Segunda-feira, 26 de outubro de 2020 - 16h24
Um dia qualquer, de uma cidade qualquer do interior paranaense,
catarinense ou outro Estado do país, uma hora qualquer de um ano qualquer entre
1966 e 1982. O dia ainda nem clareou, crianças menores choramingavam, as
maiores se divertiam, casais de namorados repetiam juras, pais e parentes davam
um abraço em quem partia, as malas e móveis, às vezes até cães e outros
animais, todos amontoados na carroceria de um caminhão numa viagem em busca do
eldorado onde, diziam os recrutadores ou a propaganda oficial, ou as cartas dos
que já foram na frente, tinha terra a perder de vista. E de graça, só que tinha
de desmatar metade conforme a orientação do Incra.
“A gente nem sabia direito pra onde estávamos indo. A gente
sabia dia de hora da saída, mas ninguém sabia o que vinha pela frente. Nem se a
gente chegava”, disse “seu” Ademir, sentado num boteco que servia também de
rodoviária na então vila de Presidente Médici, em 1975, conversando comigo. Ele
veio com a família (mulher, três garotos e uma menina) saídos da região de
Maringá em 1970. “Um dos piá ficou pelo meio do caminho”, fala enquanto toma
mais duas doses da pinga, tirando gosto com ovo frito, olha para o vazio como
se estivesse lembrando do pequeno.
“Seu” Ademir (**) conseguiu uma terra perto de Médici e veio até
a cidade, ainda uma vila, fazer compras, algumas delas no boteco que, além de
rodoviária, servia ainda de armazém. No Paraná, explicou, era meeiro mas
preferiu se aventurar, depois de ver que não estava rendendo. “Quando a gente
veio o medo era de índio e de malária. Agora já passou”.
O boteco, misto de armazém, salão de sinuca e local de encontro
de quem morava nas redondezas, era também parada do ônibus. Eu estava voltando
de uma matéria em Vilhena, sobre um homem que garantia ter sido abduzido por um
disco voador quando estava saindo da agência do Banco do Brasil em Campinas
(SP) e surgiu, dois dias depois, no início da manhã, sentado na frente da casa
do administrador de Vilhena. Foi minha primeira matéria em Rondônia. Eu fui de
avião alugado pelo jornal e resolvi voltar de ônibus para ver como era a terra
para onde tanta gente migrava, só Deus sabe como conseguiram chegar – e como
sobreviveram.
NÃO É ÚNICA HISTÓRIA
A história de “seu” Ademir não é única. E poderia nem ter acontecido,
com ele ou os outros que vieram um pouco antes ou depois. Mas como aconteceu,
há muitas outras por aí ainda a serem descobertas por quem queira escrever
sobre como foi a luta para desbravar esse pedaço de Brasil, onde além da
desconfiança causada pela desinformação o primeiro grande obstáculo era a
viagem numa rodovia aberta em 1960 e que menos de três anos depois, como o
homem não conserva, a “trilha” aberta na mata virgem praticamente fora
abandonada por sucessivos governos.
Pode ter sido coincidência, mas o Governo só se voltou para a
região quando, na base da coragem (seria loucura mesmo?), os jornalistas Milton
Alves e Vinícius Danin, em junho de 1963,
montaram numa lambreta na praça Jonatas Pedrosa, em Porto Velho, e foram
pedir ao presidente João Goulart que não deixasse a única via de passagem
rodoviária para a Amazônia Ocidental ser fechada pela selva. Imaginem o que foi
a viagem, sem qualquer ponto de apoio, cidades onde não tinha praticamente nada
e telefone era coisa que só sabia quando ia ao Cine Sete Irmãos.
Goulart, por interferência do médico e deputado federal Renato
Medeiros, recebeu a dupla, mas não fez praticamente nada. No entanto, dois anos
depois o presidente Castelo Branco constituiu o 5º Batalhão de Engenharia de
Construção e o BEC chegou a Porto Velho em 1966, e já deixou dois contingentes
interiorizados, em Vila Rondônia e Vilhena e, apesar de todas as dificuldades,
a estrada deu passagem melhor.
