Sexta-feira, 23 de setembro de 2016 - 16h49
Mexicano ganhador do Prêmio Rafto fala sobre a situação de seu país,
do Papa Francisco e do golpe no Brasil.
No Brasil de Fato
O Arcebispo de Saltillo, no México, Dom Raúl Vera López, ganhador do Prêmio Rafto, uma espécie de Prêmio Nobel da Paz alternativo realizado por um grupo norueguês defensor dos direitos humanos, soltou o verbo em entrevista concedida ao Brasil de Fato, ao falar sobre os 43 jovens mexicanos desaparecidos – tragédia que completa dois anos na próxima segunda-feira (26). Raúl Vera também comentou sobre o papel do Papa Francisco e o golpe no Brasil.
Diante do atual momento conturbado no mundo todo, o Arcebispo aponta que a “força libertadora desta Terra” está na organização da população menos favorecida e não tem dúvida do risco que Francisco passa por causa de seus posicionamentos políticos. “A cada momento ele pede que rezemos por ele porque sabe que podem assassiná-lo”, conta.
Quanto ao processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Raúl Vera ressalta que é “um artifício dos grandes ricos do mundo, que se valem dos serviços que cumprem os políticos, para se distanciar de um processo social de um governo que se preocupava com os pobres”, e representa “uma mostra internacional do cinismo dos políticos”.
Confira alguns trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Na próxima segunda-feira (26) serão completos dois anos do desaparecimento dos 43 jovens mexicanos. Como você avalia este processo?
Raúl Vera: Um aspecto, digamos, positivo, é a perseverança dos pais, dos familiares, dos estudantes e de boa parte do povo mexicano para manter na agenda nacional este assunto. Os pais conseguiram que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos criasse um grupo internacional especializado e independente – fazendo com que o governo mexicano aceitasse esse grupo – para que fizessem uma investigação que não estava sendo feita.
O segundo aspecto que tem que ter em conta, que é a parte negativa, é que que o governo mexicano utiliza o terror e horror como estratégia política. Estes garotos desaparecem em mãos do governo mexicano, e não quiseram se dar conta disso porque sabem o que passou. Se estão vivos, eles sabem onde estão, se não estão vivos quiseram inventar coisas que não deram certo. Este é o mesmo caso das cifras oficiais que dizem que há 27 mil desaparecidos no país, das quais não se tem esclarecimento.
Horror e terror são estratégias de controle da população por parte do governo neste momento, que une o exército, a marinha, a polícia federal, as polícias locais, o narcotráfico e grupos paramilitares. Tudo isso já está identificado por um processo realizado pelo Tribunal Permanente dos Povos no México, para julgar o Estado mexicano. Uma das conclusões que a sentença final traz é que o governo mexicano está fazendo um controle da população. Por quê? Porque são muitas injustiças que o governo mexicano está cometendo. Eles não estão governando para o México, para os cidadãos, mas são administradores das estratégias do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, pelas multinacionais e das potências econômicas e políticas que estão por trás destas multinacionais. Há um desvio de poder.
Por que o Estado mexicano estaria se utilizando desta estratégia de terror contra a população?
Esta é uma estratégia de guerra psicológica, de criar insegurança na população, de criar temor para que os mexicanos não se organizem ante as reformas da Constituição, do repasse das empresas energéticas à iniciativa privada nacional e internacional. Querem acabar com a educação gratuita e se desfazer dos professores por meio de um suposto exame de avaliação, para acabar com a educação pública. O mesmo estão fazendo com a saúde: deixarão de existir vários tipos de garantias, reduzindo os serviços de saúde a uma mínima parte do que temos hoje em dia. Isso porque 40% do gasto público vinha do nosso petróleo, mas agora nosso petróleo já não é mais nosso. O México está sendo construído neste modelo econômico mundial, somente para uma parte que equivale a 1% dos mexicanos.
O dinheiro que os EUA mandaram para o México nesta guerra contra o narcotráfico foi para militarizar o país, e a militarização que o governo faz é contra a população. Há uma guerra, um ataque direto contra a população. Tem dois tipos de violência neste momento no México: a violência estrutural e a direta. A estrutural são todas estas reformas e leis para administrar a nação a favor das grandes multinacionais, e a direta é a que é realizada contra a população.
