Quinta-feira, 7 de novembro de 2024 - 09h16
Luciana Oliveira, de Brasilia – Mais de 130 mulheres vindas de 20 estados do país participaram do evento em Brasília que durou três dias.
Foram intensas trocas de experiências e propostas na luta em defesa da vida das mulheres.
O I Encontro Nacional do Levante Feminista ocorreu quatro anos após a criação da campanha contra o feminicídio, lesbocídio e transfeminicídio.
A presença de feministas históricas e atuais realçou o compromisso de uma luta permanente que atravessa gerações.
Nos primeiros dois dias do evento, elas formaram grupos de trabalho e planejaram ações para o enfrentamento da violência de gênero.
Em carta manifesto cobraram mais comprometimento dos governos, do judiciário e da imprensa no esforço para reduzir violências contra as mulheres.
O Brasil é o quinto país do mundo em feminicídios. São cerca de 1450 ao ano, um a cada 6 horas, segundo os dados do Anuário Brasileiro Segurança Pública (2023).
Essa realidade pode ser bem maior, já que há subnotificação, registro inadequado e não agregação de transfeminicídios nas estatísticas.
Só a partir de 2015 o feminicídio passou a ser previsto como uma das circunstâncias qualificadoras do homicídio (Lei 13.104/2015). Uma nova lei, no 14.994/24, sancionada no mês de outubro, tornou o feminicídio — assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica ou de gênero — um crime autônomo.
O evento contou com a presença de duas ministras, a das mulheres, Aparecida Gonçalves e da Igualdade Racial, Anielle Franco.
“Estamos fazendo tudo para engajar a sociedade na mobilização da campanha pelo feminicídio zero. No campo das políticas públicas estamos trabalhando para que possamos ter 40 casas da mulher brasileira e todas as delegacias especializadas atendendo 24 horas”, disse a ministra das mulheres.
A ministra Anielle Franco, falou da dor que fica de todos os tipos de violência para os familiares e citou o julgamento e condenação dos executores da irmã, a vereadora Marielle Franco.
“Aquela vitória daquele júri não é só da família de Marielle, mas de todas nós que ocupamos ruas e vielas e periferias, pra dizer que Marielle vive. Pra dizer que essa luta não é apenas individual, mas de toda a sociedade”, disse Anielle.
A deputada federal Érika Kokay (PT), também participou do evento e contribuiu nos debates.
Segundo ela, é preciso fortalecer as políticas públicas de gênero, pois “se você nega a construção de gênero, você biologiza, naturaliza a discriminação que atinge as mulheres”.
As participantes do Levante exigem medidas concretas para prevenir os feminicídios, atender mulheres, capacitar agentes públicos, julgamentos justos e políticas de reparação aos familiares de vítimas.
A Carta produzida no encontro foi entregue pessoalmente em órgãos públicos fiscalizadores, como a Secretaria Nacional de Articulação Institucional, Ações Temáticas e Participação Política das Mulheres e Defensoria Pública da União.
Leia a carta na íntegra:
Nós, integrantes da Campanha Nacional Levante Feminista Contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio, distribuídas nos diversos territórios do país, na nossa diversidade de gênero, raça e etnia, orientação sexual e identidade de gênero, com deficiência, das águas, da floresta, do campo e da cidade, reunidas em Encontro Nacional nos dias 2 a 4 de novembro de 2024 em Brasília, externamos com nossas vozes indignadas nossa defesa intransigente da vida das mulheres.
Estamos reunidas em âmbito nacional, presentes em 20 estados, a exigir medidas concretas para prevenir as violências que atingem seu ápice com a morte das mulheres, a devida justiça e políticas de reparação. Honramos a memória das vítimas de transfeminicídios, feminicídios e lesbocídios.
Somos movidas por uma profunda repulsa aos assassinatos de mulheres em nosso país, cerca de 37.420 entre 2015 e 2023, 10.330 dos quais feminicídios, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Somente em 2023, ocorreram 1.467 mortes por razão de gênero no Brasil, o equivalente a mais de 122 assassinatos por mês, com mais de 4 mulheres ou pessoas trans perdendo a vida por dia devido ao machismo (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024). Apesar de alarmantes, esses números, infelizmente, são menores do que a já dura realidade, em razão da subno>ficação.
A misoginia, expressão do patriarcado, opera junto ao racismo para tornar as mulheres negras na maioria das ví>mas (63,6%) e as mulheres indígenas mais vulnerabilizadas diante da disputa e destruição da biodiversidade que ameaça seus corpos territórios; e se articula com a lesbo e transfobia, para fazer do Brasil o país onde mais se matam mulheres lésbicas e trans. Mulheres trabalhadoras empobrecidas, ciganas, migrantes e refugiadas precisam ser incorporadas entre os grupos mais vulnerabilizados frente aos feminicídios.
Para nós, lesbocídios, feminicídios e transfeminicídios ocorrem quando o estado, por meio de suas instituições, absorve as construções culturais patriarcais, misóginas e discriminatórias presentes na sociedade, e falha no seu dever de prevenir, punir e eliminar as violências de gênero intersecionadas com o racismo, à lesbo e transfobia, e a outras formas de discriminação. Com a ascensão do fascismo e do ultraconservadorismo e os ataques à democracia, a liberação e a disseminação das armas, a presença das milícias, em especial em territórios periféricos, se abriu um ambiente cada vez mais hostil às mulheres.
