Domingo, 29 de março de 2020 - 19h10
O filme “O Poço”, dirigido por
Galder Gaztelu-Urrutia, recentemente lançado pela Netflix, é uma metáfora
fascinante, grotesca e perturbadora. Embora não esteja explícito representa uma
clara crítica à nossa sociedade, sua distribuição de recursos e à falta de
solidariedade dos mais ricos, ao criar um personagem que, por vontade própria,
entra numa prisão para se livrar do vício do cigarro e ganhar um certificado, e
que se vê, de repente, obrigado a lutar pela vida, pois, na prisão, a comida
passa por uma rampa com mais de trezentos níveis, na qual não chega aos níveis
mais baixos, forçando a quem neles vive a lutar pela sobrevivência. É uma
abordagem com elementos ainda mais complexos, porém, com uma permanente
tendência de questionar o mundo atual quando começa, por exemplo, com as fortes
palavras; “Há três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”. O
que parecia incompreensível para o protagonista do filme (Goreng), que, como
todos os prisioneiros só podia levar um
objeto para a prisão, e levou o livro de Cervantes, Dom Quixote, acaba ficando
explícito, quando compreende que a única coisa que se faz na prisão é esperar
por uma rampa com uma plataforma de comida. Preparada no nível zero, um
banquete, consumido, durante algum tempo, em cada nível, uma vez a cada dia,
sem que se possa guardar nada, em que os de cima não se importam com o que
sobra para os debaixo, nem que se alimentem de seus restos. Quando acorda,
Goreng, está no 48, onde ainda se come, mas, os prisioneiros são, mensalmente,
trocados de nível para que passem por todas as situações. Quando acorda, no
nível 147, se vê amarrado, por seu companheiro de cela, Trimagasi, que, prevendo
a falta de comida, passaria a comer parte de seu corpo. E faria isto, se uma
personagem, Miharu, misteriosa e canibal, que se transporta pela plataforma
atrás de sua filha, não o salvasse. É se alimentando de partes do corpo e das
larvas do companheiro que Goreng sobrevive e vai ser compartilhar cela com
Imoguiri, quem o selecionou para a prisão, que, depois se descobre, ao saber
que tinha câncer, foi tentar mudar o sistema por dentro. O lado idealista dos
personagens reaparece, depois, no próprio personagem e em um negro, Baharat,
que topa, primeiro tentar descer e distribuir a comida, depois fazer com que
uma mensagem chegue ao nível zero. É um filme onde várias metáforas se
entrelaçam numa grande metáfora. O fato de Baharat querer subir, dependendo da bondade
de estranhos, sem sucesso, mesmo apelando para a religião, ou a alusão que se
pode fazer os de baixo cooperar pela força, bem como a menção explícita de que
“nenhuma mudança é espontânea” não conseguem superar a de que, por mais
educados, bem intencionados e delicados que possamos ser, nas situações limites,
nos comportamos como qualquer animal, ou seja, o que vale é sobreviver. Embora
deixe visível, o que é uma verdade, que há alimentos e recursos para todos, se
os poderosos tivessem solidariedade, também deixa entrever que a mudança só
pode ser feita pela educação. Como é um filme que visa questionar valores
também não são propostas soluções, daí, o final tão ambíguo. A salvação da
criança, no nível 333, é realidade? Uma das regras da prisão era de não se ter
menores e, alguns personagens, colocam em xeque a existência da filha de
Miharu. Ainda que seja. Isto mudaria de fato alguma coisa? Quando se vê o chefe
indo à loucura, no fim do filme, por um cabelo na panacota, é de cabível
perguntar se, para muitos, tem importância o que se passa nos níveis
inferiores, desde que não altere sua vida. Algo semelhante não se passa, por
exemplo, agora, quando se pede para os outros ficar em casa, quando esses não
tem o que comer? Há uma quantidade muito grande de pessoas que fazem belos
discursos socialistas comendo caviar e bebendo champanhe, mas, quantos se
moveram para alimentar alguém na atual crise do coronavírus? Os pobres, na sua
grande maioria, não estão discutindo no Facebook ou no Whatsapp sobre Bolsonaro
ou Lula, sobre ficar ou sair. Estão, como os do final do poço, em busca do que
comer hoje ou amanhã. E são poucos, muitos poucos, os que tem o que teve Goreng
no filme, a coragem de se sacrificar pela menina (o amanhã). O filme é cruel. É
preciso ter estomago para assistir, mas, trata de todos nós: da nossa
violência, do que vemos, do que não vemos, dos que desejam o diálogo, dos que
não entendem. Mas, a realidade do poço nos envolve com outras formas. E, é
óbvio, não nos salva nem a literatura, nem o marketing nem a cegueira. Apesar
das nossas melhores intenções o mundo continua a ser injusto. E o poço não tem
fundo.
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