No meio deste contexto, Ayotzinapa (local onde aconteceu o desaparecimento dos 43 jovens) é emblemático. Ficou claro que por trás do desaparecimento destes garotos está o tráfico de heroína, da a cidade de Iguala até Chicago (nos EUA). Os meninos, naquela noite, haviam sequestrados alguns ônibus (tomados à força, prática comum em suas mobilizações, a fim de arrecadar fundos para sua escola), e entre os caminhões, sem se dar conta, tinha um caminhão cheio de heroína escondida. Curiosamente, policiais dispararam em todos os caminhões, e o caminhão onde estavam as pessoas desaparecidas foi um caminhão que a polícia destruiu totalmente, mas não destruiu os meninos, que foram entregues ao crime organizado.
Ou seja, quem estava em busca deste caminhão com heroína era o exército, a polícia federal, a polícia local de Iguala e os narcotraficantes. Isso se converteu num paradigma de cumplicidade entre o governo mexicano e o crime organizado. Quem descobriu o lance da heroína foi o grupo internacional especializado, que fizeram um trabalho de três meses. Mas depois de descobrirem o caminhão de heroína, o governo mexicano retirou eles de campo.
Isso é uma mostra muito clara de toda articulação, e de que há uma estratégia bem organizada onde o principal objetivo é controlar o povo e manifestar o poder do governo frente à população, para que nós fiquemos parados diante das reformas estruturais e os saques que estão fazendo sobre os recursos do país.
Em contraponto a estas estratégias, temos o Papa Francisco que vem denunciando constantemente as mazelas do mundo, apontando que os problemas de nossa sociedade são fruto do nosso modelo econômico de desenvolvimento. Como você avalia o papel que Francisco está cumprindo?
O papel do Papa é muito importante. Há um texto que Jesus leu no dia em que regressou a sua terra onde cresceu, Nazaré. Como era seu costume, foi à Sinagoga e leu um trecho do Livro de Jeremias. Jesus disse: “O espírito do Senhor está sobre mim porque ele veio para anunciar boas notícias para os pobres. Anunciar a libertação dos presos, animar os corações desanimados”.
Estes prisioneiros, hoje em dia, são as pessoas ganhando o salário que ganham, prisioneiras de um sistema, ao não terem acesso a um trabalho digno. Tudo o que há neste momento são pessoas aprisionadas. O mais interessante é que Jesus disse que estes prisioneiros vão ser glorificados, vão ser reconstrutores de cidades destruídas, povoadores de terras abandonadas, ministros do senhor, que significa também administrar o mundo e devolvê-lo a Deus um mundo livre de pecado, que significa ser livre de prisões injustas, da fome, de assassinatos, de tudo o que vemos hoje em dia.
Quem vai libertar o mundo? São estes ‘prisioneiros’. Ou seja, o Papa, e me recordo o que ele disse durante o encontro com os movimentos populares em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia): “vocês, os excluídos, que estão organizados para lutar por um teto, por um trabalho e pela terra – nestes três pontos estão a liberdade, mas também está a saúde, a educação, o direito a uma vida digna e integral -, são os salvadores do mundo”. Isto é que Francisco nos está dizendo, que se o mundo de hoje está sendo administrado a favor de 1% da população mundial, que são os grandes financeiros, banqueiros, empresários, os ricos do mundo, está nos pobres a força libertadora desta Terra.
O Papa está apontando o que disse Jesus: ser sujeitos, vocês que “não são nada” vão fazer um mar de justiça. O caminho é facilitar que as pessoas marginalizadas comecem a ser sujeitos e construtores de uma nova sociedade. Uma das grandes intuições de Francisco é levar a Igreja outra vez a entender que a construção do reino de Deus não é construir a Igreja para si mesma, mas coloca-lá no meio da problemática do mundo de hoje.
