Terça-feira, 25 de agosto de 2009 - 13h50
Paraense que trabalhou nos Correios, em Porto Velho, é premiado em concurso na capital do Pará.
MONTEZUMA CRUZ
Agência Amazônia
PORTO VELHO, RO – Duas vezes premiado no tradicional Concurso de Contos da Região Norte, em Belém (PA), o jornalista escritor José Pedro Frazão desperta o imaginário amazônico. Nascido na capital paraense, ele foi para Porto Velho, trabalhou na agência central dos Correios e, freqüentemente, ia a Guajará-Mirim, na fronteira brasileira com a Bolívia, a 362 quilômetros ali. Irriquieto, atento aos fatos, sentimental, Frazão despertou para o jornalismo no período em que Rondônia não passava de um Território Federal, algo anacrônico num Brasil com culturas e costumes multifacetados. Mora atualmente em Anastácio (MS).
Conheci Frazão bem antes do advento da internet. Vi o seu despertar para o jornalismo e a literatura quando, além do telefone, o telex e depois o fax faziam a comunicação entre as pessoas. Ele trabalhava noutro setor da agência postal e telegráfica – assim os Correios sempre foram conhecidos – e costumava visitar a cabine pública de telex, onde eu perfurava as matérias para a Folha de S. Paulo, jornal do qual fui correspondente em Rondônia, entre 1976 e 1981.
As moças da cabine ainda brincavam com Frazão. Acreditavam que tivesse inclinação para outras lides profissionais, não para o jornalismo. Perspicaz e falante seria um bom vendedor. Enganaram-se. A própria cidade também ignorava a existência de um brilhante homem letrado, nos Correios. E por esse rumo ele enveredou, sem muito pestanejar.
Arrisco dizer: nosso contista reúne um pouco de Cervantes com Garcia Marques, Guimarães Rosa e tantos outros de igual quilate. É humano e faz rir. Exercita nem a memória, resgata o trem e os cegos que por ele andaram. Traz de volta as enchentes dos rios Madeira e Mamoré e o garimpo do rio Machado. Tem grande chance de resgatar mais, muito mais, daquela Rondônia pela qual se apaixonou e onde viveu um período significativo de sua vida.
Um dia Frazão zarpou da cidade e quem o imaginava buscar São Paulo ou o sul do País, surpreendeu-se ao sabê-lo em Anastácio, cidade vizinha a Aquidauana, no Pantanal. Ali, ele mergulhou de corpo e alma no jornalismo e nas letras. Fez e aconteceu, até se tornar cidadão honorário desses municípios. Ingressou na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.
Atualmente, Frazão tem o seu trabalho reconhecido. Em 2003, com o conto "O Guia de cego", começou a ser percebido pelo público. Em 2004 escreveu "Admirador Secreto". Os dois livros foram publicados em antologias diferentes.
O Concurso de Contos da Região Norte abriu os horizontes para esse amazônida. Trata-se de um evento renomado, sob a coordenação do Núcleo de Arte da Universidade Federal do Pará. Cerca de 400 escritores dos estados do Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Tocantins, Rondônia e Roraima participam todo ano.
"O Guia de cego"
O trem chiava veloz, sobre os trilhos da Madeira-Mamoré.
Gilberto e seu avô Mariano, sentados toscos sobre um saco encerado onde levavam tudo o que lhes restara da tragédia, conversavam tristemente ignorando os motivos que tornaram o Rio Madeira assim tão bravio e destruidor, mais do que nas enchentes anteriores.
- Vô, pra onde nós vamos?
- Num sei, talvez prum lugar menos azarado que este - respondeu o velho, tateando, com as mãos trêmulas, o braço do garoto.
- E a nossa barraca, vô! Por que a enchente levou ela?
- Sei lá...Prá se daná por aí, como Deus qué. Mas liga não, meu filho, come tua pupunha e descansa. Mania essa de perguntá! Teu pai era assim, como padre que confessa. Dorme!