O desmonte do arcabouço das polí>cas públicas em geral, ocorrido no período ultraconservador vivido recentemente no país, afetou profundamente o acesso das mulheres à cidadania, deixando uma enorme lacuna e a necessidade de um esforço excepcional para recompor e ampliar as possibilidades de viver sem violência e escapar da morte anunciada.
Ainda que retomada, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres exige orçamento à altura, fortalecimento das estruturas institucionais e medidas de apoio às iniciativas da sociedade civil. Parte dessa política, a campanha que pretende zerar os feminicídios é uma nova oportunidade para ampliar o debate sobre essa violência e conjugar esforços para prevenir e enfrentar os transfeminicídios, lesbocídios e feminicídios.
A falta de políticas públicas para prevenir, acolher e proteger contra a violência transforma mortes preveníveis e evitáveis em tragédias pessoais com impactos coletivos, produzindo tristeza, orfandade e sensação de medo e injustiça. As numerosas sobreviventes de tentativas de feminicídio no Brasil se constituem hoje num contingente de mulheres com graves sequelas asicas e psíquicas, sem que haja políticas de cuidados e proteção. Nos territórios periféricos (urbanos, rurais, florestas), longe dos olhares da grande imprensa, ocorrem diariamente feminicídios, lesbocídios, transfeminicídios nunca notificados, não qualificados como tais. Nenhuma dessas pessoas será ignorada por nós.
Cabe aos poderes públicos e à sociedade a adoção de medidas urgentes para que esse cenário tenha fim. O medo da violência sobre nossos corpos e sobre a nossa existência não condiz com o que prevê a Constituição Federal de 1988. É crucial garantir os direitos fundamentais de todas as pessoas para que a democracia seja uma realidade.
Cabe aos poderes executivos Federal, Estaduais, Municipais e Distrital a implementação de políticas públicas de educação, cultura e comunicação para prevenção da violência de gênero e de respeito à diversidade.
Os governos devem assegurar políticas públicas de caráter transversal e o acolhimento com perspectiva de gênero e intersecional das ví>mas de violência de gênero reconhecendo as diferentes necessidades de cada pessoa, respeitando as diversidades de nossos corpos, identidades, sexualidades e arranjos/contextos sociais. Devem ainda priorizar recursos orçamentários para o enfrentamento do feminicídio, lesbocídio e transfeminicídio, fortalecer instâncias participativas e qualificar o serviço público para reconhecer as violências e os feminicídios, de acordo com a Lei e as Diretrizes nacionais.
Instamos os poderes Legislativos Federal, Estaduais, Municipais e Distrital a construir legislações que promovam o fortalecimento de Leis já existentes, como a Lei Maria da Penha (Lei Federal 11.340/2006) e leis de prevenção que estimulem mudanças estruturais na sociedade. Neste sentido, é inaceitável a continuidade de visões estritamente punitivistas sobre a violência de gênero e feminicídio como as que se expressam nas propostas em tramitação e aprovadas no Congresso Nacional e outras instâncias. É responsabilidade ainda do legislação garantir que o poder Executivo tenha recursos orçamentários para que medidas de prevenção e acolhimento possam ser implementadas.
O Judiciário precisa em toda a sua capilaridade garantir, com celeridade, a aplicação das leis e políticas públicas, fortalecendo assim a legislação existente. Aquelas/es que atuam nos poderes judiciários precisam estar qualificados para respeitar a diversidade dos corpos, contextos sociais, iden>dades, raça e etnia daquelas pessoas que estão expostas a ameaças e situações de violência que podem ou que levaram a episódios de feminicídio, lesbocídio e transfeminicídio.
A imprensa em sua diversidade, especialmente considerando as concessões públicas, tem a responsabilidade de ajudar na construção de uma cultura de paz e respeito à diversidade. As vítimas, independente de sua raça, etnia, identidade de gênero, sexualidade e deficiência, precisam ser consideradas e receberem tratamento digno, não banalizador ou culpabilizador. Os conteúdos jornalísticos, publicitários e midiáticos em geral devem promover acolhimento, esjmulo à jus>ça, ao respeito e de forma alguma a revitimizacão.
É fundamental que a sociedade se mobilize para a construção de relações interpessoais de respeito desde os ambientes familiares, da escola pública, laica e de qualidade em todos os níveis, pelas manifestações culturais, fortalecendo a informação sobre direitos e não tolerando práticas violentas baseadas em gênero.
Diante desta cruel realidade, reafirmamos o papel da Campanha Levante Feminista Contra o Feminicídio, Lesbocídio e Transfeminicídio como vozes de milhares de vítimas e de todas as mulheres, pois direta ou indiretamente somos todas sobreviventes na sociedade patriarcal marcada pelo ódio às mulheres.
Continuaremos em luta como campanha permanente!
LEVANTE FEMINISTA CONTRA O FEMINICÍDIO, O LESBOCÍDIO E O TRANSFEMINICÍDIO.
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