Quinta-feira, 18 de outubro de 2018 - 05h01
No Le Monde Diplomatique
Bolsonaro é um monstro de duas cabeças. Um duplo. Como os homens que unem as graças do matrimônio à força da família, mas que nada dizem sobre suas escapadas com prostitutas, dificilmente ele cometerá o erro de expressar seus planos centrais diante de público mais amplo.
Por trás de falas agressivas, altamente reacionárias e populistas, está uma outra face dedicada a degradação dos benefícios sociais. Seu plano de governo marcado por frases genéricas, mas nem por isso menos incisivas, se acaso entrar em vigor aprofundará ainda mais a desagregação social iniciada pela administração Temer.
Se oficialmente o desemprego e subemprego somados já batem na casa dos 27,7 milhões, os chamados “ajustes necessários” de seu programa provavelmente detonarão subempregos – os bicos – tendo em vista que a tal flexibilização do contrato de trabalho será arma do patronato para precarizar ainda mais a vida do trabalhador.
Nesse sentido, é preciso dizer que existe uma lógica objetiva ante a suposta irracionalidade de um discurso centrado no linchamento verbal de seus oponentes que justifica uma opção político-econômica de interesse das classes abastadas.
A suposta “medida de modernização da legislação trabalhista”, que em linhas gerais é a eliminação dos direitos trabalhistas com a tentativa de criar uma carteira de trabalho na qual “todo jovem que ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela” , é na verdade a tentativa de dar poder total ao patronato para impedir as garantias dispostas nas leis trabalhistas que já foram atacadas desde a reforma de Temer.
Embora, todo programa diga que as escolhas serão dos trabalhadores, é muito fácil deduzir que entre uma carteira que garanta direitos na contratação e outra na qual o direito pode ser discutido, flexibilizado ou mesmo suprimido, os patrões fatalmente escolherão aquela que mais benefícios lhes trazem. Pode-se afirmar que seu projeto de país é um ataque direto aos trabalhadores. Sua proposta é uma tentativa burlesca de driblar as leis trabalhistas, garantidas pela Constituição.
Bolsonaro e sua equipe econômica buscarão capitalizar a previdência social que não apenas deixará de dar assistência àquele ou àquela que por algum acaso se acidentar e não puder contribuir, como ainda diminuirá os valores salariais dos aposentados, criando um futuro tenebroso no qual milhares de idosos ficarão à mingua e sem recursos.
Não bastasse isso, o programa fala em criar mão de obra qualificada, mas não específica como, já que o próprio Bolsonaro votou na PEC do corte de “gastos” (congelamento de investimentos em saúde e educação por vinte anos). Também não explica que, passada a reforma trabalhista, o número de desempregados atingiu o patamar de 13 milhões em nome da suposta liberalização da economia.
Ora, foi assim que finalmente o neoliberalismo encontrou sua esquecida face forjada na ditadura de Pinochet. É evidente a inclinação do presidenciável na tentativa de colocar sobre as costas dos pobres os encargos e socializar os lucros com os ricos e seus defensores.
Com tudo isso, pode-se afirmar, Bolsonaro está do lado dos patrões, e se essa frase é de efeito, este já não surte no gigantesco número de pessoas que perderam todo seu pertencimento de classe. O dispositivo de gestão de crise que atende pelo nome de neoliberalismo não só fomentou a competitividade consumista como ainda criou os capitalistas sem capital; empreendedores de si mesmo que se veem como empresas passíveis de investimentos econômicos ou libidinais untados com toda parafernália ideológica da autoajuda.
Nada é em vão, e Bolsonaro é a verdade de uma construção ética, de um etos nascido e mantido por um individualismo exacerbado que foi formulado para constituir a reestruturação produtiva do capital mundial e criar um verdadeiro governo de crise permanente.
Se a violência voltada contra um ponto de vista contrário, ou contra uma existência que se quer fazer legítima ao afirmar sua diferença, já fez inúmeras vítimas em todo o país depois do primeiro turno, não se pode esquecer que ela foi gerada no próprio mundo que deu espaços para discursos de ódio; o mundo do espetáculo, da frase de efeito, do just in time, da gestão dos afetos, do fake news e da piada ruim.
Mal e mal, depois de um consenso surgido em meados de 1970, imposto por FHC e nunca questionado pelo PT, depois de uma aliança entre setores conservadores e oligárquicos que herdaram o colonialismo, uma radicalização à extrema-direita que propõe a pauta econômica dessas elites sem compromissos com a democracia ou com a Constituição só pode ser vista, por essas mesmas elites, com hipócrita resignação.