Francisco denuncia toda as artimanhas e toda a mentalidade do antropocentrismo, antropomorfismo, a tecnocracia. Francisco está falando da construção da fé. A fé tem a ver com a construção do mundo, com um modelo de sociedade, com um sentido da vida humana. Por isso que Francisco é compreendido muito bem por sociedades que não são cristãs. Os cristãos têm que colocar os olhos em todos os resultados de uma péssima administração da Terra e de uma péssima maneira de governar o mundo, porque os grandes ricos do mundo e os políticos estão a serviço do dinheiro.
Acredita que com esse posicionamento Francisco esteja incomodando muita gente?
Claro! Por isso a cada momento ele pede que rezemos por ele, porque sabe que podem assassiná-lo. Volto outra vez ao discurso de Santa Cruz de la Sierra, que foi muito claro. Disse que há a necessidade de mudanças na Terra. Francisco sabe que tem interlocutores que dizem a ele: “o que está fazendo? O mundo está bem.”
Francisco sabe que tem interlocutores muito incomodados quando ele fala de desigualdade, de pobreza e de justiça. A grande diferença de Francisco é que ele fala quais são as causas. João Paulo II disse: o mau tem rosto e tem nome.
Logo após concluído o impeachment de Dilma Rousseff, Francisco protestou contra o processo em curso no Brasil. Como você avalia o atual momento político brasileiro?
Eu estive no grupo internacional que foi convocado pelos movimentos sociais no Brasil para qualificar o impeachment, e chegamos a conclusão de que houve um golpe de Estado, que não tinha jurisprudência para dizer que Dilma havia cometido crime. Isso não é mais que um artifício dos grandes ricos do mundo, que se valem dos serviços que cumprem os políticos para se distanciar de um processo social, de um governo que se preocupava com os pobres.
A prova é que logo no primeiro dia começaram a suspender todos os programas sociais. É uma mostra internacional do cinismo dos políticos atuais. Uma grande parte destes senhores que Temer colocou em seu gabinete são pessoas que tem problemas de corrupção. É um golpe suave de Estado.
Mas isso também tem a ver com a falta de prevenção dos governos que tem um sentido social. Eles teriam que ter amarrado tudo na Constituição para que todas estas conquistas não sejam retiradas. E tem que promover um pensamento hegemônico, um pensamento no povo do que deve ser um novo modo de consciência, porque os meios de comunicação também se valem disso. Isto é outra coisa que tem que ser levado em conta, o modo de governar. O modo de governar tem que criar o sujeito, e o sujeito que verdadeiramente esteja intervindo no governo. Isto é muito importante. O Brasil é uma mostra de que não fizeram as reformar que tinham que ser feitas, como regular os meios de comunicação, ai deixaram a Globo sozinha e fez o que teve vontade de fazer.
Essas 54 milhões de pessoas que votaram na Dilma teriam que ter saído às ruas para dizer “vocês não vão tirá-la, não’. Como pode poucos senadores tirar Dilma do poder? Isto é um erro e um problema que temos que resolver.
Quais saídas você identifica para estes processos?
No México, frente a situação que estamos vivendo, não vemos outra saída senão uma nova constituinte, mas uma constituinte que seja escrita pelo povo. Nesse período temos que juntar pelo menos 60% dos cidadãos, que teriam que estar ativamente no processo de constituição de uma nova Carta Mágna.
Depois, tendo um diálogo nacional e um enorme número de participantes, realizar uma eleição por consenso, já não mais pelos partidos políticos, que são quem estão fazendo todas estas barbaridades, são elites que se colocam a governar. Por um método de consenso que está no mundo indígena, introduzido na constituição da Bolívia, e é muito provável que sirva para os povos indígenas que são a maioria (no México). Já não mais pelas maiorias representativas, que não necessariamente são as maiorias populares.
Tem que ser por um consenso de toda a população, fazer uma votação formal e depois cercar o Congresso e dizer: ‘aqui estão os novos deputados e vocês estão de férias, já não os queremos mais por aqui’. E começar um processo de democracia participativa. Temos tempo para fazer e existem muitas experiências no mundo. Muitos países estão buscando isso, porque as causas são globais.
Edição: José Eduardo Bernardes / Fonte: Blog da Luciana
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