Gilberto quietou-se, engolindo a fala e as idéias dos seus nove anos de mundo-pobreza. Mariano disfarçava seu tique nervoso balançando um avariado prato de esmalte, para adquirir alguma esmola dos passageiros que viajavam no mesmo vagão de carga da Maria Fumaça. Suas mãos cadenciavam qualquer ritmo, soando moedas, enquanto afinava, a tosses de guariba, a garganta, para improvisar algumas trovas:
Ó meu povo ribeirinho,
Conterrâneo, amigo meu,
Uma esmola pro ceguinho
Dai-me pelo amor de Deus!
Quem vai para Guajará,
Quem vai para Porto Velho,
Se uma esmola me dá,
Juro que não fica véio.
Vou pra Guajará-Mirim,
No sacolejo do trem,
Cantando afasto de mim
A saudade de Belém!
'A cheia é assunto no conto "O guia de cego premiado em Belém do Pará/MONTEZUMA CRUZ |
O Presidente Gilberto estava tão preocupado com aquele bairro pobre, que transferira para lá a sede do governo, construindo um palácio presidencial flutuante sobre as águas do Madeira.
Em uma de suas visitas aos flagelados que se abrigavam em barracos de lona e em vagões de trem, Gilberto ouviu o clamor de mulheres e crianças e então ordenou ao seu único ministro, que era o seu avô Mariano, para que tomasse providências e tirasse o povo daquela situação de penúria. Mariano era o ministro geral, capaz de resolver tudo; sabia muito da vida e tinha a visão mais perfeita do mundo.
Certo dia, então, o Presidente estava irritado:
– Mariano, você, como ministro, está deixando o nosso povo desabrigado. Não fez nada para impedir as enchentes?
– Excelência, meus olhos não vêem mais. Estou cego. Não posso nem proteger o meu netinho do "dilúvio" que em breve estará arrasando esta cidade!
O presidente conhecia de ouvido uma boa simpatia para curar cegueira:
– Então misture óleo de andiroba e de copaíba e passe nos olhos antes do trem apitar três vezes, pois somente assim voltará a enxergar!
Mariano pôs a mão no ombro do Presidente e pediu:
– Guie-me, senhor, até onde está o óleo milagroso!
Gilberto guiava o seu ministro, quando, de repente, começou a ouvir o apito do trem, que se confundia às gargalhadas de um grupo de engraxates que lhe impediam a passagem.
– Saiam da frente, moleques. Não estão vendo que eu sou o Presidente? E que este homem tá cego? E você, Mariano, por que está trovando como esse prato na mão?
Ao dizer estas últimas palavras, Gilberto estava acordando e deparou-se com a realidade. Os passageiros caçoaram dele enquanto o menino se encolhia de vergonha.
– Esse curumim anda tendo uns sonhos esquisitos! - falou o cego Mariano, desculpando-se.
A viagem chegara ao seu final. A folia também acabava ali, na estação de Guajará-Mirim, mas estava gordo o prato de esmolas. O velho sentia o peso das moedas e sorria. Todos se sentiam seguros, mas com um problema em comum: reconstruir a vida.
Gilberto sentiu novamente o peso da mão do avô no seu ombro e infiltrou-se com o reboco pela multidão, até achar um lugar ideal para se acomodar, reiniciando a luta contra o desprezo, a fome, o sofrimento.
Estavam numa cidade estranha, fronteira do Brasil com a Bolívia. Gilberto sabia disso porque ouvira da professora, em um dos poucos momentos que freqüentou a escola municipal em Capanema, antes de seu pai morrer, deixando-o com o avô. Ainda lhe eram frescas as lembranças da boa vida paraense que levava antes de viajar para Porto Velho com o avô Mariano.
O velho, pra sustentar o neto, tentava a sorte nos garimpos de ouro do Rio Machado, quando, num acidente de trabalho perdeu completamente a visão.
