motoristas e 17 milhões de usuários
CC: Você também aponta que não foi a tecnologia ou a eficiência que tornaram serviços como Uber ou o Airbnb bem sucedidos. Na verdade, essas companhias obtêm o sucesso bancando preços baixos e evitando o pagamento de impostos. Pode explicar melhor essa ideia?
TS: Vamos olhar para os impostos. No Brasil, a Uber não paga impostos porque eles não ganham dinheiro. Se você pega um Uber no Brasil, seu pagamento vai direto para uma subsidiária na Holanda chamada Uber BV. Você poderia pensar que a Uber BV paga impostos porque está coletando dinheiro de transações no mundo todo, mas ela paga uma quantia quase igual de dinheiro para outra subsidiária (Uber International) como uma “taxa de licença” pelo uso do software, o que significa que não lucra.
E na Holanda, não se deduz impostos de taxas de licença, ou seja, a Uber International também não paga impostos. Há outros passos, mas essa é basicamente a estratégia. Airbnb faz algo bem parecido, assim como o Google, a Apple e a Amazon. Ao evitar contribuir em países onde opera, acho que essas companhias mostram sua verdadeira face, que não é nada bonita.
Há outros custos de negócios que as empresas da economia compartilhada evitam: Uber não pagam benefícios trabalhistas ou impostos sobre os salários dos motoristas, eles empurram custos de seguros para seus motoristas, em muitos lugares evitam oferecer acessibilidade para pessos com deficiência e argumentam que regras de não-discriminação não valem para eles.
A tecnologia é atrativa, mas essas cenas de bastidores dos negócios são o que os tornam possível. E, mesmo assim, a Uber está perdendo bilhões de dólares por ano.
CC: Na sua opinião, é possível resistir à “uberização da vida”? Em outras palavras, é possível, como sociedade, lutar contra a economia compartilhada como ela é hoje? Como?
TS: Sim, acredito que é totalmente possível. Na verdade, muitas empresas da economia compartilhada não foram muito bem sucedidas: setores como serviços domésticos, entregas e empréstimos pessoais passaram por dificuldades ou reverteram a estratégia para um negócio mais convencional. Ou seja, estamos longe de isso ser um futuro inevitável.
A Uber, particularmente, está perdendo muito dinheiro. Está começando a parecer que os preços baixos e a conveniência de uma corrida de Uber só existe porque tais corridas são subsidiadas com os bilhões de dólares que a companhia ganhou. Será que a Uber vai conseguir manter sua popularidade quando precisar lucrar?
Para mim, isso parece improvável. E as cidades que tem sido mais afetadas pela presença ostensiva do Airbnb começaram a reagir de maneira mais eficaz. As cidades estão aprendendo umas com as outras, e acredito que vão se tornar mais inteligentes nos próximos anos.
O lado ruim do compartilhamento está se tornando claro, e, com a ajuda de sindicatos e organizações progressistas, governos do mundo todo estão percebendo que eles podem exigir uma prestação de contas: que é ok esperar que as empresas da economia compartilhada se comportem de maneira responsável.
Por exemplo, que elas previnam discriminações raciais em suas plataformas, ofereçam mais serviços para pessoas com deficiência, responsabilizem-se pelos impactos na comunidade, entre outros.
Os debates estão acontecendo de maneira diferente em diferentes setores, mas em todos eles os cidadãos têm a habilidade e o direto de exigir que as companhias americanas respeitem as leis de outros países, e não agir como um americano que se comporta mal em outros países, esperando que nações do mundo todo se adequem a ele.
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