Segunda-feira, 24 de maio de 2010 - 20h28
Hoje, infelizmente, devo fazer uma homenagem singela que não deve tocar senão aqueles que amaram seus cães e o perderam. È verdade que não se trata de uma experiência inédita e que, outras vezes, talvez, até tenha sentido mais, porém, é sempre uma dor, um sentimento quase de se perder um grande amigo quando se perde um cachorro. No caso, para ser verdadeiro, uma cachorra, a Jade, uma cofapizinha dessas bem sem vergonha que fazia jus ao nome. Era uma brava cachorra. Tanto que avançava sem medo em cães enormes e, muitas vezes, muito mais ferozes. Uma caçadora por excelência. Nada lhe escapava da atenção e pressentia tanto seus donos, os moradores, qualquer pessoa que se avizinhasse de nossa casa e latia, latia feito uma desesperada mesmo quando se tratava apenas da meninada que parava por ali para brincar ou namorar.
A falta da Jade, sei, ainda será sentida por um longo tempo. Foi uma cachorra fiel que, no entanto, não podia ver uma brecha no portão sem cair fora e passear na rua. Também comia tudo e com um desespero de quem passava fome, embora criada com ração, não perdia qualquer coisa que lhe dessem. De frutas a macarrão passando por doce ou por um osso ou um peixe e, enquanto teve saúde o apetite era imenso e infindável. Nada lhe escapava da boca. E era uma caçadora, pois, perseguia de baratas, ratos se houvesse e pombos, mesmo que, com estes, como via que a caçada era inútil, logo passou a conviver, o que a fazia ser objeto do achincalhe da Mag, minha mulher, que detesta a sujeira que os pombos fizeram e fazem nas paredes e nos toldos.
Histórias da Jade não faltaram para contar. De suas escapadas que davam trabalho para trazer de volta na medida em que fugia pelos quarteirões ou o fato de que, por mais que ralhasse com ela, minha moral era zero. Ela sabia que minhas ameaças eram ameaças apenas. Que, invariavelmente, iria lhe dar de manhã e de noite a ração e fazer cócegas com os pés na sua barriga. Só obedecia mesmo como um soldado ao general a Mag ou a Ana, que a criou e educou de que forma não sei, pois, era ineducável. A Jade era birrenta no sentido de que, quando contrariada, dava o troco e fazia coisas inexplicáveis como roer o para-choque do carro. Quem sabe a pintura tivesse algum sabor...
Apesar de ter começado o ano bem na medida em que lhe comprei uma ração especial e uns ossos para roer ela apresentava um bucho estranho, meio gordo. No começo se aventou a hipótese de falsa gravidez. Não era. Era um tumor que detectaram como câncer e como câncer ficou, pois, a desenganaram, apesar dos antiinflamatórios e a falsa impressão de que melhorava. Que não melhorava era claro pela quietude que tomou conta dela. Já não corria para a rua quando o portão se abria para o carro ou ia muito lentamente. O apetite esmoreceu. Comprei ração especial, passei a dar carne para ela e até comprei uns biscoitos de ossos, porém, sempre parecia mal alimentada e passou uns dias comendo só melancia e mamão. Nós sabíamos que seu fim era próximo e que era valente: não gemia, não parecia sentir dor fora dos olhos tristes com que nos olhava. Hoje, inesperadamente, morreu de uma hora para outra. Morreu mais silenciosamente do que viveu. Diria mesmo que morreu como um passarinho, mas, em nós, durante muito tempo, há de ecoar a ausência dos seus latidos.
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