Quarta-feira, 8 de julho de 2020 - 18h43
Localizada no Bairro Embratel, ao lado do Campo do Treze, há quase 4 meses, todos os dias, a partir das 10 horas, começa a se formar uma fila, faça chuva ou sol, à espera de um ato solidário que une doações anônimas, num projeto desenvolvido pela Semasf/Prefeitura, Igreja Católica e dezenas de voluntários cuja finalidade é uma só: oferecer apoio e esperança a pessoas, desde o almoço diário que inclui frutas e suco, além de poderem tomar banho e até lavarem a própria roupa.
O projeto, que começou quando foi decretado o primeiro decreto do “Fecha Tudo”, logo mobilizou os membros da paróquia Sagrada Família e o apoio do arcebispo dom Roque Paloshi, inicialmente atendendo cerca de 50 a 70 pessoas, com apoio da Semasf, número que foi crescendo chegando atualmente a cerca de 180 todos os dias. “É cansativo, mas faz bem a todos nós”, disse um voluntário.
Conversar com eles é ouvir muitas histórias, dramas típicos, como disse um voluntário, “quando eu estou atendendo lembro da letra que diz “E aí me dá/Como uma inveja dessa gente/Que vai em frente/Sem nem ter com quem contar” (Gente Humilde, Chico Buarque de Holanda.
Na fila diária, uns dizem que nunca pediram nada a ninguém. Alguns admitem ter até vergonha de estarem na fila do almoço, mas não têm outra opção para a fome. A maioria garante que estavam trabalhando, com carteira assinada e tudo, ou como autônomos. Homens e mulheres, alguns jovens, outros beirando 40 ou mais, e idosos, há os que dizem “morar mesmo na rua”, outros que têm família e há ainda os que garantem pegar a ajuda diária para levar para casa e dividir com a família. Há quem tenha celular, lembrança de quando tinham emprego fixo ou que sempre arrumavam como ganhar a vida fazendo algum trabalho. Mas quando perguntada se tinha celular, a resposta de uma mulher resume a situação da imensa maioria, “não tenho nem onde cair morta, quanto mais um celular”.
Independente da história, ou da estória, de cada um, todos, desde março, quando começou a pandemia, têm o mesmo local para se encontrar a partir das 10h30: a fila do almoço fornecida de segunda a segunda-feira, sempre no mesmo horário, um trabalho realizado por voluntários, a maioria católicos, mas com participações de espíritas, de um ateu e até evangélico, com apoio de muito mais gente; pessoas, como um doador que, ao ser abordado sobre seu nome, respondeu apenas “Eu sou um de muitos. O importante é ajudar essa turma”.
Os marmitex são parcialmente oferecidos pela prefeitura, através da Secretaria Municipal de Assistência Social e Família, Semasf, o restante feito pelos voluntários na cozinha da paróquia, gente de todas as classes socias, uma parte formada por pessoas com curso superior mas que, na hora do trabalho, “todos pegamos juntos”, disse um, funcionário importante de um tribunal estadual.
A Sagrada Família fica de frente para o nascer do Sol. São duas filas. A dos acima dos 60, ou deficientes, é à direita, no sentido da avenida Carlos Gomes. A maior é para a esquerda, rumo à Avenida Pinheiro Machado, a maior, para os “jovens”. Quem passa em frente à paróquia, mesmo de carro, duas coisas chamam a atenção, a marcação feita para o distanciamento entre os que vão ali quanto aos objetos colocados par aidentificar o lugar de cada um.
A fila começa a ser marcada bem cedo, antes das 9 horas, com um pedaço de pau, uma pedra ou qualquer coisa já estão marcados os locais de cada um. “Parece o tempo que faltava carne em Porto Velho e a gente tinha de botar a cesta durante a noite no mercado público, para poder comprar carne. E, como naquele tempo, ninguém mexe na marcação de lugar”, disse O.T., 68 anos, que lembrou ter sido colega do jornalista Zé Catraca, quando ambos vendiam sacos de papel no mercado – incendiado em 1966.
“O pessoal da igreja marcou a distância que devemos ficar, um metro e meio para cada um, todos de máscaras, tudo é muito bem organizado”, disse N., do grupo que chega ali vindo do “acampamento” montado em meio ao ajardinamento da Avenida Jorge Teixeira, a uns 300 metros de distância. Ela aparenta ser jovem, mas – como a maioria das mulheres, não diz a idade.
“Todos são bem vindos”, disse um dos coordenadores do projeto que tem à frente o próprio arcebispo dom Roque Paloshi, que quase todos os dias vai até a Sagrada Família “mas não para fiscalizar, pelo contrário, ele também ajuda e muito”, diz o coordenador Alessandro, lembrando que diariamente há mais de 15 voluntários “sem os quais esse projeto seria inviável”, destacou, lembrando que também podem ser voluntários aqueles que fazem doações, “pessoas físicas ou jurídicas”.
Há toda uma organização para que tudo dê certo, incluindo a feitura do suco e uma parte comida que a paróquia oferece para complementar a quantidade fornecida pela Semasf. Para os que vão ali é formada autêntica corrente do bem. “Aqui todo mundo ajuda. Desde o pessoal da própria Semasf passando pelos policiais militares quando eles vêm aqui ou dos que estão para ajudar, funcionando em sistema de equipes que incluem desde a higienização do ambiente até à oferta de que tomem banho ou tenham suas roupas lavadas”.
Desde que o projeto começou, só houve um incidente, mas ocorrido no campo do Treze, quando dois homens brigaram. Na hora da entrega do almoço um deles entrou no pátio da igreja sangrando, mas foi levado pelo Samu. Os quase 180 homens e mulheres que diariamente vão ali em busca de alimento, de um banho ou de poderem lavar a roupa, falam muito em “dignidade”.
Na fila, os elogios são constantes, à organização, ao tratamento dado pelos que atendem. Uma parcela dos que todos os dias fazem a fila é formada por moradores de rua e outros que, há muito tempo, se reúnem no campo do Treze e partilhavam o almoço feito por alguns deles, numa fogueira improvisada bem debaixo da última árvore ao lado da calçada da igreja. “E a comida?”, o repórter perguntou e, pelo visto, “é muito melhor”, disseram.
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