Segunda-feira, 3 de setembro de 2018 - 09h41
No El País – Os ratos sempre chegavam na mesma hora, por volta de uma da madrugada. Visitavam a cela todas as noites, com missão idêntica: caçar migalhas. Mesmo que servisse para o prisioneiro José Mujica se sentir menos sozinho. E se agarrar ao contato com a realidade. “Era uma referência. Outra era a troca da guarda. Você vai criando o ofício de ser preso”, diz Mujica (Montevidéu, 1935), sentado no elegante sofá de um hotel e de um festival em que parece um intruso e, entretanto, é protagonista.
Diz que não apresenta “nada”, mas o certo é que dois filmes da Mostra falam dele: Uma Noite de 12 anos, do uruguaio Álvaro Brechner —na sessão Horizontes, e com coprodução espanhola—, recria sua odisseia como preso político, detido em 1972 por pertencer à guerrilha dos Tupamaros, e libertado somente em 1985. El Pepe, Uma Vida Suprema, de Emir Kusturica, é um documentário sobre o ex-presidente do Uruguai e sobre a maneira de ser e pensar que conquistou seu país e o mundo inteiro. Veneza também o coroou como uma de suas estrelas. Ainda que ele diga que na verdade é “estrelado”.
O diretor sérvio deve conhecer bem seu amigo. De modo que o chantageou: ‘Se não vier a Veneza para uma entrevista coletiva, eu também não vou”. Mujica diz que para não ofendê-lo, e como agradecimento pelos dois filmes, fez uma longa viagem que é cada vez mais difícil e da qual gosta cada vez menos. Em um encontro com a imprensa espanhola, olha para frente e para trás, à política e ao cinema, à Europa e à América Latina. Com humor —“uma arma defensiva brutal”—, citando poetas e sempre matizando no final, como se desse pouca importância. “Bom, é como eu vejo”. Ao modo de Mujica.
“Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”, defende. Esteve com ela dos 37 aos 50, sofreu torturas, comeu sabão, perdeu os dentes pelas surras, e frequentemente a lucidez. Agora chama tudo aquilo de “peripécia”. “Isso que aconteceu conosco é pouco. Existem muitos outros que ficaram pelo caminho”, acrescenta. Não sabe muito bem como sobreviveu, mas tem algumas hipóteses: “Cada um se agarra no que pode. Quando era muito jovem, li muito. E nesses anos de solidão refleti. Repensar e reconsiderar coisas não é o mesmo que ler, é reconstruir. Acho que o homem aprende mais na adversidade, sempre que não o destrua, do que na bonança”.
Entre outras lições, Mujica concluiu que a vingança não serve para nada: “Não sei se perdoo. Mas a natureza nos colocou os olhos na parte da frente, e existem contas que ninguém paga e não devem ser cobradas”. Fiel a isso, só viu Uma Noite de 12 Anos uma vez —não participou da estreia no festival, onde foi muito aplaudido—. Melhor não “remexer os sentimentos” que traz sobre sua mãe, os soldados, seus outros colegas presos e aqueles que já não estão.
Tanto isolamento também forjou parte de quem ele é hoje. “Quando tinha um colchão estava contente. Ou um copo de água. Ou se podia urinar. Descobri que brigamos muito por nada”, diz. E cita um estudo que sustenta que, a partir de certos níveis, os aumentos do PIB já não aumentam a felicidade: “Acho que a sentimos quando resolvemos questões básicas; depois, nem sinal”.
O poder e o estilo
“Quando era jovem pensava que a luta era pelo poder. Agora vejo que a história dos lutadores sociais e políticos é um monte de vidros quebrados, dos quais vão ficando pedacinhos: as oito horas de trabalho por dia, os direitos trabalhistas, a aposentadoria… eu me sinto irmão de tudo isso”, diz Mujica. Durante sua presidência, entre outras coisas, legalizou o casamento homossexual e a maconha, descriminalizou o aborto, e declarou guerra à pobreza e à indigência. Mesmo que a oposição tenha lhe acusado algumas vezes de esvaziar suas palavras ecologistas e anticapitalistas com decisões no sentido contrário. De seus mandatos, ele destaca “furos” e sonhos não cumpridos. “Seria preciso nomear o chefe dos bombeiros. O presidente é um apagador de incêndios”, afirma.
Também renunciou à mansão presidencial e a 90% de seu salário. E ficou na casa em que sempre morou, com sua mulher, a política e ex-guerrilheira Lucía Topolansky, e sua adorada cachorra Manuela. O recente falecimento do animal o fez refletir sobre a morte. E talvez daí venha o adeus a sua cadeira no Senado: “Às vezes você sente que está desempenhando um papel que já não te motiva. Você está atrapalhando, como uma árvore velha que não deixa ver o que está por baixo”.
Se deixou a política ativa para trás, falar dela ainda acende sua paixão. Perguntado pela crise na Venezuela e na Nicarágua, responde: “Na América acontecem coisas que também se dão na Europa. Mas aqui são bem dissimuladas. A Volkswagen recebe uma multa de 7 bilhões de dólares (28 bilhões de reais) e ninguém é preso, continuam como se nada houvesse. Não venham me dizer que a América está cheia de defeitos e a Europa é corretíssima. Não estou defendendo a deformação que temos, digo que está presente no mundo em que vivemos”. E diante de uma pergunta sobre o auge do populismo, coloca a própria questão em dúvida: “Não utilizo essa palavra porque a usam a torto e direito. São populistas na Nicarágua, e os que votam na direita na Alemanha meio neonazistas. Então, é qualquer coisa. Eu tiro essa conclusão: tudo o que incomoda, com o que não se está de acordo, é populista”.
Partidário da UE
Mujica apoia com convicção o projeto da União Europeia, apesar de seus “defeitos”: “O ser humano é o único animal que tropeça nas mesmas pedras. Nos últimos mil anos a Europa viveu em guerra e agora parecem se esquecer disso. Eu gostaria de ter algo assim na América Latina”. E sobre a Espanha afirma que tem “vários problemas com a memória”, e que sobrevive sua eterna contradição entre o país de “festa e alegria” e o da “raiva e ódio”. “A Espanha feudal ainda é muito forte”, diz. E em relação às turbulências com a Catalunha, afirma: “O nacionalismo dos jovens é algo bom porque serve para moldar caráter e identidade. Mas quando se exacerba se transforma em algo perigoso. Mas atenção: uma coisa é o nacionalismo de um país pequeno e outra o de um grande e de terror para os vizinhos”.
A última pergunta recai sobre a marca de Mujica, aos seus 83 anos. Ele não dá muita importância. “O que é o legado de uma pessoa no universo? Somos menos do que um piolho. O legado é ter vivido intensamente, com acertos e erros. Vencer não é ter dinheiro, é se levantar sempre que se cai”. A poucos quilômetros, o carpete vermelho de Veneza prepara outro desfile de estrelas. Resta saber quantas estão de acordo com o estrelado.
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