Sobre a frase lapidar “Não entendo de economia, mas chamarei os mais capacitados” está prenunciado, com profundidade, o impasse que o modelo de gestão do capital de crise impõe à democracia no mundo global; a redução democrática a acordos oligárquicos que interessam somente as elites. Uma tecnocracia que visa punir aqueles que não entram no jogo; essa punição, não se pode esquecer, é o ato soberano sobre quem deve morrer ou quem deve viver, quem é sujeito de direitos e quem não é. Enfim, a legitimidade dada ao Estado de exceção conhecidíssimo no Brasil, aliás.
Com isso é possível afirmar que o plano de governo de Bolsonaro passa por três eixos básicos: a) aprofundar a precariedade no trabalho e optar por uma previdência da qual, mediante o quadro de desigualdade no país, os mais pobres estarão excluídos; b) manter e aprofundar o corte de investimentos em saúde e educação, optando inclusive por privatizar áreas estratégicas que garantem a soberania nacional; e c) armar os ricos.
Com uma estética cafona, o programa de Bolsonaro se assemelha ao trabalho de um aluno de primeiro ano de graduação em administração. Com frases de efeito tiradas de algum receituário de bons modos dos anos 1950, tais como: “os frutos de nossa escolha afetiva tem nome: FAMILÍA!”, se ilude aquele que achar que essa retórica não está assentada na própria visão de mundo neoliberal.
Pegue todas os delírios retrógrados publicados na internet durante esta última década e terá um retrato fiel das propostas do presidenciável que aproxima perigosamente o número de assassinatos no país à esquerda, especificamente ao Foro de São Paulo. O slide 12 (sim creia-me um slide) diz o seguinte: “Mais de UM MILHÃO de brasileiros foram assassinados desde a 1ª reunião do Foro de São Paulo”.
A correlação, que passa por um delírio absurdo, entre o Foro de São Paulo e o número de assassinatos por arma de fogo no país é extremamente perigosa. Contribuindo para a criação de um inimigo interno a ser combatido. O ódio expresso na criação fantasmagórica de um Outro que precisa desaparecer é evidente. Bolsonaro quer encontrar um bode expiatório para deslocar a atenção geral das reais intenções de seu projeto.
Suas recentes declarações que, mediante o assassinato de mestre Moa, afirmaram: “a intolerância vem do outro lado!”, relativizam o assassinato e criam o Outro a ser combatido por supostamente ser o Outro o assassino, enquanto o Eu só age em legítima defesa. O atual identitarismo, que grassou na esquerda no qual só aquele que comigo se parece pode compartilhar de meus espaços de afeto, é agora subvertido e Bolsonaro e seus seguidores criaram um “nós”, a chamada identidade nacional, que exclui o diferente e, ao contrário da esquerda liberal, visa eliminar a diferença.
Seu bode expiatório, porém, não foi uma construção legítima, como aliás nada em seu programa; foram duas décadas de retórica, tanto nos meios de comunicação de massa quanto nas redes sociais, contra a esquerda e seu principal partido. Foram duas décadas de gramática neoliberal que, escapando do campo objetivo, adentrou a moralidade e fez das posições políticas profissão de fé, inclusive na própria esquerda.
E por falar em profissão de fé, assim diz seu programa acerca do armamento da “população” – é óbvio que o armamento será feito para as classes altas que agora no lugar de condomínios terão caixas-fortes com vigias altamente municiados: “As armas são instrumentos, objetos inertes, que podem ser utilizadas para matar ou para salvar vidas. Isso depende de quem as está segurando: pessoas boas ou más. Um martelo não prega e uma faca não corta sem uma pessoa”.
Comparando aleatoriamente dados estatísticos de países altamente desenvolvidos, com grandes benefícios e seguridades fornecidas por um Estado de bem estar social, em que o porte de armas é liberado, nem passa pela cabeça de sua equipe estratégica que aquilo que impulsiona a criminalidade é a desigualdade e pobreza normatizada nesse país.
A visão de mundo simplista e maniqueísta se expressa como política de exceção que visa simplesmente extinguir qualquer suposta ameaça. Para Bolsonaro, a saída da violência será pela bala, claro que não serão disparadas pelos pobres, mas pelos ricos e pela polícia do Estado que terão direito de matar e carta branca para torturar qualquer um – e esse qualquer um significa que esta já é uma realidade para milhares de moradores das periferias.
Resta-nos assim refletir e agir porque as consequências da inação podem ser catastróficas. Resta-nos criar alternativas em que a retórica beligerante do neoliberalismo seja de uma vez por todas extinguida. Resta-nos reabrir um horizonte de transformações sociais efetivas e comuns. Temos, portanto, de nos aventurar no abismo do novo, caso contrário seremos tragados para uma situação de terrível violência que no momento em que escrevo já se expressa nas ruas e no corpo de dezenas de mulheres espancadas pelos seguidores de um “mito” que precisa ser urgentemente desmistificado. Se ele quer legitimar pela força o Estado de exceção que criemos um verdadeiro Estado de emergência!
*Douglas Rodrigues Barros é escritor e doutorando em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo.
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