As moedas que a cantoria ganhou no trem mal deram para a primeira refeição. E pelas ruas mais movimentadas seguiam os dois: pára aqui, pára ali, pede cá, pede acolá. Gilberto se imagina uma pequena locomotiva a puxar um enorme vagão. Compenetrado, apita baixinho, com a boca, sonhando acordado. Nesses momentos é feliz, porque brinca e faz da sua lida um lazer. O velho cuida de outros pensamentos, quem sabe! Olhos fechados, lábios e coração abertos, a sorrir para o seu mundo imaginário.
Cansado e pensativo, já num confortável calçadão, enquanto Mariano trova para atrair moedas, Gilberto novamente adormece sobre o sapicuá. Mergulhou em uma das poucas coisas que lhe dá alegria: o seu repertório de sonhos. Sonhou que sabia ler e escrever muito bem e que freqüentava uma linda escola, onde seus colegas de classe eram os seus antigos amiguinhos flagelados da cidade de lona da Baixa da União. Neste sonho, Gilberto tornou-se um famoso escritor e poeta de cordel, que vivia arrancando aplausos nas feiras, praças e cinemas de Belém - que antes só conhecia de nome. E assim, pôde ganhar muito dinheiro e tirar seu avô das ruas, levando-o para uma clínica de cegos onde recuperou sua visão.
– Estou enxergando, Gilberto! Estou vendo você!
– Sim, vovô, é verdade. Bem que o senhor falou que Deus existe!
– Puxa, meu netinho, parece até um daqueles teus sonhos malucos. Mas vejo de verdade. Como tu tá grande, menino! Tô orgulhoso de ti - dizia Mariano, com os olhos percorrendo admirado o rapaz que desde pequeno tinha sido a sua luz.
– É, meu velho, agora você não precisa mais pedir esmolas; eu cresci, sou famoso e posso lhe dar uma vida melhor.
Em comemoração ao milagre, Gilberto deu uma grande festa para toda a população de Belém, onde reencontrou todos os seus parentes e amigos de infância. Porém, em meio às comemorações, acordou do sonho e se viu cercado de policiais, enfermeiros, médicos e uma multidão de curiosos, em pleno centro de Guajará-Mirim.
Pelas frestas da multidão pôde ver quando removiam o corpo do seu avô, caído na rua. As perguntas que lhe faziam também lhe revelavam que o cego havia sido atropelado e morto. Diziam que o velho tentava apanhar um pratinho de esmalte que algum moleque lhe arrebatara da mão. Gilberto arrependeu-se profundamente de ter dormido enquanto o avô trabalhava. Se estivesse em vigia não teria acontecido aquilo, teria enfrentado os trombadinhas, pensava intrigado. Ainda refletia sobre a morte trágica do avô, quando foi novamente despertado, desta feita, por uma voz bastante familiar:
– Acorda, Gilberto, tá na hora do café. Esqueceu que temos viagem marcada?
Gilberto pulou da rede, esfregando os olhos com o dedo. Olhou para os quatro cantos do barraco de lona e logo percebeu que estava voltando de uma confusa noite de devaneios. Suspirou fundo e, sem espreguiçar-se, olhou novamente assustado para o avô cego que o espreitava sorrindo, na outra rede. Certificou-se da realidade e falou, chorando de alegria:
– Vô! Então o senhor não morreu. Nem saímos daqui de Porto Velho. Eu ainda tenho nove anos. Que bom ser criança! Que bom está contigo, vô!
– É, Gilberto – retrucou pacientemente o cego Mariano –, não sei como um garoto tão novo como tu passa o dia inteiro sonhando.
– Eu sou mesmo um sonhador, vovô. Eu sonho até quando tô sonhando!
O menino prosseguiu, pensativo, falando em voz alta:
– Então a enchente e a viagem de trem foi tudo um sonho e o nosso barraco não foi levado pelas águas...
– Que história é essa, menino! Pega a lata de água e lava essa cara. Põe as tralhas no saco de viagem, embrulha essas pupunhas pra gente levar, pega rápido o meu prato, senão a gente perde o trem. Droga dessa enchente, que não pára de subir!
Fonte: Montezuma Cruz - A Agênciaamazônia é parceira do Gentedeopinião
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