Mas, mesmo assim, vir para a região, ainda mais pela rodovia em
plena selva, era um desafio imenso, e muitos desistiram. “Como dois irmãos
meus, que preferiram voltar para trabalhar como boias-frias no interior de São
Paulo do que enfrentar a selva, a malária, os índios e as onças”, como uma vez
falou o agricultor Estevão dos Santos (“Não esquece de botar um “til”, ele
recomendou).
“Teve um conhecido da nossa cidade que largou tudo e veio
aventurar. Mandou uma carta contando que aqui a terra era de graça. O padre leu
a carta na missa e sem nem saber onde ficava uma terra chamada Rondônia, vim
assim mesmo. Juntei a mulher e o filho, pagamos a passagem num ônibus e levamos
duas semanas para chegar numa vila. Descemos ali e conseguimos um lote na linha
128. Aparecia uns índios mas acabamos ficando amigos, mas no início foi muito
medo. Era o ano de 1971”, e a vila ainda era chamada “Nova Cassilândia”, que só
mudou para Cacoal por sugestão do jornalista do Alto Madeira Ciro Pinheiro.
“Seu” Estevão contava sua história no Restaurante Uruguai, em
1989, quando eu acompanhava deputados na discussão do projeto da 2ª
Constituinte. “E o senhor como ficou?”.
“Para quem veio sem um vintém, trabalhou duro e agora tem
dinheiro para pagar almoço aqui é porque melhorei. E muito. A família está
criada, só a mulher anda meio doente e hoje viemos consultar. Mas se não
pensava em voltar no início, agora muito menos”. O senhor voltou lá na cidade
do interior paulista?
“Fui várias vezes, e até trouxe um dos que desistiram para
trabalhar comigo. Lá eu era só boia-fria, trabalho meio ano. E se puder trazer
mais eu vou fazer”.
“SEU ADEMIR”
Em 2018 eu estava fazendo uma pesquisa em Ji-Paraná sobre Vila
Rondônia (o nome de Ji como era até 1977), para um doutorando em História.
Estacionei o carro num posto de gasolina e na outra “bomba” uma caminhonete com
carroceira de madeira, também abastecendo. Olhei e vi que em algum lugar dos
meus arquivos da minha memória, meio apagados pelo tempo, eu havia visto aquele
rosto numa das centenas de viagens que fiz em quase 50 anos de Rondônia,
comendo poeira, desatolando carro, dormindo onde dava.
Fui até o homem, começamos a conversar e aí ele olhou para mim e
disse: “É isso mesmo. Você e eu conversamos faz muito tempo no armazém em
Presidente Médici”. Deu um estalo. Caramba! Mais de 40 anos. Veio meu problema
de sempre: “Desculpe, estou lembrando, mas não do nome”. E ele: “É Ademir”.
Abastecidos os carros convidei para o almoço, porque ficara interessado com o
que acontecera no período.
Numa churrascaria na saída de Ji botamos a conversa em dia.
Contei que vim para Rondônia ficar três meses, “e como estou até agora não sei
quando começa a contar nem quando termina e espero que não seja logo”. Aí ele
contou que o lote que ganhara era uma faixa de terra boa, que mandou buscar
dois irmãos que também receberam a terra, que os filhos já lhe deram netos, “e
até um bisneto”, que enviuvara e casara mais duas vezes”.
“Mas aos 70 anos continuo trabalhando na agroindústria da
família. Vim aqui para tratar de participar do “Rondônia Rural Show”. Vontade
de voltar? “Não. No início foi muito duro, mas depois as coisas foram dando
certo, comprei mais dois lotes. Hoje faço parte do nosso hino”.
Para provocar, perguntei: “Hino do Paraná?”. E ele: “Não, o que
diz que eu sou um destemido pioneiro” – o hino de Rondônia. Depois do almoço,
que acabou virando uma conversa de mais de três horas, ele voltou para seu lote
e eu segui viagem.
Lamento pela foto. Até tentei, mas o celular estava zerado.
(*) Repórter, contato 69 99910 8325
(**) Quando conheci “seu” Ademir eu estava retornando de uma
reportagem sobre um homem que teria sido abduzido por um disco voador em
Campinas (SP).
Próximo domingo: O melhor repórter que já aportou aqui,
Montezuma Cruz, conta algumas das muitas histórias de seu arquivo de memória.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.O DIA NA HISTÓRIA - 25 de novembro de 2024 - BOM DIA!
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